segunda-feira, 31 de maio de 2010

Escrevendo em Hieróglifos

Interpretar os símbolos sagrados dos faraós requer algumas regras básicas que até os não acadêmicos podem ser seguidas com certa facilidade. Confira no artigo a seguir algumas dicas e prepare-se para arriscar algumas palavras nessa fascinante linguagem

Por Moacir Elias Santos
Há muitos anos, quando ainda na infância, lembro-me de ter assistindo a um filme produzido em 1980, originalmente chamado The Awakening (O Despertar), mas traduzido aqui no Brasil como Reencarnação. Neste, havia uma cena curiosa, que mostrava o instante em que o egiptólogo Matthew Corbeck (interpretado por Charlton Heston) e sua assistente Jane Turner (Susannah York) encontravam uma grande inscrição hieroglífica, que mencionava uma rainha cujo nome havia sido apagado por seus atos malévolos. A leitura dos hieróglifos feita por ela parecia perfeita aos olhos de um leigo, mas grande foi minha surpresa, ao assistir o filme novamente duas décadas depois. As inscrições estavam corretas, mas ela estava lendo o texto de trás para frente! Acredito que os consultores do filme acabaram por esquecer este pequeno detalhe, que seria a primeira regra da interpretação dos hieróglifos: a direção da escrita.

A língua egípcia é formada por um grande número de sinais que no estágio conhecido como Médio Egípcio inclui aproximadamente setecentos hieróglifos. As imagens podem ser agrupadas dentro de diversas categorias, que apresentam figuras humanas, diversas classes de animais, plantas, edificações, objetos inanimados, entre muitas outras. Mas como seria possível, dentre tantos sinais, saber onde começa uma frase?
A resposta é algo bem fácil: basta olhar para onde qualquer uma das figuras animadas está direcionada, seja ela uma mulher sentada ou um pato em pé. Assim, se as figuras estão todas voltadas para o lado esquerdo do espectador, lê-se da esquerda para a direita, se apontarem para a direita, lê-se da direita para a esquerda. A mesma situação ocorre para as figuras que se encontram em colunas: basta observar a direção das mesmas. Esta regra possibilitou aos egípcios escreverem em quatro sentidos diferentes na horizontal e na vertical.

O leitor já deve ter observado que, por vezes, os sinais hieroglíficos estão perfeitamente organizados dentro dos espaços das linhas, colunas ou mesmo ao lado das figuras que compõe uma cena. O senso estético dos antigos egípcios era muito apurado e podemos perceber, pelos detalhes das inscrições, que achavam muito estranho a colocação de um símbolo estreito e alto ao lado de um longo e baixo. Para eles a simetria deveria ser quase que perfeita e esta foi conseguida a partir da inserção dos símbolos dentro de retângulos imaginários. Esta harmonia resultou no agrupamento, sobreposição dos sinais e, até mesmo, inversão da ordem dos hieróglifos que compunham uma determinada palavra. Neste último caso é como se pudéssemos, na língua portuguesa, inverter a ordem das letras do substantivo "cabelo", somente para que as consoantes "b" e "l" ficassem juntas, resultando nesta forma: "cableo".

A forma dos sinais hieroglíficos, em geral, pode ser reconhecida sem muitas dificuldades, o que possibilita o seu rápido entendimento se a compararmos com outros sistemas de escrita, cujos símbolos são mais abstratos. Antes da decifração dos hieróglifos por Jean-François Champollion, em 1822, acreditava-se que a escrita egípcia era composta exclusivamente por um único tipo de sinal, o pictográfico. Na realidade, o sábio francês concluiu que os hieróglifos poderiam ser classificados também como ideográficos, fonéticos e determinativos, cada um com um valor gramatical diferente. Vejamos o que significa cada um destes sinais.


Em busca do sentido

Esta imagem de uma arquitrave do templo de Medinet Hhabu apresenta o disco solar alado com uma inscrição, contendo os dois nomes do faraó Rramsés III. A leitura se faz do centro para as extremidades, conforme indicado pelas setas.


A organização dos sinais hieroglíficos é feita dentro de retângulos imaginários. Note como os sinais são agrupados e sobrepostos. A inscrição é de uma parede do templo do deus-crocodilo Sobek, em Kom Ombo

Os pictográficos podem representar um objeto, um ser ou mesmo uma idéia. Podemos afirmar que um desenho pictográfico é um signo-objeto.
Vamos observar como isto ocorre na prática, com dois exemplos referentes aos sinais de "casa" e "braço". Para escrever a palavra "casa", os escribas egípcios desenhavam a imagem da planta baixa de uma residência com um só cômodo e colocavam ao lado desta, ou abaixo, um pequeno traço vertical, que denominamos "traço determinativo", para confirmar que o sinal representa realmente uma casa. Já a palavra "braço" se escreve com o sinal de um antebraço e, tal como no caso anterior, é necessária a colocação do traço determinativo para confirmar o sentido do sinal, mostrando que se trata realmente de um braço.


Pronúncia

Antes de prosseguirmos com os tipos de sinais são necessárias algumas explicações sobre a pronúncia das palavras e a transliteração. Como o egípcio antigo que era falado em tempos faraônicos é uma língua morta, e pelo fato de que as vogais não eram utilizadas na escrita, tal como ocorre na língua árabe, os estudos sobre a fonética egípcia são um campo difícil. Quem assistiu aos filmes hollywoodianos Stargate, A Múmia e O Retorno da Múmia deve ter ouvido algumas palavras que soariam como se escutássemos vindas dos antigos egípcios. Mas na realidade, o único eco que ainda podemos ouvir está presente na língua Copta, que se conservou graças à liturgia da Igreja Copta no Egito, sobre a qual veremos mais neste texto.
Mas como pronunciar o egípcio se não existem vogais, apenas consoantes e semivogais?

A resposta, novamente, é fácil. Os pioneiros da filologia egípcia criaram um sistema para permitir a vocalização das palavras, adicionando um "e" quando temos duas consoantes juntas. Assim, para a palavra "casa", que possui valor sonoro "pr", lê-se "per". No Brasil, todos os pesquisadores que aprenderam a língua egípcia com o Prof. Dr. Ciro Flamarion Cardoso, seguem a pronúncia dos egiptólogos franceses para as palavras. Por exemplo, quando aparece um "w" em alguma palavra, pronuncia-se "u". O "a" e o "i", que são semivogais, são lidos como tais. Esta pronúncia é um pouco diferente para os falantes de língua inglesa e alemã. Tais convenções são totalmente artificiais, portanto, para quebrar a monotonia. No caso de algumas palavras ou nomes de reis, optou-se por trocar o "i" pelo "a", além de inserir, às vezes, a vogal "o". Por exemplo, se sempre seguíssemos a convenção egiptológica pronunciaríamos o nome de um rei assim: "Imenhetep", mas na literatura pode aparecer Amenhotep ou mesmo Amonhotep. Isto, sem dúvida, cria certas confusões para os leigos, mas os pesquisadores já se acostumaram com a variedade destas pronuncias em particular, inclusive também pela existência de variantes provenientes da língua grega, como "Amenófis" para Amenhotep.

Outra convenção feita pelos egiptólogos está relacionada à transliteração das palavras egípcias. Esta é uma forma de transformar sinais hieroglíficos em letras para que possamos entender a pronuncia dos mesmos. O sinal hieroglífico para a palavra "casa", que mencionamos acima, é transliterado "pr". Neste processo apenas os sinais que possuem valor sonoro ou fonético aparecem. Outros, que veremos adiante, como os complementos fonéticos e determinativos, não são marcados na transliteração.

Ideograma

O segundo tipo de sinal é o ideograma, cujo significado está relacionado à apresentação de uma idéia. Contudo, diferentemente do pictograma, o ideograma não trata do próprio objeto, mas do conceito apresentado por ele. Vejamos um exemplo: a imagem de um homem com a mão na boca pode expressar diversas situações relacionadas ao gesto, tal como o ato de "falar" - mdw, de "ter sede" - ib, e mesmo, de "comer" - wnm. Embora façamos uma distinção entre sinais pictográficos e ideográficos, diversas gramáticas de Médio Egípcio não o fazem. Tratam os pictogramas e os ideogramas como se representassem o mesmo conceito, relacionado a uma idéia.
Na língua egípcia quase todos os sinais são fonéticos, isto é, são figuras que representam um som específico e que podem ser divididas em três grupos: uniconsonantais ou uniliterais, biconsonantais ou biliterais, e triconsonantais ou triliterais. A diferença entre os grupos é justamente o número de sons.

o grupo de uniconsonantais são os que representam uma única consoante. Na língua egípcia existem vinte e quatro sinais deste tipo, alguns com diferentes formas, que corresponderiam ao pseudo-alfabeto. Nas tabelas abaixo temos o sinal hieroglífico, sua transliteração e o respectivo valor sonoro:

o segundo grupo de sinais fonéticos é o dos biconsonantais, isto é, daqueles que representam duas consoantes. o número de sinais nesta categoria atinge aproximadamente uma centena. A tabela ao lado apresenta alguns dos mais comuns:



As palavras que são formadas por sinais biconsonantais ou triconsonantais podem ser seguidas por outros sinais fonéticos. estes são chamados "complementos fonéticos". embora estes hieróglifos tenham um valor sonoro, pois a maioria pertence ao pseudo- alfabeto, no contexto em que aparecem, não devem ser lidos. Sua função nas palavras era de facilitar o aprendizado da escrita e da leitura, além de enfatizar ou preencher espaços se houvesse necessidade. o último tipo de sinal é chamado de determinativo. diferentemente dos demais, ele não possui nenhum valor fonético, quando aparece ao final de uma palavra. Seu uso está restrito a identificar um sentido, ou o seu real significado. os determinativos também servem para localizar o final de uma palavra, já que na língua egípcia não há espaços para a separação entre elas. Na língua egípcia também encontramos algumas particularidades no que se refere à escrita. Algumas palavras relacionadas a nomes de divindades e pessoas importantes, como o rei, são colocadas à frente das demais em sinal de respeito. Esta alteração chama-se inversão respeitosa ou Transposição Honorífica.

