sábado, 30 de abril de 2011

A questão religiosa nas culturas mesopotâmicas

Shamash (sentado), descrito como entregando os símbolos da autoridade de Hamurabi (relevo na parte superior da estela do código de leis de Hamurabi)

[Ishtar (Venus) aids in the resurrection of Shamash (Jupiter)]

Image: Ishtar (Venus) and Ea (Sumerian Enki) aid in the resurrection of Shamash (Jupiter); ca 2308 BC.

Maria Isabelle Palma Gomes Corrêa

Em geral, as sociedades antigas dispunham de uma quantidade significativa de mitos que, em diferentes graus, influenciavam a realidade cultural desses povos. Esses mitos narravam uma criação, descrevendo como algo foi produzido ou quando começou a existir. Nesse sentido, a finalidade primeira dos mitos era a atualização periódica de experiências vividas em eras primordiais, a fim de que o presente pudesse ser revigorado, rejuvenescido de tempos em tempos. Essa é, pois, a influência que os mitos exerceram nas sociedades antigas (inclusive na Mesopotâmia): a garantia de “sucesso” sobre o presente, ao se reviver o passado. Assim, para o homem antigo, os mitos não só reconstruíam um passado heróico, primordial, como também possibilitavam que o presente se manifestasse sob a forma dos tempos heróicos dos começos.

Zigurate

Na Mesopotâmia, muitos mitos revelam uma gênese que, através das tradições orais, fundamenta o nascimento constante das coisas e do mundo. Alguns desses mitos, antes de tratarem de suas especificidades próprias, iniciam-se com o esboço de uma cosmogonia – é o caso, por exemplo, das narrativas babilônicas acerca da criação do homem, as quais são precedidas pela descrição do surgimento do cosmos. Essas histórias míticas exerceram muita influência sobre as civilizações da Mesopotâmia, a ponto de se construir um amplo aparato religioso, enquanto também se estruturavam suas organizações sociais, econômicas e políticas. Dentre as formações religiosas relacionadas ao poder dos mitos mesopotâmicos, cita-se os templos e o panteão de deuses; elementos estes, privilegiados pela centralização maior que receberam, naquilo que diz respeito à vida espiritual dos povos mesopotâmicos.

Os templos, em virtude de seu número e função, conferem, em toda a história da Mesopotâmia, um alto grau de importância. Cada cidade possuía muitos deles: Lagash, por exemplo, no início do III milênio, parece ter contado com cerca de 50 edificações sagradas. O mais importante dos templos da cidade era sempre aquele construído em homenagem à divindade protetora, o que pressupõe uma certa hierarquia entre os deuses. Geralmente, este é o templo maior e bem mais ornamentado de todos. Além disso, era também o que contava com um grupo maior de sacerdotes, de pessoal de exploração e administração. A “sociedade” interna do templo parece constituir uma casta praticamente fechada, pois existiam técnicas ou atividades (ainda que aparentemente laicas) que só poderiam ser aprendidas no templo e a partir da infância. As funções exclusivamente agrícolas eram as únicas que escapavam a essa obrigatoriedade. Todas as pessoas ligadas ao templo constituíam uma grande comunidade que, vivendo a serviço dos deuses, viviam também da renda deles, isto é, do produto de seus bens e do excedente das oferendas e sacrifícios. Apesar disso, esses membros religiosos não deixavam o convívio com a vida laica, nem entregavam ao templo suas fortunas particulares. As terras do templo eram divididas em lotes, cujas funções eram bem variadas: alguns domínios eram “arrendados”, outros, diretamente postos a render, através do gado e da mão-de-obra, geralmente escrava. Da mesma forma, o templo tinha suas oficinas, seus armazéns, seus depósitos e seu tesouro. Os templos controlavam, portanto, uma parte relativamente expressiva da vida econômica do país, principalmente porque seu poder associava-se à sua força espiritual.
deusa da fertilidade Ishtar

Quanto aos deuses propriamente ditos, as cidades da Mesopotâmia compartilhavam um mesmo panteão ou assembléia (como era chamada na Babilônia), embora os nomes divinos sofressem alterações de acordo com a região. Esse panteão (ou assembléia) era formado por seres vivos imortais e de forma humana, que, apesar de invisíveis, criaram e controlavam o cosmos, de acordo com planos bem estabelecidos e leis devidamente prescritas. Supunham que cada um destes deuses tinha a seu encargo um componente particular do universo e guiava as suas atividades com regras e regulamentos. É possível que essas idéias estivessem relacionadas à estrutura da sociedade humana, entregue ao controle e à guarda de homens, sem os quais as terras e as cidades se arruinariam. Também o cosmos e todo os seus complicados fenômenos deveriam estar sendo guardados e supervisionados por seres divinos, uma vez que o universo é muito mais extenso e complexo. Por analogia com a organização política do homem, o panteão (ou assembléia) de deuses mantinha uma hierarquia, segundo um grau de importância. Esses dois aspectos da vida na Mesopotâmia, explicitam claramente o grau de vínculo existente entre os povos antigos e suas crenças míticas (de onde decorrem os sistemas religiosos). Esses sistemas religiosos, na Mesopotâmia, detinham em seu conteúdo uma visão de mundo geral, englobando aspectos da vida que, para nós, ocidentais, são diferentes: religião, política, economia, direito e ética. Com efeito, na Antigüidade, o que dividimos, aparecia integrado num todo indivisível para os homens de então.

Projeto Chronos

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A descoberta das civilizações mesopotâmicas

mapa do Crescente Fértil

Maria Isabelle Palma Gomes Corrêa

A antiga Mesopotâmia situava-se na região do Crescente Fértil, entre os rios Tigre e Eufrates. Durante muito tempo, esse território permaneceu quase desconhecido, sendo a Bíblia a única forma de se conhecer alguns aspectos das civilizações da Mesopotâmia. Mesmo assim, as informações bíblicas eram escassas e pouco reveladoras, uma vez que estavam diretamente relacionadas à história do povo hebreu. Além disso, as histórias dos povos mesopotâmicos contidas na Bíblia revelam os grandes feitos de reis e guerreiros e quase nada trazem sobre a vida cotidiana daqueles povos. É por essa razão que a descoberta dos registros de documentos mesopotâmicos em tabuinhas de argila, trazem para a história uma nova forma de abordar a vida dessas civilizações.

As primeiras inscrições em tabuinhas de barro foram encontradas por viajantes e mercadores, o que ocasionou uma dispersão dos achados arqueológicos, dificultando os trabalhos posteriores de decifração. Isso porque muitos dos materiais recolhidos foram vendidos em mercados para turistas e colecionadores particulares que mantiveram afastadas peças complementares que permitiriam o entendimento de um contexto maior. Ainda hoje, muitas tabuinhas estão espalhadas por diversos países, entretanto os trabalhos de decifração, iniciados na segunda metade do século XVII, já permitem um panorama relativamente completo do que constituiu a história da Mesopotâmia.
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Um dos primeiros viajantes a trazer ao ocidente os sinais de uma escrita exótica, mais tarde denominada cuneiforme, foi Pietro della Valle, nos últimos anos do século XVI. A partir da descoberta de della Valle, muitos arqueólogos de diversos países iniciaram estudos a fim de traduzir as tábuas encontradas, mas somente em 1852, um arqueólogo inglês, Henry Rawlinson, apresentou a primeira transliteração convincente de 246 sinais cuneiformes. Seu trabalho foi auxiliado e continuado por uma série de outros pesquisadores, dentre os quais, cita-se: Paul Emile Botta, Austen Henry Layard e George Smith. Esse último, realizou a tradução de um trecho da Epopéia de Gilgamesh que narra a história de um dilúvio. Essa descoberta causou forte impacto na Europa, durante o século XIX, por apresentar um texto pagão aparentemente antecipando a Arca de Noé. O trabalho de Smith teve continuidade com outros pesquisadores que desenvolveram pesquisas de conteúdos semelhantes. Durante o século XIX, muitos deles tiveram que enfrentar os problemas causados pelos questionamentos sobre a veracidade bíblica. Atualmente, sabe-se que esses mitos fazem parte de um sincretismo cultural maior e têm seus valores próprios e méritos independentes como obras literárias. E mesmo as comparações com o Antigo Testamento possibilitam uma oportunidade única de estudar povos diferentes, a partir de suas semelhanças. No que diz respeito à arqueologia desse século, a Mesopotâmia tem recebido atenção especial, uma vez que grande quantidade de inscrições cuneiformes ainda estão esperando a tradução.

Projeto Chronos

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quinta-feira, 28 de abril de 2011

A Experiência do Apocalipse

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(A pandemia de peste negra no século XIV)

Amiraldo M. Gusmão Jr.

Introdução

Afirmo, portanto, que tínhamos atingido já o ano bem farto da Encarnação do Filho de Deus de 1348, quando, na mui excelsa cidade de Florença, cuja beleza supera a de qualquer outra da Itália, sobreveio a mortífera pestilência. Por iniciativa dos corpos superiores ou em razão de nossas iniqüidades, a peste atirada sobre os homens por justa cólera divina e para nossa exemplificação, tivera início nas regiões orientais, há alguns anos. Tal praga ceifara, naquelas plagas, uma enorme quantidade de pessoas vivas. Incansável, fora de um lugar para outro; e estendera-se, de forma miserável, para o Ocidente.1

A maioria dos livros sobre a Idade Média européia fala muito pouco ou quase nada sobre um fenômeno que marcou profundamente o continente e de certa forma deixou cicatrizes que permanecem até nossos dias, a terrível "morte negra", a pandemia de peste bubônica que assolou a Europa em meados do século XIV. Desta forma, procurei, neste artigo, inverter esta tendência e colocar a praga como o tema central, tentando mostrar que ela foi um fenômeno típico da época, tendo assumido as enormes proporções que assumiu devido a uma série de fatores tais como: condições precárias de habitação, higiene, superstições e principalmente ignorância. Em vista da dificuldade de obter documentos ou testemunhos originais sobre o período, baseei-me em diversos trabalhos que abordam o tema com maior ou menor profundidade. Uma exceção é o Decamerone, de Boccaccio, que fornece preciosas informações sobre a peste na Florença de 1348. Dividi o artigo em duas partes básicas. A primeira, que consiste de dois capítulos, descreve o espaço privado e as condições de higiene e alimentação na época, além de fornecer algumas informações sobre o estágio e as técnicas da prática médica. A segunda parte versa sobre a peste propriamente dita, mostrando sua marcha sobre o continente europeu. Meu objetivo, portanto, é dar ao assunto o destaque merecido, e sobretudo mostrar como o homem da época via a praga que quase destruiu o mundo em que vivia.