Encontramos, igualmente, determinadas palavras que podem sofrer abreviação por falta e espaço no local onde se encontram, seja e uma estela ou em uma parede


Uma Gramática Inicial
Para a leitura de um pequeno texto são necessárias explicações sobre mais algumas regras gramaticais. embora elas representem o primeiro passo para o aprendizado da escrita hieroglífica, há muitas outras que omitiremos aqui por razões ligadas à complexidade e ao espaço

Gênero e Número
H á no egípcio dois gêneros: masculino e feminino. Substantivos masculinos não possuem nenhuma desinência, já os femininos contêm um t no final das palavras. Por exemplo:


Note que no exemplo abaixo, quando a palavra está no feminino, o determinativo também muda - a figura do homem sentado foi substituída pela da mulher sentada. os números são três: singular, dual e plural. o singular não possui nenhum sinal. As terminações no dual são wy para o masculino e y para o feminino
O plural é designado com w para o masculino e wt para o feminino. Os três traços também designam o plural. O plural arcaico era feito com a triplicação do símbolo.
Genitivo direto
O genitivo é formado pela união de dois substantivos, podendo ser expresso de duas maneiras, direta e indireta, isto é, com ou sem uma partícula de ligação. é comum em títulos e frases onde os substantivos estão estreitamente conectados. Podem ser traduzidos por: de, do, da, dos e das. No genitivo direto não há partícula de ligação. Exemplos:


Genitivo direto
Já o genitivo indireto possui uma partícula de ligação (adjetivo genitivo) da seguinte forma:


Na escrita egípcia os adjetivos seguem a forma do gênero e do número do substantivo que descrevem e aparecem depois do substantivo. Por exemplo:


Pronomes sufixos
Estes pronomes indicam a quem uma coisa pertence. Podem ser usados como sujeito depois de um verbo, como pronome possessivo depois de um substantivo, como pronome pessoal depois de uma preposição e como objeto depois de um infinitivo. Necessariamente eles devem ser acompanhados de um ponto na transliteração. Assim temos:


Preposições
Há muitas preposições na língua egípcia. Vejamos algumas:




Numerais Cardinais
Os numerais cardinais egípcios aparecem normalmente após o substantivo a que pertencem. Mas há exceções, em que os numerais podem aparecer antes. quando isso ocorre há uma preposição, tal como n ou m, entre o numeral e o substantivo. Nesse caso, o número "um" (wa) tem uma função de artigo indefinido.

Abaixo, como são escritas as unidades e as dezenas:




Fonte de informações
Parte do patrimônio mundial da Uunesco, o templo de Karnak (acima) era conhecido no Antigo Eegito como Iipet-Sut ou "o melhor de todos os lugares". No médio império era conhecido como "Iipt-Iiswt" (o eleito, no sentido de local, para os tronos divinos), conforme inscrição na parede da capela de Senusert Ii. Oos hieróglifos espalhados por todo o complexo foram de vital importância para aprimorar o conhecimento moderno da lingua dos faraós e continuam sendo alvo de extensas pesquisas até hoje.

Para saber

Até hoje não existe nenhuma obra publicada em língua portuguesa que abarque toda a gramática do Médio Egípcio. O Prof. Ciro Flamarion Cardoso escreveu duas versões que atualmente utiliza em suas aulas na Universidade Federal Fluminense, mas que ainda não foram publicadas. Recomendamos os seguintes livros que apresentam alguns passos iniciais:


BAKOS, M. M. O Que São Hieróglifos? São Paulo: Brasiliense, 1996. (Primeiros passos) DAVIES, W. V. "Os hieróglifos egípcios". In: Lendo o Passado: do Cuneiforme ao Alfabeto. A História da Escrita Antiga. São Paulo: Melhoramentos, 1996. p. 94-173. PARKINSON, R. O Guia dos hieróglifos egípcios: Como Ler e Escrever em Egípcio Antigo. São Paulo: Madras, 2006.

Revista Leituras da História

Religião e Filosofia Chinesas


Taoísmo

O Taoísmo é o único conjunto de ensinamentos filosóficos e práticas religiosas que se originou na China. Suas raízes surgem com os antigos panteístas chineses e crenças xamânicas. Foi criado por Lao-Tsé durante o Período dos Estados Guerreiros e se tornou uma religião organizada no século 5 d.C. Seu texto fundamental é o Tao Te Ching, originalmente escrito por Lao-Tsé, e reflete sobre o caminho para a humanidade eliminar o conflito e o sofrimento.

Os taoístas acreditam que o homem deve viver em harmonia com a natureza por meio do Tao, ou “O Caminho”, a idéa de uma grande harmonia cósmica. As crenças taoístas ressaltam a auto-desenvolvimento, a liberdade e a busca da imortalidade. O Taoísmo é fortemente influenciado pela religião popular chinesa, e os deuses taoístas são figuras históricas que demonstraram poderes excepcionais em vida.

Algumas divindades taoístas:
Imperador Jade
Considerado o soberano supremo de todas as divindades chinesas, o Imperador Jade teria criado a humanidade a partir do barro. Os taoístas rezam para ele para ter boa sorte e longevidade em seu aniversário, e também na noite do Ano Novo Chinês.

Cai Shen
O Deus Chinês da Prosperidade e Riqueza é amplamente cultuado pelos chineses – por razões óbvias! Acredita-se que Cai Shen teria sido um general da Dinastia Qin, e é representado por um tigre negro.



Budismo

O Budismo prosperou pela primeira vez na China durante a Dinastia Han. Uma forma radical do Hinduísmo em sua origem, o Budismo chegou à China pela Índia, e então se espalhou pelo resto da Ásia e outros lugares. Foi fundado durante os séculos 4 ou 5 a.C. no Nepal por Sidarta Gautama, mais conhecido como Shakyamuni, e reconhecido pelos budistas como o Buda Supremo.

O Budismo acredita na pureza da mente e das ações, e na purificação do carma (a lei da causalidade moral). As boas ações geram uma reação de mesma qualidade e intensidade, nesta vida ou em uma outra encarnação, gerando carma positivo, e a mesma lei age sobre as más ações, gerando carma negativo. Com o carma livre de toda a negatividade, é possível atingir o estado do nirvana – o fim do sofrimento trazido pela existência cíclica.

Algumas divindades budistas:

Gautama Buda
Sidarta Gautama é conhecido como o Buda Supremo, sendo a personalidade chave do Budismo. De acordo com antigos textos budistas, o fundador do Budismo era filho de um rei. Ele se tornou monge como forma de superar o sofrimento humano, finalmente alcançando a iluminação e transformando-se no Buda.

Kuan Yin
Mais conhecida como a Deusa da Compaixão, Kuan Yin é venerada por Budistas e Taoístas como um ser iluminado e imortal. Seu nome significa “Observando os Sons do Mundo Humano”. Em sânscrito, ela é Padma-pâni, ou “Nascida do Lótus”.

Kuan Yin é fortemente associada ao vegetarianismo, devido à compaixão por todas as criaturas vivas, e também cultuada como deusa da fertilidade.



Confucionismo

O Confucionismo foi um dos mais importantes aspectos da vida chinesa de 100 a.C. a 1900 d.C., influenciando áreas como a educação e o governo, além de orientar o comportamento social e os deveres do indivíduo em relação à sociedade.

Confúcio nasceu em uma família nobre, mas empobrecida, durante a Dinastia Zhou Oriental. Seu sistema moral é baseado na empatia e na compreensão. É centrado em três conceitos, denominados li ou “ação ideal”, yi ou “honradez”, e ren ou “compaixão humana ou empatia”. De acordo com o Confucionismo, uma vida boa e obediente só poderia surgir em uma sociedade bem disciplinada, que valoriza a cerimônia, o dever, a moralidade e o serviço público.

Confúcio ensinou o valor do poder, e acreditava que a solidez da lealdade familiar, o culto aos ancestrais, o respeito pelos mais velhos e a unidade familiar formavam a base de um bom governo. Em um de seus ditados, conhecido como “Regra de Ouro”, ele declara que “um homem deve praticar o que prega, mas também deve pregar o que pratica”.

Suas opiniões mais tarde se difundiram pela China através de seus discípulos, e muitas pessoas aprenderam com seus sábios ensinamentos.

Discovery Channel

A Grande Muralha da China

Photograph by Gavin Hellier/Getty Images
National Geographic

A Grande Muralha da China

A Grande Muralha da China começou a ser construída pelo Imperador Qin durante a Dinastia Qin, para defender seu reino contra a pilhagem de tribos nômades. Sua construção prosseguiu ao longo de sucessivas dinastias. O trecho da Muralha que ainda permanece nos dias de hoje era parte da Rota da Seda, e foi construída durante a Dinastia Ming. Ela se estende por cerca de 6.350 quilômetros.

Ao longo dos séculos, a Muralha foi guarnecida por exércitos com o objetivo de alertar ao primeiro sinal de invasão, e também como primeira linha de defesa. Diferente do que se acredita, seu propósito não era tanto deter a invasão dos Manchus e das tribos nômades do norte, mas impedí-los de roubar propriedaddes e fugir da China.

Depois da formação da Dinastia Qing, a Muralha já não tinha utilidade, pois o país passou a ser governado pelos mesmos povos contra os quais ela havia sido construída. Ela então se tornou uma fonte de materiais de construção para os vilarejos vizinhos, contribuindo para sua deterioração e destruição. Discovery Channel

Batlle



Montevidéu - 1914
Escreve artigos caluniando os santos e pronuncia discursos atacando o negócio da venda de terrenos no Além. Quando assumiu a presidência do Uruguai, não teve outro remédio a não ser jurar por Deus e pelos Santos Evangelhos, mas em seguida esclareceu que não acreditava em nada disso.
José Batlle y Ordónez governa desafiando os poderosos do céu e da terra. A Igreja prometeu-lhe um bom lugar no inferno: atiçarão o fogo as empresas por ele nacionalizadas ou por ele obrigadas a respeitar os sindicatos operários e a jornada de trabalho de oito horas; e o Diabo será o macho vingador das ofensas que ele inflingiu ao setor masculino.
- Está legalizando a libertinagem - dizem seus inimigos, quando Batlle aprova a ei que permite às mulheres se divorciarem por sua própria vontade.
- Está dissolvendo a família - dizem, quando estende o direito de herança aos filhos naturais.
- O cérebro da mulher é inferior - dizem, quando cria a universidade feminina e quando anuncia que em breve as mulheres votarão, para que a democracia uruguaia não caminhe com uma perna só e para que não sejam as mulheres eternas menores de idade que do pai passam às mãos do marido.

Barrán, José P., e Benjamín Nahum. Batlle, los estancieros y el Império Británico. Las primeras reformas, 1911/1913. Montevidéu, Banda Oriental, 1983.
Machado, Carlos. Historia de los orientales. Montevidéu, Banda Oriental, 1985.

Memórias do Fogo III
Eduardo Galeano

domingo, 30 de maio de 2010

Manuscrito de Voynich: tremendo estelionato



Manuscrito de Voynich: tremendo estelionato
O manuscrito de Voynich, um dos maiores enigmas da história, pode ser uma grande fraude
por Maria Fernanda Almeida
Durante os últimos cinco séculos, um livro conhecido como manuscrito de Voynich intriga criptógrafos, padres, matemáticos e até reis. Escritas numa língua indecifrável e ilustradas com plantas, símbolos zodiacais e mulheres nuas, suas 240 páginas parecem revelar algum segredo milenar, uma enigmática fórmula de alquimia. Mas esse mistério pode ter sido revelado. O cientista da computação Gordon Rugg, da Universidade de Keele, na Inglaterra, acredita ter decifrado o código do livro, e arremata: o documento significa nada, coisa nenhuma. É puro conto do vigário armado para arrancar dinheiro de um abastado imperador.

Revelado ao mundo em 1912 pelo colecionador americano Wilfrid Voynich, que emprestou seu nome ao mistério, o manuscrito não tem autoria nem data de nascimento conhecidas. Suas letras foram comparadas com numerais romanos e com os alfabetos latino, chinês, e árabe, entre outros. Para tentar decifrar o mistério, Rugg valeu-se de técnicas do próprio século 16, período em que o livro surgiu.

Com um instrumento chamado Grade de Cardano, composto de 40 linhas e 39 colunas, ele criou uma tabela e a preencheu com sílabas do “voynichês”. Sobre a tabela, deslizou um cartão com janelas dispostas ao acaso. Conforme os movimentos do cartão, diferentes palavras formaram-se. “Obtivemos palavras com os mesmos padrões lingüísticos do manuscrito”, diz Rugg.

Mas essa semelhança poderia ocorreu mesmo se as frases do livro tivessem um sentido. “O método produz uma imitação ao acaso assim como as palavras de um idioma. Por isso, o livro ainda pode ter sido escrito em língua natural”, afirma Jorge Stolfi, professor de computação da Universidade de Campinas, que estuda o manuscrito há seis anos.

A maior evidência da fraude é que a Grade de Cardano era conhecida pelo alquimista Edward Kelley, com quem Rodolfo II, imperador da Boêmia, atual República Tcheca, obteve o manuscrito de Voynich. Entre 1576 e 1606, o rei Rodolfo levou ao Castelo de Praga ricas coleções de relíquias e obras de arte. Como também era dado a investigações de alquimia e magia negra, teria sido uma presa fácil para Kelley. A malandragem teria valido 600 ducados, segundo arquivos do imperador. Algo em torno de 150 mil reais hoje em dia.

Revista Aventuras na História

Papel higiênico


Papel higiênico
por Cynthia Almeida Rosa
A velha toada de criança diz que quem não tem papel se limpa com jornal. Verdade? Mais que isso. Além das notícias impressas, os seres humanos já tiveram de se virar com folhas, grama, neve, musgo, lã de carneiro e até mesmo areia.

Uma alternativa menos áspera era defecar nos rios, para facilitar o trabalho. “No Brasil, usava-se muito a palha de milho quando ainda verde. A palha seca pode machucar”, afirma a socióloga Heleieth Saffioti, da PUC-SP. Ela conta que no interior de São Paulo, nos anos 50, a folha ainda era bastante utilizada. “Até hoje, em locais como as vilas nas margens do rio São Francisco, tem gente que se limpa com folhas.”

Já reis usam o papel higiênico desde o século 14, quando o artigo foi inventado pelos chineses. Em 1391, eles produziram 720 mil folhas de papel para uso exclusivo da corte. Entre a nobreza européia, papel higiênico era um artigo que media poder. O rei francês Luís XIV (1638-1715), apesar de ser conhecido pelo tremendo fedor, era fã de pequenas toalhinhas de lã, que não machucavam seu bumbum real.

O rolo de papel higiênico contemporâneo foi obra do nova-iorquino Joseph Gayetty. Era chamado de “papel terapêutico” e já nasceu, em 1857, perfumado com babosa (a popular Aloe vera). O pacote com 500 folhas custava 50 centavos e o nome de Gayetty estava impresso em cada uma delas. No fim do século, como vários outros artigos antes restritos à realeza, o papel higiênico passou a ser fabricado em escala industrial.

Revista Aventuras na História

Liberdade, cidadania e política de emancipação escrava



Liberdade, cidadania e política de emancipação escrava

Jefferson Cano
Doutorando em História Social pela Unicamp


RESUMO

Este artigo analisa o papel político dos fazendeiros campineiros no processo de emancipação escrava. Ele sugere que a ação daqueles senhores de escravos nos anos 70 do século XIX, tentando preservar a força de trabalho escrava, deve ser entendida dentro de um projeto político mais amplo - o projeto liberal, que guiava a construção do Estado imperial.

Palavras-chave: Liberalismo, Escravidão, Abolição, Liberdade, Cidadania


"Sem a população escrava de Atenas, vinte mil atenienses não poderiam deliberar em praça pública todos os dias."

"O perigo da liberdade moderna, é que absorvidos no gozo de nossa independência privada, e na busca de nossos interesses particulares, nós não renunciemos muito facilmente a nosso direito de participar do poder político."

Benjamin Constant. De la liberté des anciens comparée à celle des modernes, 1819



A instituição da escravidão, respeitadas consideráveis diferenças de tempo e lugar, sempre veio introduzir um nível a mais de complexidade nas relações entre as esferas do público e do privado, tal como as entendemos hoje. Esta complexidade era, por exemplo, o que expressava muito oportunamente o cônsul romano Plínio, o moço, em uma de suas Cartas, ao afirmar que, para o escravo, a casa do senhor era como que uma res publica, onde ele era cidadão (PLINY, 1992, p. 48).

O ilustre missivista retratava no domínio sobre seus escravos como que uma reprodução microcósmica do espaço público, ao mesmo tempo que exemplificava como privadamente eram criados os limites deste espaço; "dentro dos limites de sua casa", os escravos tinham reconhecidos seus direitos sobre o que viessem a possuir, e mesmo lhes era permitido fazer testamentos, que eram tratados como se legalmente firmados: as instruções dos escravos eram cumpridas pelo senhor como se este "agisse sob ordens".

Se, por um lado, a magnanimidade de um senhor podia conferir a seu escravo, privadamente, o reconhecimento de direitos que não lhe dava a lei civil, por outro lado, o ato exclusivamente privado da alforria era capaz de trazer (aí sim legalmente) o escravo para a mesma categoria social de seu exsenhor. Assim, um ex-escravo de um cidadão romano tornava-se, obedecidas algumas condições, também um cidadão, podendo ascender, ao menos perante a lei, até mais que outras categorias de homens nascidos livres, mas não cidadãos (FINLEY, 1989, p. 134; The Institutes of Gaius, 1988).

A correspondência privada de Plínio não seria nada de especialmente esclarecedor para nossos propósitos, a não ser porque, cerca de dezenove séculos mais tarde, em 1866, o exemplo da prática romana de manumissões seria acenado pelo jurista brasileiro Perdigão Malheiro como uma maneira de se extinguir no país a "diversidade de classes, suas rivalidades e odiosidades" (MALHEIRO, 1976, p.143). Desde então, tem sido muito recorrente a lembrança de Perdigão Malheiro sobre as restrições aos libertos e a seus "direitos de cidadania" no Brasil do século XIX (CUNHA, 1985, pp. 62-ss.). Entretanto, afirmações deste tipo sobre a sociedade imperial correm um grande risco de resvalar no anacronismo, desconsiderando-se as especificidades do conceito de cidadania ao qual se referem, tão diferente do que será empregado no século XX, num mundo exclusivo de homens livres, quanto daquele que empregava Plínio entre os séculos I-II da nossa era. Uma especificidade que vinha expressa, de maneira muito clara, pelo próprio Perdigão Malheiro:

"(...) é Cidadão Brasileiro por nascimento o liberto que no Brasil tenha nascido (...) Mas a lei, atendendo a preconceitos de nossa sociedade, (...) tolhe aos libertos alguns direitos em relação à vida política e pública." (MALHEIRO, 1976, p.141, grifos do autor)

E de fato a legislação acabava excluindo da esfera política a maioria da população — tanto livre quanto escrava. Esta exclusão já foi interpretada como uma contradição inerente à vida política do Império, que tentaria acomodar o direito de uma sociedade escravista à linguagem do liberalismo (CUNHA, 1987, p. 140; CARVALHO, 1987, p.162); assim, o liberalismo no Brasil teria sido sempre "uma flor espúria e frágil" (COSTA, 1975, p. 9), desprovido de seu "conteúdo pleno e concreto" (BOSI, 1992, p. 195), e que se via obrigado a "verdadeiras contorções discursivas" (MALERBA, 1994, p. 140) para acomodar-se à realidade de uma sociedade escravista.