O espaço privado


Durante todo o período conhecido como Baixa Idade Média, entre os séculos XI e XV, as condições de vida dos camponeses europeus foram mais ou menos as mesmas, independentemente do local em que vivessem. Pode-se dizer o mesmo em relação à população urbana e até quanto aos nobres e senhores feudais. Basicamente, a habitação medieval européia consistia em um único grande recinto, sem divisões internas. Tal configuração estava presente tanto na miserável casa camponesa, feita de madeira e adobe, quanto nos imponentes castelos de pedra dos senhores mais poderosos. Esta concepção de moradia gerava alguns problemas bastante graves, principalmente no que diz respeito à saúde.

Podemos observar a configuração básica de uma casa camponesa na figura abaixo:

Esta configuração era bastante típica, e podia ser aplicada de forma mais ou menos geral para todo o continente europeu. Os pontos principais são a coabitação com os animais de criação, a ausência de divisões internas, o pequeno número de móveis e a falta de ventilação, já que geralmente havia uma única janela, quase sempre fechada para manter o calor da casa. O piso era de terra batida, às vezes forrado com palha ou junco. O aquecimento era proporcionado por uma fogueira, quase sempre acesa no centro do ambiente (na planta acima, é exibida uma casa um pouco mais moderna, que já possuía lareira). Não havia chaminé, apenas um buraco no teto, que além de deixar sair a fumaça também permitia a entrada da chuva, o que costumava apodrecer a palha do piso no inverno. Este desenho básico era uma constante em quase todo o território europeu, e só viria a mudar a partir do século XVI.

As camas, quando haviam, eram geralmente fechadas com cortinas, para proporcionar um pouco de privacidade. Eram mais largas que compridas, já que nelas dormiam de duas a oito pessoas. O homem medieval geralmente dormia despido, com a cabeça protegida por uma touca. O móvel mais utilizado era a arca, devido às suas múltiplas funções, já que o fator limitante quanto ao número de móveis era o seu custo, bastante elevado na época. Os ambientes úmidos e enfumaçados, a falta de privacidade e a promiscuidade facilitavam sobremaneira a transmissão de doenças. Neste tipo de ambiente, quando um membro da família adoecia era praticamente impossível evitar o contágio.

A residência urbana seguia praticamente os mesmos padrões. A única diferença era a presença ocasional de um segundo piso, mais comum na casa do artesão, que usava o térreo como oficina e loja. A existência do segundo piso geralmente implicava na melhoria de algumas estruturas, tais como um piso aperfeiçoado e a construção de lareiras ou saídas laterais para a fumaça. Entretanto, tais melhorias não ajudavam a melhorar a salubridade do ambiente, já que as cidades medievais eram locais apinhados de gente, com esgotos a céu aberto, o que as tornava muito mais insalubres que as casas camponesas. A enfermidade e a peste rondavam a vida das pessoas. Obter água limpa para beber e cozinhar era um problema, pois o conteúdo das fossas infiltrava-se no solo e contaminava os poços. Lixo, resíduos de curtume e matadouros poluíam os rios.

Quanto aos castelos, apesar de sua imponência usava-se a mesma configuração da casa camponesa, pelo menos até o final do século XIII. A partir daí houve progressos notáveis, principalmente na Inglaterra, com os castelos construídos por Eduardo I no País de Gales. Foi o talento e a criatividade de homens como Mestre James de Saint Georges, o arquiteto saboiano de Eduardo, que começou a mudar o conceito da habitação medieval, através da introdução de melhorias como o uso de divisões internas permanentes, a construção de latrinas, e principalmente a colocação de lareiras em todos os ambientes das áreas habitacionais, o que ajudava a reduzir a umidade e aumentava a salubridade dos mesmos.

Fica mais fácil entender a moradia medieval se levarmos em conta que os homens da época passavam muito pouco tempo em casa. Os pobres trabalhavam do nascer ao pôr do sol, e os nobres viajavam a maior parte do tempo. A vida era levada ao ar livre, e a residência, tanto a choupana do camponês quanto o castelo do senhor feudal, não passava de um dormitório ou um providencial refúgio contra as intempéries ou o frio do inverno. Somente com o passar do tempo o conceito de "lar" foi tomando forma, e só a partir daí houve melhorias significativas no desenho do espaço privado.
Higiene, Alimentação e Medicina

Hoje em dia parece bastante lógico que higiene e saúde sejam indissociáveis, e que a segunda não possa existir sem a primeira. Entretanto, há poucos séculos atrás tal relação tão elementar não só não havia sido descoberta como era até considerada exótica. Durante a Idade Média, um dos aspectos mais fundamentais da higiene, o banho, era considerado prejudicial se tomado em excesso. E "banhar-se em excesso" geralmente significava fazê-lo mais de duas ou três vezes por ano. O cheiro de corpos não lavados impregnava todas as casas.Mesmo os monges da abadia de Cluny, a mais opulenta da Europa, banhavam-se apenas duas vezes por ano, antes da páscoa e antes do natal. Nas áreas urbanas, o esgoto e a água usada eram simplesmente atirados pela janela, muitas vezes na cabeça do transeunte que tivesse a infelicidade de estar no lugar e hora errados.

As roupas eram lavadas muito raramente, geralmente duas ou três vezes por ano, devido à raridade e ao custo do sabão, e conseqüentemente viviam infestadas de pulgas, percevejos, piolhos e traças. Catar piolhos era uma atividade regular das famílias, sendo mesmo uma forma de lazer. Quem mais corria risco eram os recém-nascidos, já que as mulheres costumavam forrar as camas com lençóis sujos e velhos para dar à luz, pois assim não estragavam os bons. Entre um quarto e um terço das crianças morriam antes de completar um ano e muitas outras antes dos dez anos. De cada dois nascimentos bem-sucedidos podia resultar um único adulto saudável. As casas eram ninhos de ratos, que disputavam com os animais de criação os restos de comida.

A dieta camposensa era imprópria e mal balanceada, consistindo basicamente de cereais, na forma de pão. Em alguns pontos da Europa o pão chegava a constituir mais de 65% da quantidade de calorias ingeridas (80% se não contarmos com o vinho).2 Todo o resto, vinho, carne, peixe, legumes, gorduras e queijo, não passava de "acompanhamento", ou seja, aquilo que acompanha o pão. As classes mais abastadas tinham direito ao pão fino, enquanto os pobres comiam o pão escuro, ou mesmo o chamado "pão de escassez", feito de aveia. Como diziam alguns cronistas da épocas "A hierarquia das pessoas define-se pela cor do pão que comem".

A verdadeira causa da doença era ignorada (e continuaria a sê-lo até o século XIX). Mesmo no final da Idade Média a medicina preventiva limitava-se ao isolamento e quarentena. Atribuía-se quase tudo à influência dos astros, e não era raro que os médicos mais famosos fossem também astrólogos. Para os pobres e ignorantes, a resposta era bem simples: todos os males eram castigos de Deus, irado com os constantes pecados cometidos pelo homem. Para quase tudo receitava-se a sangria, além de infusões herbais e misturas estranhas, quase sempre inócuas. Dentre alguns tratamentos exóticos, podemos citar o usado para eliminar a solitária, que consistia em lavar o couro cabeludo com a urina de um menino. Os pacientes com gota eram tratados com um emplastro de excremento de bode misturado com rosmaninho e mel. Para para evitar marcas, envolvia-se o doente de varíola num pano vermelho, mantendo-o deitado numa cama com cortinas também vermelhas. Estes tratamentos não eram baratos, e o que era repugnante, bem como o que era raro ou difícil de obter, tinha um valor maior. O pensamento médico, preso à teoria das influências astrais, ressaltava o ar como o meio de transmissão das doenças, principalmente as pestes. Era o ar envenenado, os miasmas e as névoas pesadas e pegajosas, provocados por todos os tipos de agentes naturais e imaginários, desde lagos estagnados até a conjunção negativa dos planetas, que espalhavam a doença e a morte entre os homens.
A Marcha da Peste

Os homens se evitavam [...] parentes se distanciavam, irmão era esquecido por irmão, muitas vezes o marido pela mulher; ah, e o que é pior e difícil de acreditar, pais e mães houve que abandonaram os filhos à sua sorte, sem cuidar deles e visitá-los, como se fossem estranhos.3

A ira de Deus em vista dos pecados dos homens, parecia, no século XIV, a única explicação possível para a série de golpes devastadores que abalaram todo o mundo conhecido. Durante o primeiro quarto do século, a Ásia foi atormentada por secas, enchentes e terremotos que provocaram uma fome sem precedentes. Na Europa, a mudança climática que começou na década de 1250 e tornou o clima mais frio e úmido teve seus efeitos mais nefastos sentidos no final do século XIII e início do XIV, com a perda sucessiva de colheitas e a conseqüente fome generalizada que espalhou a doença e o desespero nas comunidades superpovoadas. Mas nada foi tão devastador como a epidemia que, entre 1346 e 1352, assolou todo o continente e chegou a ceifar mais de um terço da população européia. Esta epidemia, que hoje conhecemos como peste negra, e que na época era conhecida somente como a peste, ou a morte negra, provocou a maior onda de mortandade que jamais varreu o mundo.

A peste negra é provocada pelo bacilo Pasturella pestis, descoberto somente em 1894. A doença se manifesta de três formas: a pneumônica, que ataca os pulmões; a septicêmica, que infecta a corrente sangüínea; e a bubônica, a mais comum. cujo nome deriva das tumefações do tamanho de um ovo, conhecidas como bubos ou bubões, que aparecem no pescoço, nas axilas ou nas virilhas do doente nos primeiros estágios da doença.

Os vetores do bacilo podem ser vários tipos de insetos hematófagos, que o transmitem através da picada. O mais comum destes vetores é a pulga Xenopsylla cheopis, que na época parasitava tanto o pequeno rato preto dos navios, o Rattus rattus, como o rato marrom, muito comum nos esgotos. O bacilo vive alternadamente no estômago da pulga e na corrente sangüínea do rato. Até hoje não se sabe o que precipitou a mutação do bacilo da forma inócua para a virulenta.