Vista sob outro prisma, porém, quando nos atemos mais à própria "linguagem do liberalismo", parece muito menos tratar-se de uma contradição, do que de uma perfeita consonância entre aquela sociedade e o liberalismo da época que, fosse no Brasil ou na Europa, tinha na própria exclusão a sua pedra fundamental. Dessa maneira, deixamos de limitar o entendimento da sociedade imperial por algumas premissas, que parecem apresentar-se como conclusões; pois tomar como um a priori a incompatibilidade entre a sociedade escravista do Brasil oitocentista e a ideologia liberal significa, em geral, ter por suposto um conceito de liberalismo como uma doutrina que "pleiteava uma horizontalidade entre indivíduos livres e iguais — pressuposto para as relações contratuais de livre mercado" (MALERBA, 1994, p. 34), definição esta perfeitamente de acordo com a auto-representação desta ideologia, mas que peca, quando menos, por desconsiderar as experiências históricas, se não boa parte da própria fala liberal.

Estaria muito além das pretensões deste artigo uma discussão pormenorizada da teoria liberal, a começar pelo próprio conceito de liberalismo, que não deixa de levantar inúmeros problemas para aquele que queira dele aproximar-se. Na verdade, se nos ativéssemos rigorosamente aos significados históricos, teríamos dificuldades até mesmo em identificar este conceito na acepção que lhe conferimos hoje. Do ponto de vista meramente etimológico, encontramos antes o uso do adjetivo liberal, e só posteriormente o do substantivo liberalismo, ambos, aparentemente, de uso generalizado primeiro no francês, e daí disseminados para outros idiomas. Segundo nos informa o dicionário Le Grand Robert no verbete "liberal", esta palavra, em sua acepção de "favorável às liberdades individuais, no domínio político", dataria de 1750, quando utilizada pelo Marquês d'Argenson. Também no dicionário de Littré, editado em 1889, encontramos este mesmo sentido, de "favorável à liberdade civil e política", ainda que datado um pouco menos precisamente, derivando "pelo menos do consulado".

Quanto ao verbete "liberalismo", cuja primeira aparição é datada pelo Robert de 1818, parece ter feito uma peregrinação muito mais lenta pelos vocabulários políticos, visto que ainda não constaria do Novo Diccionário da Lingua Portugueza de Eduardo de Faria, editado no Rio de Janeiro em 1859 — data bem avançada, se considerarmos que a denominação de "liberal" já era então moeda corrente na vida política do Império há décadas. Mas mesmo onde encontramos um eloqüente verbete dedicado à "esta bela palavra liberalismo", como no enciclopédico Grand Diccionnaire Universel du XIX Siècle, de Pierre Larousse, não avançamos além do sentido já identificado em "liberal", ligado à defesa das liberdades civis e políticas, e identificado a um partido:

"Na tribuna, na imprensa e até nas sociedades secretas, ele retomou a luta engajada havia trinta anos entre a Revolução Francesa e o antigo regime" (LAROUSSE, 1873, p. 465)

Luta localizada então na França da restauração bourbônica, contra o "restabelecimento do antigo regime com todas as suas iniqüidades (...) sob a égide da monarquia absoluta". Segundo nos informa este dicionário, o nome de liberais teria sido lançado como uma injúria pelos realistas aos seus adversários da oposição, que prontamente o assumiram e popularizaram, substituindo o de independentes.

Assim, o liberalismo era, adentrando o último quartel do século XIX, identificado à bandeira de Lafayette, não de Adam Smith, pois o lugar deste era em outro verbete do mesmo dicionário, "libreéchange", uma adaptação do inglês "free trade", ao contrário de "liberalisme", palavra autóctone. Mas era aí, nos princípios do "libre-échange", que "se resumem na famosa divisa: laissez faire, laissez passer" (LAROUSSE, 1873, p. 482), que encontrávamos a definição do que chamamos comumente liberalismo econômico.

Por estarem fundamentados no direito natural, os princípios do laissez faire, laissez passer seriam, "num futuro próximo, a lei econômica geral de todos os povos civilizados". Mas apesar desta convicção, mesmo o confiante dicionarista hesitava em endossar as opiniões mais extremadas de um economista como Fréderic Bastiat, aquele que teria levado "resolutamente até ao absurdo as conseqüências excessivas de um princípio verdadeiro, mas absoluto demais". Estas conseqüências excessivas surgiam em seu estudo sobre as Harmonias Econômicas, de 1850, que tentava responder a questão sobre até que ponto um governo tem o direito de intervir nas relações do trabalho individual. Da leitura de Bastiat o nosso dicionarista concluía que

"Se (...) chegamos até a negar a existência de interesses coletivos; se uma sociedade política não é senão a justaposição de indivíduos gozando, cada um sobre o terreno que ocupa, de plena soberania e plena independência; se (...) a única missão que eles consentem ao poder público é a de manter entre eles a balança igual e de velar pela segurança comum; se o direito de propriedade, com todas as conseqüências que dele decorrem, está além da esfera legislativa, de maneira que a lei não deve intervir senão para consagrá-lo e para fortalecê-lo, e não para regulamentá-lo; se, para dizer tudo em uma palavra, o Estado é apenas uma ficção, e somente o indivíduo uma realidade, então nem há questão, e todos os tratados de comércio entre nações, desde os fenícios até nossos dias, foram usurpações."

Ora, fica claro deste sumário de princípios que, embora o vocabulário da época nos indique uma cesura conceitual entre liberalismo político e liberalismo econômico, em nenhum momento pode-se distinguir claramente estas duas categorias, que teimavam em imbricar-se nos princípios da economia política. Esta tendência à separação e à classificação entre as esferas do cotidiano já foi ressaltada com muita pertinência por E.P. Thompson, ao lembrar que as premissas da economia política "propunham ser possível não só identificar determinadas atividades como 'econômicas', mas também separá-las, como campo especial de estudos, das outras atividades (política, religiosa, legal, 'moral' — como a área das normas e valores era então definida — cultural etc.)" (THOMPSON, 1981, p. 71).

Mas esta tendência à compartimentação não impediria a construção de um projeto de saber (e portanto de poder, lembraria Bacon) abrangente, fosse em um Adam Smith, precedendo sua Riqueza das Nações (1776) de uma Teoria dos Sentimentos Morais (1759), fosse do próprio Bastiat, apontando, através de suas "harmonias", um encadeamento de categorias que cumpriam o percurso da economia à política e do indivíduo ao grupo:

"Indicarei algumas das relações, ou melhor das harmonias da economia política com as outras ciências morais e sociais, lançando um olhar sobre graves assuntos expressos por estas palavras: interesse pessoal, propriedade, comunidade, liberdade, igualdade, responsabilidade, solidariedade, fraternidade, unidade." (BASTIAT, 1954, p. 160)

Poderíamos ainda precaver-nos contra esta tentação classificatória citando o exemplo de Locke, que atrela a política definitivamente à economia ao lembrar que "o fim maior e principal do fato de os homens se unirem em sociedades políticas e se submeterem a um governo é a conservação de suas propriedades" (LOCKE, 1982, p. 319). Mas não se trata apenas disto, e nem principalmente disto. Pois se podemos extrapolar as falas de nossos personagens, buscando um fio de continuidade entre discursos como o de Locke e o Estado de Natureza, ou Adam Smith, Bastiat e a liberdade de comércio, é por encontrarmos em todos um elemento que nos permite chegar à definição de liberalismo que remete tal conceito a um período anterior à própria palavra, pela identificação de um "núcleo ontológico e metafísico" firmado no individualismo (ARBLASTER, 1985, p. 15).

Neste sentido, elaborada em seus princípios básicos já desde John Locke, a teoria liberal, longe de pressupor uma horizontalidade incondicional entre os indivíduos, não via embaraços em justificar a desigualdade, uma vez que as diferentes condições dos indivíduos com relação à propriedade resultavam de diferentes desempenhos no uso da razão — esta sim, capacidade que igualava originariamente os homens (DAVIS, 1970; FRANCO, 1993). Desta maneira, a própria escravidão, ainda que negação da "liberdade natural", encontrava justificação, legitimando então, por meio da propriedade, da razão e, consequentemente, da própria condição humana, a exclusão de uma parcela dos indivíduos da sociedade civil:

"(...) sendo feitos prisioneiros numa guerra justa, são por direito de natureza submetidos ao domínio absoluto e ao poder arbitrário de seus senhores. Tendo, por assim dizer, perdido a vida, e com ela a liberdade, e os próprios haveres, e sendo, no estado de escravidão, incapazes de propriedade, esses homens não podem ser considerados como parte da sociedade civil, cujo fim principal é a conservação da propriedade." (LOCKE, 1982, p. 286)

E mesmo bem mais tarde, quando adentrava o século XIX, a fala liberal ainda distinguia-se perfeitamente dos princípios democráticos que lhe seriam posteriormente acrescentados, principalmente pela pressão de um movimento operário organizado (HOBSBAWM, 1992). Era o que ficava claro em Jeremy Bentham, escrevendo em 1824 sobre o sofisma da "autoridade do número", ao qual "se se quisesse dar valor, caminharíamos direto ao absurdo" (BENTHAM, 1944, p. 60). Nesse mesmo sentido, Benjamin Constant explicava dez anos antes de Bentham, e ainda mais explicitamente, as condições para se exercer os direitos políticos:

"Eu não quero fazer qualquer injustiça à classe trabalhadora. Esta classe não possui menos patriotismo que as outras. Freqüentemente ela está pronta aos sacrifícios mais heróicos, e seu devotamento é tanto mais admirável que ele não é recompensado nem pela fortuna nem pela glória. Mas um, eu creio, é o patriotismo que dá a coragem de morrer por seu país, e outro é o que torna capaz de bem conhecer seus interesses. É preciso, pois, uma condição a mais que o nascimento e a idade prescritos pela lei. Esta condição é o lazer indispensável à aquisição das luzes, à retidão do julgamento. Somente a propriedade assegura este lazer: somente a propriedade torna os homens capazes do exercício dos direitos políticos." (CONSTANT, 1872, p. 252)

Para além das teorias, um olhar sobre a situação política de países como Inglaterra e França demonstra cabalmente que a participação política não se contava entre o patrimônio das populações européias da primeira metade do século XIX. Na verdade, mesmo entre as nações européias, a política inglesa aparecia de maneira algo idealizada, como para o italiano Cavour, que notava em 1848 que se o voto aberto "é compatível com os longos e fortes hábitos do viver livre na Inglaterra, não poderia introduzirse entre nós sem gravíssimos inconvenientes" (ROMANELLI, 1988, p. 691). Entretanto, apesar destes "fortes hábitos do viver livre" na Inglaterra, o Reform Act de 1832 levaria o eleitorado de cerca de 360.000 para 650.000 numa população de pouco mais de 13 milhões de habitantes, e mesmo após o segundo Reform Act, de 1867, o eleitorado virtualmente dobraria, passando de 1.056.000 para 1.995.000 numa população de mais de 20 milhões (EVANS, 1983a e 1983b; WRIGLEY, 1989).