A doença era aterrorizante. Os bubões purgavam pus e sangue, e eram acompanhados por manchas escuras, resultantes de hemorragias internas. Os doentes sentiam dores muito fortes e geralmente morriam em até cinco dias após a manifestação dos primeiros sintomas. No caso da forma pneumônica, o doente tinha febre alta e constante, tosse forte, suores abundantes e escarro sangrento, e morriam em três dias ou menos. Em ambos os casos, tudo que saía do corpo - hálito, suor, sangue dos bubões e pulmões, urina sanguinolenta e excrementos enegrecidos pelo sangue - cheirava extremamente mal. A depressão e o desespero acompanhava os sintomas físicos, o que levou alguns cronistas da época a dizer que "a morte se estampava no rosto dos condenados".


A presença simultânea das três formas tornava o contágio extremamente rápido. Contava-se casos de pessoas que dormiam com saúde e morriam antes de acordar. Foi grande o número de médicos e pessoas caridosas, como freiras, que morreram ao tentar ajudar os doentes. O contágio fulminante ficou bem caracterizado pelo médico francês Simão de Covino que afirmou que uma pessoa enferma era capaz de "contaminar todo o mundo". O pior de tudo era a ignorância a respeito da verdadeira causa da doença e da forma de transmissão, o que tornava impossível a prevenção e a cura. Esta ignorância levava a interpretações mais ou menos delirantes, que atribuíam a epidemia às causas mais disparatadas. Falou-se em terremotos, enchentes, tempestades e "pés-de-vento-malignos", mas as causas mais aceitas eram uma conjunção planetária ou simplesmente o castigo divino. Entre os possíveis responsáveis pela origem e disseminação da praga, os preferidos eram os judeus, que conseqüentemente foram perseguidos e massacrados, principalmente na Alemanha. Em 1348, Filipe VI pediu à faculdade de medicina da Universidade de Paris um relatório sobre a moléstia que parecia ameaçar a sobrevivência da humanidade. Os doutores da universidade reuniram provas cuidadosas que atribuíam a doença a uma tríplice conjunção de Saturno, Júpiter e Marte no 400 grau de Aquário, ocorrida em 20 de março de 1345. Para garantir sua reputação, terminaram o relatório afirmando que apesar disto ainda deveria haver alguns outros motivos, que no entanto "estariam ocultos até mesmo dos intelectos mais altamente formados". Desta forma, o veredito dos mestres de Paris passou a ser a versão oficial, sendo aceito em toda a parte como a resposta científica, pelo menos para aqueles que sabiam ler ou fingiam compreender a "ciência" que teria levado àquela solução. Por outro lado, para os pobres e ignorantes a resposta era mais simples e direta, consistindo tão somente no castigo provocado pela ira de Deus diante dos pecados cometidos pelo homem.

Quanto ao local de origem da epidemia, de início apontava-se a China. Entretanto, hoje em dia acredita-se ela tenha começado em algum lugar da Ásia Central, e entrado no continente europeu pela rota das caravanas. A origem chinesa era uma idéia errônea do século XIV, baseada em notícias defasadas de uma grande mortandade na China ocorrida por volta de 1330, que teria sido provocada pela seca e pela fome. A figura abaixo mostra o avanço da peste ao propagar-se pela Europa a partir do leste.

Como podemos ver pelo mapa acima, a peste provocava mortandade numa área durante quatro a seis meses, e depois decrescia, exceto nas grandes cidades, onde o acúmulo de população a tornava endêmica. Em algumas cidades, como Siena, mais da metade dos habitantes morreu de peste. Algumas regiões, misteriosamente, escaparam praticamente incólumes, como Béarn, na França, ou o noroeste da Europa.

Diante do avanço inexorável da praga, a solução mais comum era a fuga. Grandes parcelas da população migraram para o campo, tentando escapar do ambiente insalubre das cidades. A peste era o tipo de calamidade que não inspirava solidariedade. O fato de ser asquerosa e mortal não aproximava as pessoas num sofrimento mútuo, mas apenas aumentava seu desejo de escapar da mesma sorte. Desse modo, a fuga era generalizada. Fugiam os magistrados e notários, que se recusavam a fazer o testamento dos agonizantes, fugiam os padres, em pânico diante da perspectiva de ouvir as confissões dos moribundos, e fugiam os médicos, o que só piorava o quadro geral. Para muitos, o fim do mundo era tido como certo, o que os levava a procurar o esquecimento no prazer sem freios, como cita Boccaccio no Decamerone "dia e noite, iam de uma taverna para outra, bebendo e farreando desenfreadamente".

Os médicos receitavam poções tão exóticas quanto ineficientes, que incluíam, entre outras, o melaço de dez anos, picadinho de serpente, pílulas de galhos de gamo triturados, mirra, açafrão e até pó de ouro. Os tratamentos mais comuns eram as sangrias, o lancetamento ou cauterização dos bubões, a purga com laxantes ou a aplicação de emplastros quentes. Receitava-se ainda compostos feitos com especiarias raras e pérolas ou esmeraldas trituradas, numa clara demonstração que já naquela época alguns pacientes estimavam o valor terapêutico da remédio pelo seu custo. Os médicos aconselhavam ainda que o chão fosse varrido freqüentemente e salpicado de água. As mãos, boca e narinas deveriam ser lavadas com vinagre e água de rosas. Eram recomendadas dietas leves, abstinência de excitação e irritação, exercícios moderados e a maior distância possível de pântanos e outras fontes de ar viciado. Havia a curiosa crença de que os zeladores de latrinas estavam imunizados, o que levava muitas pessoas a visitar estes estabelecimentos públicos, supondo eficazes seus maus odores.

A devastação causada pela peste diminuiu sensivelmente após 1350, embora a doença permanecesse no continente europeu, de forma endêmica, até o início do século XVIII. Sua marcha mortal pela Europa deixou seqüelas permanentes, que transformaram a relação entre as pessoas, abalaram a imagem de infalibilidade do clero, reforçaram a fé pessoal e aumentaram a popularidade de cultos místicos. Na arte, mudou a forma de representação da morte, apresentada sempre de forma assustadora, levando com seu abraço os falecidos horrendamente descarnados e torturados, testemunhas permanentes das imensas cicatrizes sociais e psicológicas provocadas pela peste negra.

Em alguns locais, entretanto, tomaram-se medidas realmente eficazes, embora discutíveis. Em Milão, muravam-se as casas ao primeiro sinal de infecção, aprisionado doentes e sãos e evitando a propagação da praga. Em Nuremberg, instituiu-se um rigoroso programa de saúde pública, que incluía a pavimentação e limpeza das ruas e a remoção dos dejetos. A higiene pessoal, para muitos um conceito totalmente novo, foi estimulada, sendo que alguns trabalhadores recebiam até dinheiro para o banho como parte do salário. Em conseqüência destes esforços, Milão e Nuremberg tiveram uma das mais baixas taxas de mortalidade entre as cidades européias.
Conclusão

Um dos maiores erros na história é tentar analisar um determinado fenômeno com os olhos do presente. Na imensa maioria das vezes, só conseguiremos compreender um determinado fato através de uma análise que leve em consideração todo o conjunto de aspectos que caracterizam a época em que o mesmo aconteceu. Devemos olhar para o passado com os olhos dos homens de seu tempo. O homem medieval via a peste como um castigo divino. Entretanto, se analisarmos todos os dados referentes à habitação, higiene, alimentação e saúde, veremos que o caráter pandêmico da praga derivou da precariedade de todos estes aspectos, e de sua homogeneidade mais ou menos acentuada em todo o território europeu. A "morte negra" provavelmente não teria ocorrido se as condições de moradia ou higiene fossem outras, pelo menos não na extensão que ocorreu. Durante o apogeu do Império Romano, havia cidades muito maiores, mas as condições de habitação e saúde eram muito superiores. A peste foi um fenômeno característico de um mundo em mutação. Foi o alto preço pago por um continente que começava a se abrir para o resto do mundo através do aumento das relações comerciais, mas que ainda vivia em um ambiente concebido para uma vida isolada e auto-suficiente. Sob este aspecto, a praga teve um lado positivo, ao obrigar o homem ocidental a mudar a sua forma de se relacionar com o meio ambiente, ensinado-o o valor do planejamento urbano e da higiene, além de expor a fragilidade da ciência médica medieval e, conseqüentemente, possibilitar sua evolução, livrando-a, pelo menos para alguns, da ignorância e da superstição.
Lista de ilustrações

Planta baixa de uma casa camponesa típica. In: História da vida privada Vol II. São Paulo: Cia das Letras, 1990.
Mapa do avanço da peste negra na Europa. . In: Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
Notas

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo : Círculo do Livro, p. 9-10,1991
LARIOUX, Bruno. A idade média à mesa. Lisboa : Publicações Europa-América, 1989.
BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo : Círculo do Livro, 1991.
Bibliografia e fontes

BOCCACCIO, Giovanni. Decamerão. São Paulo : Círculo do Livro, 1991.
BOYLE, Charles. História em revista. Rio de Janeiro : Abril Livros, v. 12, 1991.
BOYLE, Charles. O mundo doméstico. Rio de Janeiro : Abril Livros, 1993.
DUBY, Georges. História da vida privada.São Paulo : Cia das Letras, v. 2, 1990.
LAURIOUX, Bruno. A idade média à mesa. Lisboa: Publicações Europa-América, 1989.
LE GOFF, Jacques. A civilização do ocidente medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1983.
LE GOFF, Jacques. As doenças tem história. Lisboa: Terramar, 1990.
LOYN, H. R. Dicionário da idade média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1991.
TUCHMAN, Barbara W. Um espelho distante. Rio de Janeiro: José Olympio, 1990.

quarta-feira, 27 de abril de 2011

Medicina versus magia

Remédios de comadres
Nos tempos coloniais, a população confiava mais em curas mágicas do que nos médicos diplomados
Flavio Coelho Edler

A medicina e a feitiçaria já estiveram muito mais próximas do que se pode imaginar. Durante o Brasil Colônia até o século XIX, a produção de remédios com o uso de animais ligados ao universo mágico, como o morcego e o cão negro, não era exclusividade de curandeiros. Médicos e boticários também receitavam substâncias cujo significado difere muito do que hoje entendemos por ciência, utilizando até mesmo cadáveres humanos em suas fórmulas.

Naquela época, a quantidade de médicos no país era mínima, mas não faltavam representantes das mais variadas ocupações para aplicar todo tipo de feitiços, como barbeiros, sangradores e mezinheiros (que aplica mezinhas, isto é, medicamentos caseiros). Esses terapeutas populares tratavam de doenças e de problemas cirúrgicos com ervas medicinais, amuletos e práticas como o catimbó – culto de possessão, de origem indígena, de caráter mágico-curativo – e o calundu, designação genérica de um ritual associado a danças e cantos coletivos, em que ocorria a invocação de espíritos, adivinhações e curas mágicas, de origem africana, com elementos do catolicismo.