Quanto à França, a Lei Laîné, de 1817, estipulava a exigência de 30 anos de idade e 300 francos de censo para ser eleitor, e 40 anos de idade e 1000 francos de censo para ser elegível. Só depois da revolução de 1830 o censo seria reduzido a 200 francos para ser eleitor e 500 francos para ser elegível, o que aproximadamente dobrou o eleitorado, para cerca de 200.000 numa população de 32 milhões. Ironicamente, quem defenderia uma maior participação política na França, por meio de eleições indiretas, seriam os ultra-realistas, temerosos de deixar a vida política entregue às mãos das classes médias perpassadas por idéias liberais e anti-monárquicas. Por outro lado, a altamente restritiva Lei Laîné seria vivamente defendida pelos liberais como uma de suas maiores conquistas (JARDIN, 1973). Quanto à defesa das eleições indiretas pelos ultra-realistas, retomava um dispositivo presente na constituição republicana do ano VIII (1799), que estabelecera um sistema de eleições em quatro graus.

Não custa lembrar que este sistema acabou sendo adotado pela Constituição brasileira de 1824, só que apenas em dois graus. Sugestivo da diferença entre os dois sistemas eleitorais, era o comentário do mais famoso comentador da Constituição, o conselheiro José Antônio Pimenta Bueno, ao notar, em 1857, que "cumpre reconhecer, entretanto, que desde que prevalece a eleição direta, a lei eleitoral não deve ser tão ampla ou liberal como é a nossa" (BUENO, 1978, p.193). Para melhor avaliar estas palavras, lembremos que nas eleições de 1872 o eleitorado chegou a 10,8% da população do Império, e parece lícito supor que a participação eleitoral não fosse significativamente menor em períodos anteriores, quando Pimenta Bueno escrevia, por exemplo, e que não o foi até a reforma eleitoral da lei Saraiva, em 1881, esta bem mais restritiva, e justamente ao estabelecer as eleições diretas, sendo que nas eleições de 1886 o eleitorado já teria caído para 0,8% da população.

Obviamente, números podem ser discutidos em vários sentidos, e, sendo a fraude praticamente a regra no sistema eleitoral do Império, não é nem de longe nossa intenção sugerir que o sistema político brasileiro fosse então mais democrático que outros, provavelmente por dar até aos mortos o direito de voto. Pelo contrário, o que queremos dizer é que não faria sentido discutirmos a política imperial cobrando dela uma característica — democracia — que não se encontrava no horizonte político de qualquer outra monarquia européia. Ou — o que era ainda pior — que só se vira até então passar do horizonte ao primeiro plano em momentos de crises revolucionárias, como na fase do Terror da Revolução Francesa, quando o sufrágio universal masculino foi introduzido na Constituição de 1793, que logo seria revogada, dois anos mais tarde.

E, com toda a certeza, o sufrágio universal era o ponto em que a França claramente não poderia servir de exemplo para outras monarquias durante todo o século XIX, e não só pelo exemplo do terror da Revolução, mas também porque novamente em 1848, quando outra vez se instituiu o sufrágio universal, foi ao fim de outra revolução que punha fim a uma monarquia; e também porque era o sufrágio universal que havia referendado o golpe de estado de Louis Bonaparte, sua coroação como Napoleão III, e seu império, cuja queda sob a Comuna de 1870-71 traria à burguesia as mais sombrias lembranças de 1792-93.

Mas não é necessário adiantarmos esta história, pois é claro que os homens que instituíram a ordem imperial no Brasil dos anos 1820 não estavam prevendo os acontecimentos franceses dos anos 40, 50 ou 70; eles estavam, sim, empenhados em construir uma ordem que pudesse oferecer segurança e manter intocadas, tanto as propriedades dos cidadãos quanto as cabeças dos monarcas. Da mesma maneira que os dirigentes da Europa pós-napoleônica empenhavam-se em fazer esquecer os efeitos do vendaval revolucionário, não só redesenhando os mapas, mas também (ou principalmente?) os princípios da representação política remanescentes da Revolução e do Império. E, mais do que apenas um aspecto da "restauração", a onda contra-revolucionária atingia igualmente os países que não tinham o que restaurar por não terem sofrido uma invasão, como a Inglaterra, onde, aliás, talvez até mesmo pelo fato de não ter sofrido uma invasão, a reação conservadora pôde se articular desde muito antes (THOMPSON, 1987).

Quanto à organização do Império brasileiro, desde a convocação da Assembléia em 1823 — quando D. Pedro lembrava aos deputados que as constituições que tentavam seguir o exemplo francês de 1791 e 1793, "a experiência nos tem mostrado que são totalmente teoréticas, e metafísicas, e por isso inexeqüíveis"; ou então quando jurava defender a Constituição "se fosse digna do Brasil e de mim" (Constituições do Brasil, p. 34) — seguia de perto os passos da Charte Constitutionnelle de 1814, da qual Luís XVIII, "voluntariamente e pelo livre exercício de nossa autoridade real" resolveu fazer "concessão e outorga" a seus súditos. Uma carta que apreciava "os efeitos do progresso sempre crescente das luzes", mas que ao mesmo tempo buscava seus princípios nos "monumentos veneráveis dos séculos passados":

"Nós consideramos que, embora toda a autoridade na França residisse na pessoa do rei, (...) nós reconhecemos que o desejo de nossos súditos por uma Carta Constitucional era a expressão de uma necessidade real; mas cedendo a este desejo, tomamos todas as precauções para que esta Carta fosse digna de nós e do povo que nos foi confiado para comandar." (DUVERGER, 1957, p. 80)

Mas além dos escrúpulos dinásticos, presentes tanto em Pedro I quanto em Luís XVIII, que estabeleciam por princípio o da carta "digna de mim", a própria Assembléia Constituinte, convocada no Brasil em 1823, era muito ilustrativa das concepções (não-dinásticas) de cidadania e representação política (que então não se confundiam necessariamente) em voga. Pois para uma pátria recém-criada era necessário definir quem seriam os seus cidadãos.

Contra a idéia de que o título de cidadão cabia unicamente àqueles que gozavam de direitos políticos, o deputado Francisco Montezuma argumentava que todo brasileiro era cidadão brasileiro; convinha apenas que se desse a alguns mais direitos e deveres, distinguindo entre cidadãos ativos e passivos. Em apoio a este argumento, o deputado Nicolau Antônio Vergueiro acrescentava que a lei admitia a igualdade de todos, e portanto todos os membros da sociedade tinham o direito de gozar de todos os direitos políticos, "ainda que o gozo efetivo dependa de outra qualquer condição (...) que pode ser conseguida mais adiante"; evitava-se assim que se formasse uma sociedade composta de cidadãos e não-cidadãos. Mas era o deputado João Severiano Maciel da Costa quem colocava as coisas da maneira mais clara, pois para ele a assembléia poderia usar a palavra cidadão só para aqueles que gozavam de direitos políticos, ou poderia usá-la para todos, distinguindo entre ativos e passivos; o principal parecia não ser que a sociedade se auto-representasse como una ou dividida, homogênea ou heterogênea, pois para além da auto-representação da sociedade estava o princípio básico que ele sabia nortear sua organização:

"(...) sempre haverá diferença de direitos entre os brasileiros, porque nem todos podem gozar dos direitos sociais. Todos os indivíduos que compõem a grande família brasileira têm direito a serem protegidos pela lei no exercício e gozo daqueles direitos para cuja conservação e segurança os homens se uniram em sociedade (liberdade individual, segurança pessoal, direito de propriedade), mas nem todos podem ter o gozo e o exercício dos direitos políticos (eleição, elegibilidade), porque estes decorrem de convenção social e são dependentes de certas condições que não se encontram em todos os indivíduos." (RODRIGUES, 1974, pp. 122-26)

De um lado a afirmação do princípio da igualdade de todos perante a lei, e de outro o reconhecimento da desigualdade como fundamento mesmo da sociedade política, acabavam definindo a igualdade como um direito, por assim dizer, em potencial, ou seja, o direito que todos igualmente possuem... de se tornarem iguais. Direito que se efetivaria facilmente, desde que observadas algumas condições — ou, basicamente, a propriedade. A desigualdade era apreendida das circunstâncias reais das vidas dos homens, e só uma legislação descolada das condições concretas da sociedade poderia estabelecer uma igualdade absoluta, como notava o conselheiro Pimenta Bueno:

"O voto universal reduz sem dúvida os cidadãos a simples cifras, sem atenção às condições da inteligência e da propriedade; estabelece uma igualdade absoluta, apesar da diversidade e mesmo oposição das circunstâncias dos indivíduos." (BUENO, 1978, p. 190)

Alguns anos mais tarde, em 1872, um outro comentador, Francisco Belisário Soares de Souza, chegava a considerar as "exigências da democracia", as quais eram satisfeitas observando-se a instrução e o pagamento de um imposto direto como condição da cidadania, mas de maneira alguma o sufrágio universal, do qual se dizia um "decidido adversário":

"Insciente, inerte, escravizável por natureza nos tempos ordinários, o voto universal é um imenso perigo nas crises sociais ou por ocasião de comoções populares" (SOUZA, 1979, p.36)

Síntese mais feliz deste pensamento, encabeçava o texto de Soares de Souza uma epígrafe de Edouard Laboulaye, extraída da Revue des Deux Mondes: "a multidão não é o povo". Creio não ser necessário arrolar outros depoimentos no mesmo sentido, nem é nosso propósito insistir nesta discussão que já se alonga. O que pretendemos é sugerir que a discussão da questão da escravidão e da cidadania no Brasil do século XIX não deve ser enfocada apenas sob o prisma da restrição dos direitos dos escravos, libertos ou seus descendentes; ou mesmo da contradição inerente entre uma sociedade escravista e uma ideologia liberal. Trata-se, pois, de mostrar não as dimensões da exclusão, mas a maneira como se dava a inclusão daqueles que gozavam de direitos que significavam, em última análise, o domínio sobre os excluídos. Seguindo a pista sugerida na frase de Benjamin Constant que serve de epígrafe a estas páginas, trata-se de entender a preservação da escravidão para alguns como a própria condição da cidadania para outros, e buscar entender desta perspectiva aqueles traços no comportamento dos fazendeiros paulistas que já foram entendidos como sinal de atraso ou de apego irracional a uma rotina.