Os físicos – como eram então chamados os médicos – e cirurgiões não tinham uma posição de relevo na sociedade. Esse cenário só mudou a partir da metade do século XVIII, quando, já formados em universidades europeias e membros de academias literárias e científicas, eles passaram a ocupar uma posição mais privilegiada.

Com prestígio muito abaixo do que possuem hoje, doutores, cirurgiões e boticários diplomados não reconheciam a proximidade de sua profissão com a feitiçaria. Pelo contrário, esforçavam-se para estabelecer a diferença entre os dois domínios, reivindicando ao governo a restrição e a regulamentação do ofício dos curandeiros. Para isso, contavam com o apoio da Igreja e das Ordenações do Reino. A Igreja Católica estabelecia a fronteira cultural entre o universo demoníaco e a cura médica associada aos saberes universitários. A medicina procurava desvalorizar o conhecimento terapêutico popular, distinguindo os procedimentos “científicos” das crenças consideradas “supersticiosas”.

Gradualmente, a medicina oficial foi ganhando força. Algumas medidas foram decisivas para que isso acontecesse. Desde 1826, D. Pedro I já havia concedido o monopólio dos diplomas em cirurgia às escolas médico-cirúrgicas do Rio e da Bahia. Em 1828, foi extinta a Fisicatura-mor, órgão do governo responsável pela fiscalização sanitária e regulamentação das artes terapêuticas. Sangradores e curandeiros foram definitivamente postos na ilegalidade. Em 1832, as duas escolas médico-cirúrgicas, que datavam de 1808, tornaram-se Faculdades de Medicina. Finalmente, em 1850, foi criada a Junta Central de Higiene Pública, logo após a primeira epidemia de febre amarela. Mas boa parte dessas medidas era “para inglês ver”, e existiam de sobra vendedores ambulantes de remédios secretos na corte ou nas províncias.

A população ainda não associava competência terapêutica aos diplomas oficiais. As autoridades, por sua vez, faziam vista grossa aos anúncios que ofereciam curas imediatas para os mais diversos males, como pernas inchadas, cancros, carbúnculos (um tipo de infecção grave), moléstias dos olhos, surdez, escrófulas (forma de tuberculose), embriaguez e morfeia (hanseníase).

Em um artigo publicado no periódico Archivo Médico Brasileiro em 1848, seu autor atestava que, na Corte, a cura da bebedeira era monopólio dos curandeiros. Uma “velha do Castelo” administrava um remédio composto de urina de gato e assafétida (um tipo de planta), e um morador da Prainha indicava à sua clientela negra uma infusão com “fedorenta”, seguida de uma purga com aloés (planta) para curar o vício da cachaça.

O uso dos remédios prescritos por médicos ou por curandeiros indicava a que camada da sociedade o cliente pertencia. O acesso aos produtos das farmácias, boticas e drogarias, muitos deles importados, eram quase sempre uma prerrogativa dos brancos ricos. A imensa população de pobres e escravos contava com remédios caseiros, fórmulas feitas com ervas nacionais e outros produtos recomendados ou administrados por curandeiros, sangradores e barbeiros – estes, além dos cortes de cabelo e de barbas, praticavam sangrias, aplicavam ventosas, sanguessugas, faziam curativos e arrancavam dentes. As receitas utilizadas por esses profissionais eram desprezadas pelos “civilizados”, por serem consideradas indignas de gente fina ou delicada. No Diário de Pernambuco, em 1837, a famosa coluna do “Carapuceiro” ridicularizava as ações terapêuticas de “negros boçais”, “caboclos estúpidos” e “velhas comadres”.

A repressão aos curandeiros, antes tolerados, recrudesceu a partir da década de 1870, quando o poder público ampliou o cerco às práticas e concepções populares de cura nos principais centros urbanos. A lei passou a ser aplicada com mais rigor, principalmente na capital do Império. O Código Penal de 1890, da nascente República, embora garantisse a liberdade de consciência e culto, sancionava a perseguição aos terapeutas populares, criminalizando as práticas do espiritismo, da magia, do uso de talismãs e das cartomancias quando empregadas para a cura de moléstias. O exercício do ofício de curandeiro também era formalmente proibido e estava sujeito a penas de prisão e multa.

As associações médicas de grande prestígio, como a Academia Nacional de Medicina e a Sociedade de Medicina e Cirurgia do Rio de Janeiro, influíram na elaboração desses dispositivos legais. Elas reivindicaram o monopólio da assistência médica para os doutores diplomados e associaram as práticas terapêuticas populares à fraude e ao charlatanismo. Ao longo dos séculos, o saber científico foi ganhando cada vez mais terreno. Hoje, é muito mais comum uma pessoa confiar em um bom antibiótico do que recorrer a um feitiço para acabar com uma infecção.

Flavio Coelho Edler é pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz e autor da tese “A constituição da Medicina Tropical no Brasil oitocentista: da Climatologia à Parasitologia Médica” (Uerj, 1999).


Saiba Mais - Bibliografia

CHALHOUB, Sidney. Cidade Febril. Cortiços e epidemias na corte imperial. São Paulo: Companhia das Letras, 1996.

GIUMBELLI, Emerson. O cuidado dos mortos: uma história de condenação e legitimação do espiritismo. Rio de Janeiro: Arquivo Nacional, 1997.

Revista de História da Biblioteca Nacional

Racismo: ninguém sente, ninguém vê, ninguém sabe o que é

Diante de tantos anos de negação e silêncio, é preciso começar a entender que os preconceitos, como o racismo, são produtos da cultura na qual estão inseridos, e como tais adaptam-se às condições de manifestação aceitáveis e estabelecidas pela sociedade, manifestando-se às claras ou de forma velada e simbólica.
Por Ana Maria Gonçalves
Diante da revelação feita por um famoso cantor brasileiro, negro, de que sua filha de seis anos estava sendo discriminada durante a aula em uma das escolas de balé mais tradicionais de São Paulo, com as outras alunas se recusando a dar as mãos para ela, ou do depoimento de uma menina, também de seis anos, aluna de escola pública, no qual conta que as coleguinhas não querem brincar com ela durante o recreio porque sentem nojo por ela ser negra, resta-nos parar e perguntar: a quantas situações de humilhação essas e outras crianças continuarão a ser submetidas pela vida afora, antes que a sociedade tome para si a responsabilidade de discutir, entender e combater o racismo?
O racismo, como o percebemos hoje, é uma instituição relativamente recente na história na humanidade. Até por volta da Idade Média, os principais fatores de discriminação eram religiosos, políticos ou referentes à nacionalidade e à linguagem do indivíduo. No século XV, quando os europeus desembarcaram na África, e principalmente com o início do tráfico negreiro, usaram a ciência a favor do colonialismo e desenvolveram teorias de superioridade evolutiva, baseadas em diferenças biológicas, que justificavam seus interesses de expansão e poder. Estava criado o racismo etnocêntrico, fundamentado em doutrinas bíblicas, filosóficas e científicas que não resistiram à evolução dos tempos, mas que deixaram marcas indeléveis e profundas nas sociedades que as usaram para justificar a escravidão, como é o caso da sociedade brasileira. O conceito de "raça" – e termos derivados – hoje em dia é apenas político e social, e se justifica porque os traços físicos (cabelo, cor da pele, formato de nariz e boca etc) característicos da população negra ainda estão ligados à percepção negativa historicamente construída.
No final do século XIX, com a abolição da escravatura e ainda sob forte influência das teses de superioridade europeia, começa a ser colocado em prática um projeto de construção de uma nova nação brasileira, que deveria ser melhorada através do embranquecimento de seu povo. Acreditava-se que, com o passar dos anos, marginalizada, inferiorizada, difamada e abandonada à própria sorte, a população negra desapareceria. Até mesmo o acesso à educação e a possibilidade de conseguir trabalho lhe foram negados, com o governo dando total prioridade a políticas que subsidiaram a vinda de mais de 3 milhões de imigrantes europeus para o Brasil. Algumas décadas mais tarde, a teoria do embranquecimento deu lugar à da miscigenação, que acabou criando um dos mitos mais prejudiciais à luta contra o racismo: o mito da democracia racial. Foi ele que, durante décadas, impediu o Brasil de se tornar um país realmente democrático, com tratamento e oportunidade iguais para todos, ao negar reconhecimento a um problema que atinge mais da metade da nossa população.
Diante de tantos anos de negação e silêncio, é preciso começar a entender que os preconceitos, como o racismo, são produtos da cultura na qual estão inseridos, e como tais adaptam-se às condições de manifestação aceitáveis e estabelecidas pela sociedade, manifestando-se às claras ou de forma velada e simbólica. É por isso que apenas a razão, que nos levou a criar leis que criminalizam atitudes racistas e algumas ações afirmativas, não será suficiente para modificar o imaginário e as representações coletivas negativas que se tem do negro na nossa sociedade, como observa o antropólogo e professor Kabengele Munanga na apresentação do livro Superando o racismo na escola. Segundo ele, "considerando que esse imaginário e essas representações, em parte situados no inconsciente coletivo, possuem uma dimensão afetiva e emocional, dimensão onde brotam e são cultivadas as crenças, os estereótipos e os valores que codificam as atitudes, é preciso descobrir e inventar técnicas e linguagens capazes de superar os limites da pura razão e de tocar no imaginário e nas representações. Enfim, capazes de deixar aflorar os preconceitos escondidos na estrutura profunda do nosso psiquismo".
Se hoje já se admite que o Brasil é um país racista, é preciso admitir também que nossos pensamentos e atitudes são condicionados por essa cultura e essa ideologia racista, pois crescemos introjetando e reproduzindo o que já está estabelecido socialmente. Para mostrar como isso funciona, um interessante trabalho, desenvolvido no departamento de Psicologia da Universidade Federal de Sergipe, analisa pesquisa realizada com crianças de 5 a 8 anos. Foi pedido a essas crianças que desenhassem uma criança branca e uma criança negra e as classificassem, em termos de preferência, em relação a cinco categorias: riqueza, beleza, inteligência, proximidade e contato. O resultado foi um alto índice de racismo, com a criança negra sendo fortemente rejeitada em todas as categorias. O que o estudo queria mostrar é que as crianças são abertamente preconceituosas, e que essa característica perde força a partir da maturação das estruturas cognitivas que permitem que ela deixe de julgar as pessoas com quem se relaciona apenas pela aparência e passe a levar em conta conceitos como bondade ou amizade. Acabou mostrando também que o racismo, longe de desaparecer com a idade e a necessidade de socialização, caso não haja nenhuma iniciativa nesse sentido por parte de pais e/ou educadores, é introjetado e velado pelo aprendizado das normas sociais vigentes, passando a se manifestar de forma indireta e, em muitos casos, inconsciente. O racismo volta então a habitar e alimentar o inconsciente coletivo, que trata de reproduzi-lo de uma geração para outra, tornando-o cada vez mais insidioso, difícil de provar e combater.
Por isso, cabe tão bem a pergunta da campanha Diálogos Contra o Racismo – Pela Igualdade Racial: onde você guarda seu racismo? Complemento com mais uma: o que você tem feito para não deixá-lo de herança para seus filhos?

REVISTA FÓRUM

A consolidação da democracia brasileira

Em 5 de outubro, nossa Constituição da República completou 22 anos. Somos uma democracia jovem, com apenas três presidentes diretamente eleitos para o cargo desde então. A sucessão presidencial em 1º de janeiro de 2011 consolidará o mais longo período democrático da história de nosso país. Há muito para se comemorar, mas é preciso avançar ainda mais.
Por Túlio Vianna
Uma democracia não é uma ditadura da maioria. Também não é um sistema no qual se garante simplesmente o direito de votar nos chefes do poder executivo e nos membros do poder legislativo e de se candidatar a estes cargos. É muito mais complexo que isso.
Se, em um edifício residencial com 10 apartamentos, a assembleia de condomínio decidisse por 9 votos a 1 que um dos condôminos não poderia utilizar o elevador por ser negro, esta norma aprovada pela maioria não seria nada democrática e, evidentemente, seria ilegal. Da mesma forma, se 80% da população brasileira – notoriamente cristã – aprovasse, por meio de um plebiscito, uma lei proibindo religiões afrobrasileiras, esta lei não seria nem democrática, nem constitucional.
Em uma democracia, há direitos que são tão fundamentais que devem ser respeitados mesmo que haja oposição por parte da maioria. Estes direitos estão previstos na Constituição brasileira e não podem ser suprimidos nem mesmo por emenda constitucional. É o caso dos direitos à igualdade e à liberdade religiosa.
Também não seria nada democrático se, no meio de um campeonato de futebol, a maioria dos clubes se reunisse para alterar as regras de pontuação de forma a impedir que o primeiro colocado se distanciasse dos demais na tabela. Ou, se durante uma eleição presidencial, a maioria do Congresso Nacional decidisse acabar com o segundo turno, de forma a beneficiar um determinado candidato que estivesse à frente das pesquisas, mas que tivesse poucas chances numa eventual aliança no segundo turno entre o segundo e o terceiro colocados.
Na democracia as “regras do jogo” devem ser respeitadas enquanto se “joga”. Não se pode admitir mudanças oportunistas nas leis a fim de beneficiar quem quer que seja, ainda que a maioria assim deseje. E é por isso que as normas que criam crimes não podem retroagir e as leis eleitorais só devem valer nas próximas eleições.
A vontade da maioria, ao contrário do que se poderia imaginar, não é soberana nas democracias modernas, pois está limitada por uma série de normas constitucionais que visam garantir primordialmente o respeito às “regras do jogo” e aos direitos fundamentais, ainda que contra a vontade expressa da maioria da população.
E é fundamental que seja assim, pois a pior das tiranias é a tirania da maioria. Se o opressor é apenas um homem ou um grupo no poder, um dia certamente a maioria se insurgirá contra ele e o derrubará. Se, porém, quem oprime é a maioria, não restará à minoria subjugada sequer uma boa dose de esperanças para acalentá-la.
Claro que um estado democrático de direito fundado no tripé soberania popular, direitos fundamentais e respeito à lei não se constrói do dia para a noite. Em 22 anos o Brasil evoluiu muito em direção ao ideal democrático, mas alguns fantasmas da ditadura militar ainda nos assombram.

Duração do mandato presidencial e reeleição

A duração do mandato presidencial tem sido um elemento de instabilidade democrática desde o início da redemocratização. Inicialmente cogitada em 4 anos pela Assembleia Nacional Constituinte, após intensa disputa política, acabou sendo aprovada em 5 anos, em benefício do então presidente José Sarney. Em 1994, a duração do mandato foi reduzida para 4 anos pela emenda constitucional de revisão nº5 e, em 1997, a emenda constitucional nº16 passou a admitir a reeleição por mais um mandato, em proveito do então presidente Fernando Henrique Cardoso, que pôde se candidatar e acabou se reelegendo. Claro que em uma democracia as regras não poderiam ser alteradas durante o jogo em benefício de um dos jogadores. A emenda da reeleição só deveria ter surtido seus efeitos a partir do mandatário seguinte, mas lamentavelmente não foi este o entendimento que prevaleceu na época.
Felizmente, o presidente Lula recusou expressamente as movimentações políticas para aprovar uma nova emenda constitucional (PEC 373/2009) que permitiria a reeleição por dois mandatos subsequentes, e pôs fim ao oportunismo político antidemocrático de mudar as regras do jogo durante o jogo. Além do mais, a impessoalidade no exercício do poder é um importante princípio republicano que nos distingue dos regimes monárquicos, e a alternância da figura do chefe do poder executivo é muito salutar.

Liberdade de manifestação de pensamento

A liberdade de imprensa no Brasil pode ser constatada em qualquer banca de jornal e é diretamente proporcional à quantidade de manchetes dos principais jornais e revistas do país “denunciando” algum “escândalo” contra o governo federal, ou seja: é quase infinita. E é ótimo que assim o seja, desde que tais “denúncias” estejam fundadas em provas concretas e não em elucubrações irresponsáveis.
Uma imprensa democrática, porém, não se resume a uma imprensa livre; é preciso que seja também plural. E infelizmente nossa imprensa é livre, mas não é plural. Não há divergências ideológicas significativas entre os principais jornais e revistas do país e estes acabam funcionando tal como um cartel de notícias, promovendo determinados partidos políticos e achincalhando seus adversários. Esta ausência de pluralismo ideológico é bastante nefasta, pois a maioria dos leitores acaba recebendo sempre a notícia filtrada por um único ponto de vista.
Muito se tem escrito e falado sobre as ameaças à liberdade de imprensa por parte de um governo opressor, mas quase nada se tem dito sobre a ameaça do poder econômico à liberdade de informação. Uma informação deturpada, seja por ordens de um governo, seja por ordens do dono de um jornal, fere a liberdade de imprensa de modo muito semelhante. E não será fechando redações que se combaterá este tipo de influência perniciosa, mas criando novos veículos de comunicação nos quais se possam expressar os pontos de vista divergentes, garantindo assim a necessária pluralidade de opiniões no acesso à informação.
O problema do pluralismo de imprensa torna-se mais crítico em relação às redes de rádio e TV, que são concessões públicas e, como tais, devem cumprir uma função social, livres de interesses econômicos, religiosos ou quaisquer outros. Diferentemente dos jornais e revistas, que podem ser criados em número ilimitado, os canais de rádio e TV são escassos. Cabe ao Estado, portanto, escolher aqueles dentre a iniciativa privada com os melhores projetos de exploração destes canais. Na prática, porém, a distribuição destas concessões estabeleceu um modelo feudal, no qual o pluralismo ideológico está muito longe de ser a regra. Uma alternativa viável a médio prazo é a consolidação e fortalecimento da Rede Brasil de Televisão com um conselho editorial independente e escolhido de forma democrática.
Por outro lado, a internet, por meio de blogues e redes sociais, tem se apresentado a cada dia como uma poderosa alternativa a garantir o necessário pluralismo na divulgação da informação. Para cumprir esta sua função social, porém, é necessário que cada vez mais pessoas tenham acesso à banda larga e que a rede permaneça livre de qualquer tipo de vigilância ou controle estatal, como recentemente cogitou-se criar no Congresso, com base no velho e manjado argumento de combate ao crime.

Combate à corrupção

Finalmente é preciso que se tenha em mente que o respeito às “regras do jogo” e, portanto, à democracia, só é possível em um Estado onde a corrupção não seja endêmica. A corrupção é antidemocrática por sua própria natureza, pois permite o tratamento desigual em função do maior poder econômico do corruptor. O combate à corrupção nas democracias modernas pressupõe a transparência dos atos da administração pública e a independência do Poder Judiciário.
A prestação de contas é corolário do ideal democrático de transparência e hoje pode ser facilmente implementada através da internet. É fundamental que todos os atos e gastos do poder público estejam devidamente documentados e acessíveis na rede para qualquer interessado, pois esta transparência permite que cada cidadão possa, da sua casa, fiscalizar a atuação dos seus mandatários.
Por fim, faz-se necessária a garantia de independência do Poder Judiciário, do Ministério Público, das polícias, dos Tribunais de Contas e das demais instituições a quem incumbe velar pela legalidade dos atos dos agentes políticos e servidores públicos. Nos últimos anos, o que se tem visto é uma Polícia Federal cada vez mais atuante no combate aos crimes de colarinho branco, com o consequente aumento de denúncias pelo MP e de condenações pelo Judiciário.
É claro que ainda há muitas violações da lei e dos direitos fundamentais em nosso país, mas um breve olhar para o passado nos alenta: nunca antes tivemos um período da história brasileira com tanta estabilidade democrática, com tanta liberdade de imprensa e com tantos corruptos sendo processados e julgados.
Nunca antes neste país fomos tão democráticos.