Momento privilegiado para esta discussão, o período compreendido entre a promulgação da Lei do Ventre Livre, em 1871, e a Abolição, em 1888, coloca-nos frente aos embates políticos protagonizados pelos proprietários paulistas através dos debates que acompanhamos na imprensa republicana da cidade de Campinas. Até então preservada na esfera das relações privadas e resguardada pelo artigo 179 da Constituição, que assegurava o direito de propriedade "em toda sua plenitude", a escravidão sofreria em 1871 o primeiro ataque frontal. Não porque esta data sirva para assinalar positivamente o início do desmantelamento do sistema escravista, ou mesmo porque fosse esta a clara intenção da lei, mas simplesmente porque pela primeira vez a intervenção do Estado trazia para o espaço público e legislava sobre o que até então fora uma questão privada.

É claro que já houvera precedentes de uma legislação sobre a libertação de escravos — porém sempre como exceções (MALHEIRO, 1976, p. 98101). Mas em 1871 a Lei do Ventre Livre veio configurar a intervenção do poder público na relação senhor-escravo como regra, não mais como exceção, institucionalizando o judiciário como instância mediadora entre senhores e escravos. Não estamos nos referindo à libertação do ventre, mas ao dispositivo que regulava a compra da liberdade pelo próprio escravo mediante indenização ao senhor. Se a liberdade do ventre podia significar para os senhores uma expropriação, um atentado contra os direitos de propriedade, o dispositivo das alforrias forçadas não atrairia menos oposição, visto que não era um único golpe contra os direitos senhoriais, mas introduzia de maneira permanente um elemento subversivo na relação senhor-escravo.

Ainda em 1871 encontramos na Gazeta de Campinas a única crítica que se faria à Lei do Ventre Livre pela imprensa, em um editorial escrito por Campos Salles. Para o redator republicano, era claro que a intenção do governo com esta lei era iniciar um processo de emancipação escrava, por meio de um "mal concebido plano de reforma" cujas conseqüências para a lavoura seriam a escassez da oferta de mão-de-obra escrava e o decorrente aumento de seu custo — "desastre", "calamidade pública", "ruína", "catástrofe". É verdade que todos os sombrios agouros do redator tornavam-se menos sinistros quando inscritos dentro de uma proposta mais ampla, de "substituição de braços" para a lavoura, através do incentivo à imigração.

Mas ainda mais que o futuro da lavoura, as investidas mais ferozes de Campos Salles tinham como alvo a própria política imperial, que possibilitava a aprovação de uma lei contra a sólida oposição da "classe agrícola":

"Nunca se viu levantar tão alto a energia do servilismo. O Rei ordenou, o ministro obedeceu, e cumpriu à risca a ordem do augusto amo, embora para isso houvesse de arcar com a opinião do país. (...) quiséramos também que o governo do imperador fosse menos inflexível à vontade nacional e afrouxasse a terrível cadeia com que trouxe os intitulados representantes da nação presos à sua caprichosa prepotência e desse-lhes liberdade ao menos para ouvirem os reclamos da opinião. O governo que assim ousa atentar tão violentamente contra as pacíficas manifestações populares, anulando o direito de petição, e excitando por isso mesmo à revolta, deixa de ser um governo legítimo e regular, para se tornar despótico e reacionário. E a vontade do país estava amplamente consubstanciada nos planos traçados pelo Clube da Lavoura e do Comércio." (Gazeta de Campinas, 03/12/71, p. 1)

O Clube a que se referia Campos Salles fora fundado na Corte com cerca de 600 sócios, em maio de 1871, em função principalmente da discussão da Lei do Ventre Livre, que se iniciava no Parlamento. O Clube da Lavoura e do Comércio era apenas um entre vários exemplos do exercício do "direito de petição" que proliferou naquele ano, quando foram enviadas 33 representações à Câmara e 11 ao Senado na esperança de fazer barrar no Parlamento a reforma do elemento servil patrocinada pelo gabinete Rio Branco (Pang, 1980, p.97). Os planos traçados pelo Clube reduziam-se na prática à criação de um fundo de emancipação, eliminando-se tanto o dispositivo das alforrias forçadas quanto a própria liberdade do ventre. Reduzia-se, em suma, a esfera de ação do Estado sobre a escravidão, pois nos planos do Clube da Lavoura (que em sua modesta opinião era a vontade do país), qualquer reforma no regime de trabalho não poderia ser realizada senão pelos próprios senhores de escravos.

E a adesão de Campos Salles às propostas do Clube é sugestiva ainda para explicar a intrigante ausência dos debates sobre a Lei do Ventre Livre nas páginas da Gazeta de Campinas. Pois como explicar que um jornal de oposição ao regime numa importante região agrícola não se manifestasse antes da promulgação de uma lei que depois viria a criticar tão duramente? Afinal, o artigo em que Campos Salles fazia sua crítica ao governo era a primeira notícia da aprovação de tal lei, mais de um mês depois! E a própria Câmara Municipal só daria publicidade à lei num edital publicado em 21 de dezembro, em cumprimento a uma circular do governo provincial de 26 de outubro, numa decisão tomada em sessão na qual ficava bastante explícita a oposição que os vereadores de Campinas (e não apenas os republicanos) faziam ao governo no encaminhamento da questão servil:

"A comissão de ofícios foi de parecer, que se respondesse ao presidente da província relativamente à fundação da associação de que fala a Lei de 28 de setembro: — que não encontra no povo disposição para organizar e auxiliar estas associações; mas que a Câmara está bem informada de que os possuidores de escravos deste município tem procedido com toda a humanidade e zelo na criação dos mesmos libertos, de modo a tornar-se dispensável a organização de tais associações. (...) Quanto à circular, que mandou dar publicidade à mesma Lei, foi de parecer que se cumprisse essa determinação." (Gazeta de Campinas, 24/12/71, p. 1)

Assim, ficava claro que os senhores campineiros não estavam dispostos a permitir a intromissão do Estado em seus interesses privados — aí incluída a escravidão, num momento em que o Estado tentava trazê-la à esfera pública, transformando-a na "questão servil". De qualquer modo, o silêncio tagarela dos senhores campineiros não foi um caso isolado, e nem nos autoriza, como já se pretendeu, a ver na pouca repercussão da Lei do Ventre Livre na imprensa, um indício da indiferença dos fazendeiros do Oeste Paulista para com a questão servil (NOGUEIRA, 1954). Seria, provavelmente, um caso similar ao dos proprietários do município fluminense de Piraí, onde alguns dias antes da aprovação da lei, em meados de setembro, a Câmara Municipal, num esforço de última hora, enviava ao Parlamento uma representação alertando aos deputados que o silêncio e a ausência de debates em jornais enquanto a lei era discutida não deveria ser entendido como "silêncio de aprovação" por parte dos fazendeiros: "a agricultura do país confiou no bom senso dos representantes eleitos do povo" (PANG, 1980, p.105). E palavras quase idênticas eram usadas pelo Barão da Paraíba, fazendeiro da Paraíba do Sul e um dos líderes do Clube da Lavoura da Corte, ao explicar a criação do Clube, que vinha desfazer a idéia de que o silêncio dos fazendeiros era um sinal de indiferença política; o que houvera, sim, até então era uma "confiança ilimitada nos poderes do Estado" (PANG, 1980, p.95). Assim, pelo menos neste momento, os interesses de fazendeiros do Oeste campineiro e do Vale do Paraíba convergiam para um mesmo ponto — a garantia de sua participação efetiva no sistema político do Império e, por meio dela, a defesa da propriedade escrava.

As nefastas previsões de Campos Salles quanto às conseqüências da lei do Ventre Livre pareciam (ao menos para ele) estar se tornando realidade quando, passado pouco mais de um ano, os vereadores campineiros se agitavam devido à "reprodução freqüente dos delitos cometidos por escravos". Numa sessão em que se discutia o envio de uma representação ao Governo sobre este assunto, o vereador republicano mais uma vez lembraria os esforços — seus e de todo o país — para impedir a causa dos males que então experimentavam:

"Lembra que na capital do império formou-se a grande associação do comércio e da lavoura, que tinha por fim obstar a passagem do projeto tal qual fora confeccionado, por ser inconveniente a todos os interesses do país. Nessa associação estavam representados todos os matizes políticos; só lá não apareciam os homens do partido áulico. No mesmo sentido as províncias dirigiram enérgicas representações ao corpo legislativo, e o mesmo fez o município de Campinas." (Gazeta de Campinas, 23/02/73, p. 1)

Assim, os interesses da lavoura eram os interesses do país, desconhecendo diferenças regionais ou partidárias, e só a coroa, ou o "partido áulico", fazia frente a estes legítimos interesses. Pelo menos há que se dar razão a Campos Salles em um ponto: em certa medida os "interesses da lavoura" conseguiam sobrepor-se aos matizes políticos, de uma tal maneira que pode-se encontrar discurso muito semelhante ao deste representante republicano numa folha conservadora como O Constitucional, que viria a circular em Campinas no ano seguinte.