Outubro de 2010

Túlio Vianna é Professor da Faculdade de Direito da UFMG

REVISTA FÓRUM

Ecos da Revolução de 1930


Movimento ocorrido no início do século 20 completa 80 anos e legado se mostra atual na discussão sobre modelo do Estado
Por Moriti Neto
Há 80 anos, iniciava-se um evento que encerrava um capítulo da história da sociedade brasileira, à época calcada no monopólio do poder nacional pelos cafeicultores paulistas e em uma aliança político-eleitoral entre São Paulo e Minas Gerais. Esse pacto garantia o controle do Estado com o compromisso de alternância na presidência, numa espécie de revezamento, quando ora assumia um candidato paulista, ora um mineiro, ainda na República Velha (1889-1930).
Em contrapartida, com a queda dessa estruturação, abriam-se as páginas para o fenômeno batizado como “Revolução de 30”, precursor de um papel mais forte do Estado e do populismo, tendo como figura central Getúlio Vargas, no cenário político nacional. Muitos livros didáticos de história descrevem que a movimentação capitaneada por Getúlio derrubou a hegemonia da Região Sudeste, e que o Brasil, então um país rural e exportador de produtos agrícolas, passou a caminhar em direção a um modelo de desenvolvimento industrial e urbano.
No entanto, apesar do inquestionável valor histórico do momento, diversas questões importantes podem ser levantadas. Desde o termo “revolução”, passando pelas suas consequências e o aprofundamento de transformações sociais, a efeméride é tratada com visões diferentes no meio acadêmico, mesmo que pontualmente.
A República Velha
O sistema da República Velha mantinha o controle político e econômico do país nas mãos de fazendeiros, ainda que as atividades urbanas fossem o polo mais dinâmico da sociedade. Entre 1912 e 1929, a produção industrial cresceu aproximadamente 175%. Todavia, a política econômica do governo continuava privilegiando os lucros das atividades agrícolas. Com a crise mundial do capitalismo, em 1929, os ganhos financeiros da produção cafeeira não conseguiam se sustentar. O presidente Washington Luís (1926-1930) buscou conter a crise no Brasil, mas em vão. Naquele ano, a produção interna chegava a 28 milhões de sacas, mas só foram exportadas 14 milhões, sendo que, na ocasião, existiam imensos estoques acumulados.
Além dos problemas econômicos, as conceituações políticas também eram conflitantes, pois a República Velha não podia ser considerada um período de regime democrático no Brasil. O operariado, a burguesia e até parte do setor oligárquico sentiam-se profundamente incomodados e passaram a organizar movimentos, como greves e rebeliões. “As elites dominantes se diziam republicanas e liberais e apreciavam o modelo democrático europeu, cristalizado pelos ideais da Revolução Francesa, principalmente no que se refere aos princípios de liberdade e igualdade, mas o que estava escrito na lei e assegurado pela Constituição não se aplicava na prática. No processo eleitoral, podemos afirmar que as eleições eram constantemente fraudadas e a violência era presente. O voto, além de não ser um direito estendido a toda população adulta, também não era secreto”, explica o professor da Universidade Nove de Julho (Uninove) Renato Cancian.
Uma questão importante – que envolvia fraudes nas eleições – estava associada ao fenômeno do coronelismo e do voto de cabresto nas regiões agrárias do país, que era a expressão do controle das elites sobre os eleitores pobres. “No que diz respeito às liberdades públicas e aos direitos civis, a Constituição assegurava-os, porém, na prática, as desigualdades sociais e a hierarquização social eram anteparos à igualdade jurídica”, destaca Cancian.
O sistema político da época estava baseado na chamada “política dos governadores”, firmada durante o governo do presidente Campos Sales (1898-1902) e considerada um acordo entre as elites dominantes agrárias mais fortes do país. Tal política consistia em um pacto entre as oligarquias cafeeiras paulista e mineira, com o objetivo de estabelecer a hegemonia nacional em defesa dos interesses elitistas. Por meio de acordos entre o Partido Republicano Paulista (PRP) e o Partido Republicano Mineiro (PRM), os dois estados indicavam um nome de consenso como candidato ao governo federal e elegeram praticamente todos os presidentes da República.
“As elites agrárias cafeicultoras de ambos os estados utilizaram, no transcurso da República Velha, o poder político governamental para defender interesses econômicos. Evidentemente, as oligarquias de outros estados da federação, que estavam excluídas do pacto de dominação paulista/mineiro, tentaram se opor a isso. No final da década de 1920, as pressões e conspirações das oligarquias dissidentes ampliaram-se. Não obstante, foi o rompimento da aliança entre São Paulo e Minas Gerais, no final da década, que forneceu o estopim provocador do movimento revolucionário que solapou a República Velha” , comenta Renato Cancian.
“Naquele tempo, existiam muitos partidos localizados, regionais. Na verdade, havia uma infinidade de siglas, com interesses diversificados. O predomínio do Partido Republicano incomodava esses setores. Isso colaborou bastante com os movimentos que se seguiram. Os 18 do Forte de Copacabana, em 1922, por exemplo, pedem uma mudança política. Em 1924, ocorre o levante da Força Pública de São Paulo, também com motivações de origem política. O ambiente para 1930 começava a se desenhar”, diz o professor da Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo (FESPSP) José Paulo Martins Júnior.
O fato que ficou conhecido como Revolta dos 18 do Forte de Copacabana, no Rio de Janeiro, em 1922, foi o primeiro movimento militar (tenentista) armado, que pretendeu tirar do poder as elites tradicionais, refletindo o descontentamento com a organização política e econômica da época e característica do exército brasileiro. O levante paulista de 1924 gerou a segunda ação organizada de tenentes com objetivos semelhantes. Mais numeroso, esse segundo movimento ocupou a cidade de São Paulo por 23 dias, forçando o presidente do estado, Carlos de Campos, a fugir para o interior paulista, depois de um bombardeio ao Palácio dos Campos Elíseos, sede do governo na época. “O movimento foi forte. Já haviam ocorrido greves, mobilizações de trabalhadores, mas é mais difícil conter militares do que operários. O governo federal teve que tomar medidas drásticas. São Paulo foi bombardeada por aviões e mais de 3 mil pessoas morreram, portanto, as condições políticas para o que viria a acontecer em 1930 estavam sendo gestadas nas décadas de 1910 e 1920, desde greves do operariado até as rebeliões dos tenentes”, relata Martins Júnior.
Com a nova conformação social que surgia, ou seja, o fortalecimento de uma classe média que se organizava, as oligarquias dominantes se surpreenderam ao ter que lidar com a parcela da sociedade que exigia participação nas decisões dos rumos da nação. Faltava um fator econômico de grandes proporções para abrir de vez as portas da derrubada do sistema político.
A crise econômica mundial, ocorrida em 1929, teve influência decisiva no processo revolucionário, culminando com a tomada do poder pelos tenentes liderados por Getúlio Vargas. A economia brasileira era extremamente dependente de empréstimos externos para financiar a produção e exportação do café. “Nesse contexto, os mercados consumidores e os financiamentos externos encolheram demais. Diante da crise, as elites agrárias cafeicultoras dos estados de São Paulo e Minas Gerais, principais produtores de café, tentaram obter o apoio do governo federal, que foi incapaz, porém, de dar continuidade à política de proteção do setor cafeicultor. Assim, o ano de 1929 também deixou em evidência os limites da economia agroexportadora e a necessidade de se industrializar o Brasil”, descreve Renato Cancian.
A atuação dos estados
Alguns estados desempenharam papel relevante e decisivo no conflito político. Na sucessão presidencial de 1930, São Paulo e Minas Gerais discordaram sobre o nome do candidato que disputaria o pleito. O presidente Washington Luís apoiou a candidatura do paulista Júlio Prestes em vez de declarar-se a favor do mineiro Antônio Carlos, mantendo a política do café com leite. A atitude levou Minas Gerais a romper com a aliança e a apoiar as oligarquias de outros estados: Rio Grande do Sul e Paraíba.
Os três estados formaram um grupo político de oposição chamado Aliança Liberal, que, nas eleições, apresentou a candidatura à Presidência do gaúcho Getúlio Vargas, ex-ministro da Fazenda de Washington Luís, e do paraibano João Pessoa para vice-presidente. Nas urnas, eles foram derrotados pelo candidato do governo, Júlio Prestes, que não chegou a tomar posse.
Meses depois das eleições, o movimento que colocou Vargas no poder explodiu. Contando com o apoio militar dos tenentes, as oligarquias dissidentes de Minas Gerais, Paraíba e Rio Grande do Sul desencadearam a revolta em várias regiões. Diante de uma iminente guerra civil, as forças armadas, exército e marinha, deram um golpe de Estado, depondo Washington Luís. “Houve o assassinato de João Pessoa, num crime passional, que foi usado como motivo para o golpe militar, mas as causas verdadeiras eram outras e já estavam presentes há muito”, lembra José Paulo Martins Júnior.
Uma junta militar transmitiu o governo a Vargas. Depois de controlar os focos de resistência nos estados, Getúlio e aliados chegaram ao Rio de Janeiro, em novembro de 1930. A partir dali, vem o período designado como “Era Vargas”, que garantiu o controle do Estado brasileiro de 1930 a 1945. “Tivemos uma fase provisória, inicialmente constitucional. Depois, em 1937, um sistema autoritário, que promove mudanças na economia e nas instituições políticas, com a atuação populista de Getúlio”, ressalta a professora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) Carla Longhi.
Revolução?
Há debates sobre a consistência da rotulação de “Revolução de 30”, dada por historiadores ao golpe militar que levou Getúlio Vargas ao poder. É verdade que houve movimentação de tropas nas ruas, e que fogueiras foram armadas com móveis e cadeiras das redações de jornais governistas, em grandes cidades brasileiras. Porém, seria isso suficiente para justificar que o acontecimento seja chamado de revolução? Teriam ocorrido transformações profundas na sociedade que possam embasar a utilização do termo?
José Paulo Martins Júnior acredita que a palavra “revolução” é adequada. “Houve mudanças estruturais no Brasil a partir de 1930 em questões políticas, econômicas e sociais. As mulheres passam a exercer o direito constitucional de votar, cria-se a Justiça Eleitoral, muitos direitos trabalhistas, reivindicações históricas dos operários são atendidas, e o Estado se torna protagonista na economia. As transformações foram profundas”, argumenta.
Carla Longhi, contudo, considera que o momento não foi revolucionário pela ausência de aprofundamento das transformações, que poderiam alterar a estrutura social da época. “Eram as classes dominantes que se movimentavam, num rearranjo político. Ocorreram reformas, mas não mudanças profundas no sistema social. Creio que Movimento de 30 é mais adequado do que Revolução”, frisa.
“Houve uma reestruturação político-estatal no Brasil após a Revolução de 1930. O período do governo Vargas, dividido em três fases distintas – governo provisório, governo constitucional e Estado Novo, imprimiu um legado que perdura até os dias de hoje no que se refere à modernização das estruturas estatais e ampliação das funções do Estado brasileiro, ampliando as funções sobre as áreas econômica, política e social”, relata Renato Cancian, sobre a herança deixada pelo movimento de 1930 no sistema político.
Como legado, a história deixou reflexos importantes, que perduraram na linha do tempo e estão bastante vivos nos dias atuais. Por ele, passam debates referentes ao papel de um Estado forte, capaz de conduzir o país na direção de formatações socioeconômicas que possibilitem a mobilidade da população de uma classe social a outra, como na questão da transferência de renda, e no tamanho da presença estatal no setor econômico, preparando as bases, por exemplo, para as relações comerciais externas, seja em tempos de calmaria ou de movimentos bruscos, como na crise mundial de 2008.
Nesse sentido, a discussão se mostra atual, considerando que projetos tão diferentes, que evidenciam distância marcante na concepção de autonomia nacional, estão em curso no período eleitoral.

REVISTA FÓRUM - Outubro de 2010

Onde o popular e o erudito se encontram


Conheça a história do maestro Letieres Leite e sua Orkestra Rumpilezz, que experimenta confluências entre jazz, música erudita e candomblé
Por Pedro Alexandre Sanches
A sala de concerto está tomada por músicos elegantemente vestidos de branco. Eles formam não uma orquestra, mas uma “orkestra”, composta e disposta de modo algo diferente do habitual. Os 14 músicos de sopro formam um semicírculo ao fundo e estão todos vestidos de bermudas e chinelos. Portando trajes um pouco mais a rigor, cinco percussionistas ocupam o centro e a frente do palco. Eis a Orkestra Rumpilezz, da Bahia, idealizada e dirigida pelo maestro Letieres Leite.
Vestimentas e disposição dos músicos podem parecer detalhes de menor importância, mas não são. Fornecem imagem correspondente aos sons emitidos pela orquestra e definem o que há de subversivo nessa experiência musical. A chamada música erudita, de padrão europeu, sempre privilegiou melodia e harmonia. Ao ritmo, fosse na música “erudita” ou na “popular”, sempre coube o fundo do palco, aquele lugar apelidado de “cozinha”. O inconsciente coletivo dita, de modo geral, que melodia e harmonia são “brancas”, e ritmo é “negro”, seja aqui neste país onde (não) somos racistas, seja em qualquer parte do mundo. Na Rumpilezz, essa lógica foi simbolicamente invertida.
Não é por acaso que o mestiço Letieres Leite, de 50 anos, propõe com sua orkestra demolir o paredão que separava “música erudita” e “música popular”, “Primeiro Mundo” e “Terceiro Mundo”, casa grande & senzala. “O trabalho é inspirado na percussão baiana e dedicado aos percussionistas. A música deles possui rigor, organização, conceitos estáveis”, define Letieres. “É o contrário do que às vezes se pensa, que essa sistematização não existiria pelo fato de esses músicos utilizarem a tradição oral como ferramenta básica. A estrutura da música sacra afrobaiana é extremamente rigorosa, forte, organizada. O figurino acompanha esse raciocínio.”
A matriz essencial para a Rumpilezz é a música de candomblé, ou música sacra afrobaiana, como prefere dizer o maestro. Rum, pi e le são os nomes dos atabaques que norteiam os cânticos e toques de orixás nos ritos religiosos do candomblé. Do jazz vêm a orquestra de sopros e o zz que completa o nome da orkestra. “Houve um período em que o candomblé era perseguido pela polícia. O atabaque e a capoeira eram associados à vadiagem”, evoca Letieres. “Mas toda essa música foi preservada nos terreiros de candomblé, que são o maior centro de preservação da cultura baiana.”
Estamos perto de uma nomenclatura que é das mais polêmicas na música “popular” brasileira do final do século passado. Especialmente ao longo da década de 1990, parte substancial da música afrobaiana foi embalada para consumo imediato sob o rótulo de axé music. E Letieres conhece muito de perto essa realidade: desde 1997, ele é músico e arranjador principal da banda de Ivete Sangalo, uma das líderes incontestáveis da axé music e da indústria do carnaval baiano.
“Prefiro dizer música afrobaiana, porque a palavra axé tem um significado muito maior do que deram”, afirma o arranjador que deixou suas impressões digitais em hits de massa como “Canibal” (1999), “Pererê” (2000), “Festa” (2001), “Sorte Grande” (2003)... Refere-se aos significados do termo iorubá “axé” na religiosidade africana: energia, poder, força da natureza. Assim o maestro define o conjunto heterogêneo que engloba a música sacra afrobaiana, o pulso rítmico de agremiações percussivas como Ilê Aiyê e Olodum e, por que não?, a axé music: “É uma música que foi formatada, preservada e difundida por pessoas negras de baixa escolaridade que não conseguiram sistematizar seu conhecimento”.
Letieres demonstra ter exata percepção da dimensão que tomou a música baiana após a prospecção brutal feita pelas gravadoras multinacionais, em especial a partir do estouro ultracomercial do grupo É o Tchan. “A cultura baiana sofreu uma estagnação do sentido de invenção e investigação, em detrimento de uma arte de consumo mais imediato. Músicos extremamente criativos passaram a trabalhar em escala industrial porque têm retorno financeiro mais rápido.”
Ele é exemplo vivo disso. “Ivete é ímpar, faz os músicos se sentirem valorizados. Emprestou equipamentos para a gente”, elogia. “Ela tem a preocupação de que o ritmo seja valorizado, 70% do palco é a percussão. A prática diária de entretenimento para mim é uma escola. Operacionalmente, é uma rotina pesadíssima, mas é um prazer. A melhor opção profissional é trabalhar com essas estrelas.” Por essas e outras, não é raro Letieres estar ausente das apresentações, como aconteceu em um dos dois concertos da Rumpilezz em São Paulo, em julho passado. Quando isso acontece, a regência é assumida pelo saxofonista e flautista André Becker, de 43 anos.
Trajetória de convergências
A dupla militância de Letieres conduz a uma evidência nem sempre percebida. Por ironia (ou seriam apenas os fatos da vida?), há investimento indireto e direto de Ivete Sangalo (e de sua produtora) no trabalho experimental, rigoroso e musicalmente arrojado da Orkestra Rumpilezz. Com extratos do conhecimento intuitivo e não-sistematizado da música de rua da Bahia, Letieres espalha para além de várias fronteiras o recado de que nossa música (a brasileira, ou melhor, afrobrasileira) não é sabedoria bruta, grosseira ou de segunda categoria. Muito pelo contrário.
A trajetória profissional de Letieres é de várias convergências, desde a juventude. Era percussionista diletante em 1979, quando se tornou estudante de Artes Plásticas na Universidade Federal da Bahia (UFBA), a mesma que noutros tempos abrigou as experimentações euro/afro/brasileiras dos músicos e professores Hans-Joachim Koehlreutter e Walter Smetak, ambos alemães, e Ernst Widmer, suíço. A aproximação do sax e da flauta o levaria à Áustria em 1984, para estudar música no Konservatorium Franz Schubert, de Viena.
Foi nessa fase que começou a experimentar confluências entre jazz, música erudita e candomblé e a compor os temas que culminariam no álbum de estreia Letieres Leite & Orkestra Rumpilezz (Caco Discos/Biscoito Fino, 2009) e nos cada vez mais frequentes concertos Brasil afora. “Se eu fosse usar o samba, já estava bastante estilizado. Outro elemento já muito utilizado na música instrumental era o baião, com seus derivados. Percebi que quanto ao universo percussivo baiano havia ainda uma timidez, exceto por Moacir Santos e a Orquestra Afro-Brasileira. Comecei a escrever as primeiras composições em 1984”, lembra.
“Todos os temas são originais, só uso a música sacra afrobaiana como referência. Elejo um ritmo, como um toque de orixá. Pego um aguerê dedicado a Oxóssi, desconstruo e vou compondo para cada seção de sopro da big band”, explica. “Todos os instrumentos de sopro utilizam células rítmicas resultantes da desconstrução dos toques de candomblé. A tuba é o atabaque rum, os saxofones são os atabaques le, e assim por diante. Esse é o tecido da Rumpilezz.”
Do período em Viena para cá, aconteceram na Bahia Luiz Caldas e Ilê Aiyê, Olodum e Margareth Menezes, Daniela Mercury e Carlinhos Brown, Banda Eva e É o Tchan, Claudia Leitte e o Rebolation do Parangolé. Multivalente, Letieres tocou com Paulo Moura, Hermeto Pascoal e Raul de Souza, mas também adentrou o mainstream pop, acompanhando Gilberto Gil, Elba Ramalho, Lulu Santos, Daniela Mercury, Jammil e Uma Noites e a Timbalada de Carlinhos Brown.
Ele admite ter admiração pelo jazz baiano testado por Caetano Veloso no disco Livro (1997), mas diz que não há relação direta entre ambas as experiências: “Eu já tinha as composições muito tempo antes. Acredito que a inspiração de Livro deva ser a mesma que a minha, a música ancestral rítmica da Bahia”.
Entre os integrantes da Rumpilezz, há quem toque em filarmônicas e na Orquestra Sinfônica Brasileira, e há quem toque com Daniela, Brown e Ana Carolina. O mestre de percussão, Gabi Guedes, tocou reggae por uma década com o jamaicano Jimmy Cliff. Letieres conta que há “alagbês” do candomblé no corpo de percussionistas da Rumpilezz, e decifra: “Alagbê é o ogan que tem o cargo de cuidar dos toques e cânticos do candomblé. O atabaque rum é o elemento principal do candomblé. É muito difícil alguém tocar o rum se não for um iniciado. Tem que ser um alagbê.”
Como se vê, a Rumpilezz roça diversos elementos que costumam atiçar preconceitos em nossa sociedade ainda eurocêntrica, apesar de repetirmos à exaustão o orgulho pela “democracia racial” definida por Gilberto Freyre – e apesar de Salvador ser “a maior cidade negra fora da África”, como Letieres gosta de lembrar. A música formal produzida por sua orkestra faz fronteiras e estabelece relações diplomáticas (quando não afetivas) com a música negra das ruas, as “cozinhas” percussivas, as não raro demonizadas religiões afrobrasileiras, a axé music.
Igualmente eurocêntricos e embranquecidos, os meios de comunicação e as universidades têm sua responsabilidade na repulsa difusa com que a sociedade trata aquelas modalidades, como Letieres também demarca. “Pela riqueza e diversidade que possui, a percussão não é reverenciada como devia na academia e nos meios de comunicação.”
A participação do artista nesse mosaico está longe de se reduzir ao tão criticado bombardeio midiático da indústria axé-carnavalesca. Ele é fundador e diretor pedagógico da Academia de Música da Bahia, especializada no ensino de música popular. Mantém, no bairro da Amaralina, a Casa Rumpilezz, que além de fazer música passa adiante os saberes da orkestra para crianças (na Rumpilezzinho) e enfrenta questões de gênero: “Fui muito cobrado por não ter mulheres na orquestra, por elas mesmas. Fizemos a Rumpilezz de Saia”, conta.
Por acaso ou pelos fatos da vida, a Orkestra Rumpilezz se consolidou a partir de 2006, em concomitância com o desmoronamento do carlismo baiano e a decadência de seu criador, Antonio Carlos Magalhães (1927-2007). Governada desde janeiro de 2007 por Jaques Wagner (PT), a Bahia tem testemunhado nos primeiros anos deste século a perda de hegemonia do “axé system” e, consequentemente, uma tendência cada vez maior à diversificação musical.
Em 2009, por exemplo, a Rumpilezz participou da faixa “Maldito Mambo”, do disco Chachacha, dos Retrofoguetes, uma banda baiana de surf rock. Letieres reconhece na movimentação política motivações para as mudanças já mais que perceptíveis: “Toda alternância de poder leva à busca de coisas contrárias ao que existia”.
E, sim, o mundo, o Brasil e a Bahia continuam povoados por candidatos potenciais a “mocinhos” e “bandidos”. Mas talvez fosse conveniente dar uma espiadela mais atenta nos músicos da cozinha de uma Ivete Sangalo ou de uma Claudia Leitte, toda vez que os ouvidos ficarem cansados ou congestionados por uma propaganda chata de rede de TV paga ou por um hit chicleteiro de verão. Como diria a pálida gaúcha Elis Regina, as aparências enganam, aos que odeiam e aos que amam.
REVISTA FÓRUM

terça-feira, 26 de abril de 2011

A religião dos bichos

Pinturas rupestres, documentos imagéticos do Período Paleolítico

Desde a Idade da Pedra, os animais são vistos como mensageiros de seres divinos
Rodrigo Elias