As semelhanças se encontravam, por exemplo, na identificação da lei de 28 de setembro como um ônus à lavoura, "trazida para o país sem as cautelosas providências que a felicidade nacional reclama" (O Constitucional, 12/06/75, p. 1), e agravando assim a escassez de mão-de-obra quando cessava sua fonte, "fonte ímpia, é verdade, mas ainda assim — com pesar o dizemos — a única que até hoje tem mantido a lavoura brasileira" (O Constitucional, 16/ 06/75, p. 1). Mas também (e isso é o mais significativo em se tratando de um jornal conservador) nas críticas ao governo imperial, de quem se esperava uma solução para a crise da lavoura:

"O governo no nosso país só trata de questões políticas, só cuida em promover os meios de segurar-se no poder, e de garantir aos seus sustentadores uma boa posição. A lavoura que é, desculpe-se-nos a expressão, a vaca gorda do Estado, só goza de um favor — que é o esquecimento — com que o governo a trata, lembrando-se de tirá-la deste doce sossego só quando é preciso acordála para sugar-lhe a seiva e exigir-lhe impostos. Fora disto, nem sabe talvez que haja agricultura que definha e fenece por falta de proteção e de amparo." (O Constitucional, 18/07/74, p. 1)

O que a classe dos lavradores reclamava, na verdade, era uma maior participação do poder político, proporcional a sua importância econômica, já que é ela que "quase só, carrega com todos os impostos com que se sustenta a administração pública (...) e todas as necessidades do Estado". Mas a este seu reconhecimento enquanto classe sobrepunha-se, mais uma vez, a identidade entre a classe e a própria nação:

"pois que a classe dos lavradores, compreendendo-se nela os proprietários e seus prepostos, e todos os braços livres ou escravos nela empregados, conta em seu número mais de dois terços da população do Império, com as colônias, colonos e agregados (...) É procedendo assim que o governo e o poder legislativo satisfarão seus deveres e darão fiel execução ao mandato que o povo lhes delegou; é só assim que poderão ter o apoio da nação, e conquistar as simpatias, o amor do povo, e as bênçãos da presente geração." (O Constitucional, 18/07/74, p. 1)

A organização da classe da lavoura culminaria em 1876 com a criação do Clube da Lavoura de Campinas, fundado por 45 "fazendeiros" do município, entre os quais se contavam Campos Salles, Francisco Glycério e Jorge Miranda (Gazeta de Campinas, 14/04/76, p. 1), advogados e redatores da Gazeta — se não propriamente lavradores, perfeitamente identificados com seus interesses. Ou que pelo menos assim pretendiam, pois logo ficaria claro a multiplicidade — e às vezes oposição — destes interesses que cabia ao Clube representar.

A fundação do Clube ocorria pouco depois da criação pela assembléia provincial de um imposto de 100$000 sobre cada escravo comprado de outra província. Em 1878 a assembléia voltava a discutir um imposto sobre importação de escravos, desta vez de 1:000$000. Neste momento, porém, embora fosse muito maior o imposto, algo fazia supor que a "classe da lavoura" se mostrava dividida, pois a Gazeta publicava em sua sessão particular um artigo assinado pelo pseudônimo de Paulista, com uma veemente defesa do imposto proibitivo:

"Sabem os fazendeiros o que quer dizer esse imposto de um conto de réis? TUTELA E SALVAÇÃO. (...) enquanto a imprensa e alguns raros fazendeiros aconselham a colonização, a maioria destes, surda aos reclamos do próprio interesse, responde: mais escravos ! Entretanto não refletem que dia por dia escasseiam os braços escravos; que a maioria dos mais experimentados estadistas asseguram a extinção desse elemento em breves anos; e que desde a lei de 28 de setembro, iniciando a emancipação, a lavoura entrou em uma fase crítica, e reclama as mais sérias providências para conjurar a crise medonha de que pode amanhã ser vítima a principal indústria do país." (Gazeta de Campinas, 17/03/78, p.1)

E a única maneira que este Paulista via para conjurar a tal crise seria o início da substituição gradual dos escravos por colonos, o que presumia-se que seria incentivado ao dificultar-se a entrada de escravos na província. Mas outros colaboradores viriam às páginas do mesmo jornal em nome da classe da lavoura para negar que a salvação da agricultura da província dependesse do fim do tráfico interprovincial de escravos. Mais que isso, a classe da lavoura não podia admitir que seus interesses fossem melhor representados pela tutela do Estado:

"Não nos faremos cargo de demonstrar a inconveniência da intervenção do governo nas relações econômicas; o sistema protecionista está julgado, há muito, e não há quem impugne a franca liberdade da indústria e do comércio. Em questões de interesses e conveniências, não pode deixar de ser reconhecido supremo árbitro o interesse particular, único capaz de completa solicitude e tenacidade." (Gazeta de Campinas, 03/03/78, p. 3)

Este autor anônimo concordava que a abolição da escravidão, quando ocorresse, provocaria a crise da grande lavoura, e até o fracionamento da grande propriedade; no entanto, mais do que prevenir a crise, a proibição do tráfico poderia apressá-la, ao impedir a aquisição de escravos que podiam ainda ser por algum tempo empregados na "vantajosa consolidação da fortuna particular":

"é tão produtiva a cultura do café nesta província que os lavradores em poucos anos sentem-se compensados dos capitais dispendidos em escravos (...)" (Gazeta de Campinas, 03/ 03/78, p. 3)

No mesmo sentido expressava-se o autor que usava o pseudônimo de Z em artigo publicado no mesmo dia em que o Clube da Lavoura convocava uma reunião de lavradores para discutir o projeto anti-tráfico. De acordo com Z, também, o projeto feria "os mais comezinhos princípios da escola liberal em ciência econômica, estabelecendo a tutela pública nos interesses privados" (Gazeta de Campinas, 24/03/78, p. 2). Mas mais que um princípio, o projeto feria na prática um "recurso vital" para os interesses da província, privando-a do abastecimento de mão-de-obra escrava. É claro que esta condenada tutela pública nos interesses privados não se confundia com uma outra esfera de ação, onde se esperava encontrar no Estado, "os favores e facilidades para a introdução de colonos, e as indispensáveis instituições de crédito". Porém, ao contrário de seu colega anônimo, que previa a crise da grande lavoura e o fracionamento da grande propriedade, Z acenava para outros interesses ligados à preservação do trabalho escravo:

"Em um país de população escrava como o nosso, onde os trabalhadores aptos para os pesados serviços da agricultura estão consideravelmente aquém das atuais exigências desta indústria, reduzir-se os lavradores aos engajamentos de camaradas nacionais, ou colonos estrangeiros, é cavar a ruína da pequena lavoura, pela absoluta impossibilidade de entrar ela em competência com os ricos fazendeiros para a obtenção de braços. O que ficam valendo os pequenos lavradores perante os capitalistas, desde que não possam fazer aquisição de escravos, nos quais, de parte o valor que representam como propriedade, repousa a melhor garantia dos empréstimos pelo enérgico impulso do seu trabalho à formação da fortuna dos devedores ?"

Por fim, Z encerrava seu artigo com uma profissão de fé na lucratividade do trabalho escravo; pois mesmo supondo (e ele não podia imaginar então que, mais que uma suposição, isto bem podia ser uma previsão) que a transição para o trabalho livre ocorresse num período de dez anos, ainda assim compensava o investimento na escravatura:

"o abalo que então causasse a transição de um para outro regime não seria tanto de recear, pelo estado próspero em que se acharia colocada a riqueza particular, a esse tempo muito mais habilitada do que hoje para assoberbar os males da substituição."

A reunião do Clube enfim realizou-se, com a presença de cerca de 300 lavradores. Destes, porém, muito poucos se identificariam com o tal Paulista que ia à imprensa para defender o imposto. Na verdade, o resultado desta reunião obriga-nos a perguntar se o debate, veiculado pela Gazeta, que aflorava no seio da "classe da lavoura" não seria um debate interno à redação do jornal, já que Campos Salles será o defensor do projeto que Francisco Quirino dos Santos condenará "sem a menor restrição". Ao final, uma resolução de se representar à assembléia provincial "fazendo ver a inconveniência do projeto" foi aprovada tendo apenas dois votos contrários (Diário de Campinas, 27/03/78, p. 2).

A representação aos deputados provinciais foi redigida em termos muito semelhantes à argumentação de Z, ainda que com uma diferença significativa. Se Z acreditava que a reforma do elemento servil era "uma questão social já vencida e ganha por efeito da lei de 28 de setembro", o Clube argumentava justamente o contrário para justificar seu apego à mão-de-obra escrava:

"Um outro erro de apreciação dos defensores do projeto está na crença de que o elemento servil, por efeito exclusivo da lei de 28 de setembro, aproxima-se muito rapidamente de seu termo final, tendo entrado já num período de agonia: — daí a urgência de obrigar-se os lavradores a se colocarem ao abrigo da violenta transição. Entretanto, a estatística oficial da população escrava do império, prova que o decréscimo anual pela mortalidade e libertações particulares é de 2% (...)" (Gazeta de Campinas, 28/ 03/1878, p. 3)

A representação porém foi ineficaz, e o projeto foi aprovado pela assembléia. Foi a vez, então, da Câmara Municipal enviar uma representação ao presidente da província, pedindo que não sancionasse a lei aprovada pelos deputados. E de fato desta vez seus esforços teriam mais sucesso, e a lei não foi sancionada. Assim, pois, mesmo que tivesse razão o Paulista ao afirmar que os fazendeiros estavam surdos aos seus próprios interesses, há que se reconhecer que em Campinas eles eram coesos em sua surdez, e que tentavam fundá-la sobre cálculos econômicos, bem como nos "princípios da escola liberal".