Não é de hoje que os animais são domesticados. Esta prática começou no período Neolítico, há cerca de 10 mil anos, e fez parte do que os historiadores e arqueólogos costumam chamar de “Revolução Neolítica”, que viu surgir a agricultura e a vida sedentária.
Mas o início da submissão de alguns animais aos homens não estava relacionado a fatores econômicos desse período: alimentação e trabalho. É provável que tenha atendido a fins sobrenaturais. A morte ritualística, comum em várias sociedades pré-históricas, requeria uma quantidade regular de animais, só possível com o seu amansamento.

Antes da domesticação, entretanto, os homens já atribuíam significados sobrenaturais aos bichos. Pinturas rupestres datadas do Paleolítico Superior (entre 300.000 e 10.000 a.C.) na Europa retratam bisões, mamutes e renas com tal perfeição que se pode especular sobre a existência de indivíduos especializados nessa tarefa. Seus autores possivelmente eram sacerdotes afastados das tarefas de caça e coleta, o que indica a importância dada pela comunidade aos homens que faziam esses desenhos com fins mágicos. Na região da atual Alemanha, há pouco mais de 10 mil anos, comunidades de caçadores que seguiam manadas de renas sacrificavam o primeiro animal que capturavam em cada temporada, atirando em um lago seu corpo amarrado a uma pedra. Portanto, matavam animais com objetivos rituais.
Várias culturas próximas a nós, modernas ou antigas, enfatizam o caráter sagrado dos não humanos. O cristianismo, dentro da tradição judaica, submete os animais ao homem desde a Criação – Adão, ainda no Éden, deu nome a cada uma das espécies feitas por Deus, sublinhando assim o controle humano sobre as bestas. O próprio filho do Criador, encarnado para os cristãos em Jesus, vem ao mundo para morrer em uma oblação, como “Cordeiro de Deus”. Aliás, o carneiro, animal domesticado há cerca de 10 mil anos no atual Iraque, tem papel importante nas culturas do Oriente Médio.

Entre as funções atribuídas aos animais, uma das mais persistentes é a de mediação entre o mundo dos vivos e o dos mortos. No Egito Antigo, Anúbis, o deus da morte, era representado por um híbrido de homem e cão. O touro Ápis, um dos animais mais reverenciados entre os egípcios, era considerado um semideus, vivia em um santuário, onde era bajulado pelos sacerdotes e enfeitado com joias. Quando morria, passava por um processo de mumificação que durava cerca de 70 dias e era acompanhado por uma multidão em prantos até o seu sepultamento. No primeiro milênio a.C., as oferendas de cães, gatos, falcões e outros animais mumificados aos deuses se tornaram muito populares no Egito, como forma de comunicação com o mundo dos mortos.

Escavações e análises recentes revelam que já havia, naquela época, quem tirasse vantagem da fé alheia. Muitos sarcófagos que deveriam conter certos animais mumificados, vendidos aos fiéis para as suas oferendas, contêm um animal mais comum e, portanto, mais barato do que o previamente acertado. Em alguns casos, somente poucos ossos ou penas no lugar do bicho combinado. Nos casos mais fraudulentos, barro envolto em bandagens. No tempo dos faraós já se comprava, literalmente, gato por lebre.

O historiador Carlo Ginzburg identificou uma tradição que remonta pelo menos à Antiguidade, que perdurou durante muitos séculos em vastas extensões da Ásia e da Europa e que emprestava aos animais esta mesma função de um ser intermediário. Homens jovens saíam às ruas vestidos de cavalos, bois e outros animais no período Clássico, esmolando de casa em casa representando os mortos, que deveriam ser saciados ou homenageados.

Ao longo da Idade Média, tradições populares ligadas a este fundo de crenças foram guiadas para o que a Igreja chamou de “sabá diabólico”, ou seja, a reunião das bruxas na qual se invocava o diabo e se blasfemava. Nessas ocasiões, segundo as narrativas moldadas pelos inquisidores, as bruxas compareciam montando lebres ou gatos, além de se transformarem em animais. O diabo aparecia quase sempre sob a forma de um bode ou um híbrido de homem e animal, com os seus característicos chifres, patas e cauda. Em uma denúncia apresentada à Inquisição portuguesa em 1758, consta que uma reunião de bruxas no Piauí contava com a presença do demônio disfarçado de cavalo, cão, mas também na sua tradicional forma caprina.

Na Inglaterra do século XVI, as feiticeiras se transformavam regularmente em gatos e corujas, considerados demoníacos, segundo a historiadora Laura de Mello e Souza. Essas transformações não eram gratuitas: serviam para disfarçar a verdadeira identidade dessas malfeitoras. Camponeses contavam histórias de animais que causavam prejuízos, como roubo de galinhas e ovos. Um gato ladrão, ferido por alguém ao ser surpreendido, se transformava, no dia seguinte, em uma velha manca.

Era comum a presença dos chamados “demônios familiares” entre as mulheres acusadas de bruxaria. Estes seres assumiam a forma de cães, gatos, ratos e até mesmo de moscas, que se alimentavam do sangue das bruxas com as quais conviviam. Em 1583, a inglesa Margerey Barnes, acusada de ser feiticeira, possuía três desses demônios: um tinha a aparência de cão, chamado Dunsott; outro, parecido com gato, chamado Russoll; e o terceiro, igual a um rato, chamado de Pygine. Nos séculos XVI e XVII, ter afeição por um animalzinho doméstico podia custar muito caro na Inglaterra.

Cães e gatos ocupavam lugar central no imaginário cristão pelo menos até o final do século XVIII. Animal maligno por excelência para o europeu medieval e moderno, o felino doméstico era considerado poderosíssimo, além de companheiro das bruxas e do próprio Belzebu. Esta crença justificava a crueldade contra os bichanos – cortar a cauda ou as orelhas, queimar o pelo ou aleijar um gato poderia atenuar seu poder malévolo. Na Bretanha, relata o historiador Robert Darnton, uma pessoa podia se tornar invisível se comesse o cérebro de um desses felinos logo depois de mortos, desde que a sinistra iguaria ainda estivesse quente.

O cão também não era muito bem-visto na tradição cristã oficial até o século XVIII. O Apocalipse considera esses animais impuros, o que reitera uma antiga visão oriental que os tomava como devoradores de carniça, conforme relata o historiador Keith Thomas. Expressões comuns na Época Moderna, como “vida de cão” e “ganancioso como um cão”, revelam esta profunda camada de significados negativos atribuídos a este que acompanha o homem há pelo menos 15 mil anos. Ser chamado de “cão” ainda hoje não é um elogio.

A situação do atual “melhor amigo do homem” se modificou muito lentamente no Ocidente cristão. A população europeia, à revelia dos ensinamentos religiosos, utilizava os cães em diversas funções, mas também convivia com eles no ambiente doméstico sem fins utilitários, ou seja, por estimação. Virtudes como coragem, gratidão e, sobretudo, fidelidade, foram definitivamente associadas a esses caninos ainda no século XVII. Na iconografia da época, o cachorro aparece em cenas familiares simbolizando a fidelidade ao seu dono. A valorização do animal acabou por se manifestar em tradições religiosas. Companheiros inseparáveis de São Lázaro e São Roque, os cães recebem um jantar em estados do Norte e do Nordeste do Brasil, segundo o folclorista Câmara Cascudo. Quando um destes santos atende às súplicas dos fiéis, curando feridas ou qualquer tipo de dermatose, são os cachorros que recebem o pagamento da promessa.

No Brasil, verdadeira encruzilhada cultural, houve convergência de tradições diversas. Às vertentes europeias combinaram-se outras, africanas e ameríndias, igualmente ricas em significados sobrenaturais atribuídos aos animais. Entre os tupis da época do Descobrimento, por exemplo, a carne da onça-pintada era consumida de modo ritual, porque acreditavam que qualidades como força e coragem poderiam ser transmitidas ao homem. As divindades iorubanas, por sua vez, são alimentadas com sangue de animais, atribuindo-se maior valor aos quadrúpedes do que aos bípedes. A carne que resulta do sacrifício é consumida pelos devotos.

Ontem e hoje, no Ocidente e no Oriente, os não humanos que nos são mais próximos foram sistematicamente valorizados ou desprezados. Seja por conta de um inexplicável poder sobre o mundo onde vivemos, das suas supostas qualidades morais ou da facilidade com que se comunicam com o além, os bichos continuam a exercer uma força estranha sobre os homens.

Rodrigo Elias é professor das Faculdades Integradas Simonsen, autor da dissertação As letras da tradição (UFF, 2004) e o humano dos cães Obelix e Eowen.


Saiba Mais - Bibliografia

DARNTON, Robert. O grande massacre de gatos, e outros episódios da história cultural francesa. Rio de Janeiro: Graal, 1986.
GINZBURG, Carlo. História noturna. Decifrando o sabá. São Paulo: Companhia das Letras, 1991.
SOUZA, Laura de Mello e. A feitiçaria na Europa Moderna. São Paulo: Ática, 1987.
THOMAS, Keith. O homem e o mundo natural. São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Revista de História da Biblioteca Nacional