Esta constatação leva-nos a uma conclusão bem diversa daqueles trabalhos que pressupõem uma oposição formal liberalismo/escravidão, e que não conseguem por isto dar conta da convivência de relações paternalistas com discursos liberais. Ainda que fosse esta uma demonstração do desenraizamento das idéias liberais no patriarcal império brasileiro, não seria de qualquer maneira uma peculiaridade sua, pois também na Europa os estudos sobre a representação política no século XIX têm apontado que "como em outros sistemas liberais, o igualitarismo individualista devia conjugar-se com identidades coletivas, com estruturas sociais e mentalidades de tipo paternalista-organicista, que de fato regulavam a realidade das relações sociais do país" (ROMANELLI, 1988, p. 687). Assim, é possível, de uma perspectiva histórica, aproximar a experiência brasileira de outras, a princípio mais facilmente identificáveis ao liberalismo, como a da Inglaterra, onde a presença de elementos tipicamente patriarcais ajuda-nos a pensar a complexidade das políticas liberais no século XIX, ou a própria definição do liberalismo oitocentista (BIAGINI, 1988; BOURNE, 1986; ROBERTS, 1979).

Pelo menos da maneira como entendiam os proprietários campineiros, segundo "os mais comezinhos princípios da escola liberal", parecia ser perfeitamente razoável esperar pela substituição da mão-de-obra escrava pela livre (transição até desejável) adquirindo mais escravos, enquanto os houvesse. E isto, até quando haveria escravos, parecia ser uma questão de outra ordem, cuja resposta, confiada aos dispositivos da Lei do Ventre Livre, não parecia tão urgente, até que um movimento abolicionista tomou aos fazendeiros a prerrogativa desta discussão.

Bibliografia

Revista de História - USP

Imagens simbólicas da conquista da Terra dos Brasis


Di Cavalcanti (carioca, 1897-1976). O Grande Carnaval, óleo sobre tela, 1953.

Imagens simbólicas da conquista da Terra dos Brasis

Paulo de Assunção
Doutorando pelo Departamento de História - FFLCH/USP


RESUMO
A conquista da Terra dos Brasis nos mostra a necessidade de integração das novas terras ao contexto europeu do século XVI. O estudo das imagens simbólicas religiosas, feitas pelos primeiros jesuítas, permite compreender o alcance das idéias utilizadas para explicar o complexo universo de afinidades entre Europa e América. As diferenças e similaridades foram compreendidas através de exemplos bíblicos, que revelam os mecanismos de leitura da superioridade e inferioridade, que caracterizou a interação cultural e a relação de poder no século XVI.

Palavras-chave: Conquista da América, Brasil, Jesuítas, simbolismo religioso.


As descobertas marítimas romperam com o enclausuramento das partes do mundo conhecido, alterando os ritmos da vida cotidiana dos indivíduos dos séculos XV e XVI.

Os descobrimentos, ao revelarem a verdadeira dimensão do globo terrestre para a humanidade, desencadeiam um novo reordenamento das estruturas de pensamento, uma mudança histórica até então nunca vista. O palco da atuação humana era ampliado, assim como o seu conhecer, sendo que essa "novidade-mudança" é responsável "por um novo mundo de coisas, informações, dados, diferenças, etc"(BARRETO, 1987, p.41).Como observou Carvalho, as descobertas prepararam o caminho para uma nova ciência, o homem despertava para sua consciência crítica, desterrando do saber os erros longamente enraizados no pensamento europeu (CARVALHO, 1947, p.12).

A Europa conhecia-se e avaliava-se em função da emergência das novas culturas, que paulatinamente iam sendo identificadas, tendo sido impulsionadas e expandidas pelo surgimento e desenvolvimento da imprensa. Um novo sistema de pensamento era construído em consonância com o progresso material (CARVALHO, 1947, pp. 21-50).

As diferentes formas de vida encontradas revelavam que a civilização européia não era única nem tampouco seus valores eram os dominantes. Como observou Barreto:

"os descobrimentos foram uma imensa explosão dos limites da terra e do mar, uma nova e maior extensão dos horizontes e modalidades de comunicação intercivilizacional" (BARRETO, 1987, p.10).

Como toda explosão abala estruturas, os descobrimentos solaparam as bases européias de interação sociocultural, até então apoiadas exclusivamente num caráter bélico de relacionamento.

A reordenação do saber era uma condição sine qua non, frente a um processo desmoronadiço do pensamento europeu. O Velho Continente era mais instável e mais vulnerável aos deslocamentos e reconhecimentos contínuos que o mundo assumia, fazendo como que uma outra lógica fosse inventada.

O conceito proposto por O'Gorman para a leitura da elaboração do pensamento ocidental, do aparecimento histórico da América, é sintetizado pelo autor com o termo "invenção". Para a leitura do novo, O'Gorman revela que as terras americanas não podiam contradizer a idéia dogmática cristã da existência de um Deus único necessário. Desta forma, a origem do mundo se confunde com a própria invenção da América pois, "a idéia de universo inclui a totalidade de tudo quanto existe; o conceito de globo terrestre refere-se ao nosso planeta mas, na época considerada, referia à nossa de matéria cósmica mais pesada, porque nela prevalecia a essência ou o elemento terra. O mundo não é, primariamente, nem uma coisa nem outra. É antes de tudo, a morada cósmica do homem, sua casa ou domicílio no universo, antiga noção que os gregos definiram com o termo ecúmeno. O mundo, pois, certamente supõe um sítio e uma determinada extensão, mas seu traço definidor é de natureza espiritual" (O'GORMAN, 1992, p.87).

O reconhecimento de novas culturas, se por um lado, permitiu a ampliação dos horizontes econômicos e da possibilidade de um desenvolvimento mercantil mais acentuado, por outro, alterou os padrões comportamentais como um todo, a começar por aqueles advindos da própria condição das descobertas. A vida do navegante, transeunte dos mares, será a brecha vital que ao mesmo tempo em que rompe condições existentes, instaura uma nova circulação de informações e de cultura nunca antes experimentada.

Circulação cultural é, sem dúvida, o termo que melhor define transações e interações que se processaram com os descobrimentos nos Quinhentos e Seiscentos. O homem até então confinado à Europa, ao norte da África e parte do Oriente, com as descobertas, vê o limite do seu universo ampliado sensivelmente; diferenças e similaridades exteriorizamse, necessidades e abundâncias delineiam-se, o perto e o distante relativizam-se, o mundo torna-se ecumênico na própria acepção da palavra, e da mentalidade religiosa da época.

A universalização impõe a ampliação da rotatividade cultural. O conhecimento não é mais uno e sim múltiplo, pois múltipla é a experiência vivida que deve ser transmitida, tal como os produtos são trocados no comércio. O Cosmo ganha vitalidade. A circulação, que implica a possibilidade do novo, é a redescoberta de uma origem similar àquela do momento primordial da criação.

Os descobrimentos, ao permitirem um reconhecimento do mundo, traziam consigo uma nova leitura da existência humana. A Igreja, detentora do saber primordial sobre as origens da civilização ocidental, redireciona suas explicações. O microcosmo medieval é implodido, e surge um macrocosmo que o pensamento cristão tem que reordenar. O novo precisava ser inserido no discurso religioso das Escrituras Sagradas, como parte componente dissociada da célula materna, algo perdido que era achado.

As terras americanas acenavam para um reencontro das partes, até então desunidas, há muito imaginado e pouco crível. Só uma lógica as envolvia, pois uma única razão as tinha tornado possível; o ponto comum entre ambas, nesse contexto, era que o monoteísmo cristão reunia de maneira convergente, todas as coisas criadas pelo ente divino. Deus era o centro do universo. Conforme observou Theodoro:

"A América, o novo mundo, é exótica apenas na sua aparência, pois faz parte da grande obra de criação, contendo, em essência, a mesma verdade que está no relato bíblico" (THEDORO, 1992, p.47).

A verdade fundamental do católico, enquanto universal, atingia sua amplitude máxima, nascia a certeza de que o grande articulador e controlador divino ofertara ao homem a possibilidade de conhecer os seus pares, regulados por uma mesma ordem e uma mesma regra geral que era o cristianismo. Desta forma, apresentava-se aos olhares curiosos da época como uma dádiva divina. Deus oferecera senão o Paraíso, pelo menos algo muito próximo de uma situação idílica, há muito tempo desejada. As novas terras são inseridas num contexto religioso de concepção que entendia que o universo, feito por Deus, é ampliado pelo engenho do homem europeu. As descobertas eram o sinal de uma nova era. O homem conseguia contemplar a onipotência divina e sua criação na sua plenitude1.

O surgimento de um outro elemento totalmente desconhecido, frente à identidade européia, gerou a necessidade de introduzir um processo de transformação ou aproximação que significava a inserção do novo dentro do velho mundo, que se consolidara com a preponderância do modelo europeu. Estruturas e regras foram sistematizadas, semelhanças foram ressaltadas, diferenças atenuadas, a sistematização do saber das Escrituras Sagradas orientou para que se criasse um conjunto comum de regras e práticas necessárias para um convívio harmonioso.

Há um reducionismo que conduz a humanidade da diferença à identidade, e sendo a humanidade cristã, segundo a ótica européia, há uma "planetarização global e total do cristianismo" (BARRETO, 1987, p.39).

A Igreja, enquanto instituição modelar, assumia o grande papel que as descobertas lhe reservara, quanto a constituir as amarras de ligação com fios tênues, permitindo um trânsito cultural, ao mesmo tempo que se efetivava a aculturação do continente americano a partir do modelo eurocêntrico cristão. A cristandade descobre a existência de um outro universo, povoado de não cristãos até há pouco tempo inimaginável, mas desde a origem inferior, por não ser cristão. Este posicionamento etnocêntrico europeu tendeu a aprofundar os mecanismos de leitura do "Outro" sempre como inferiores, pelo seu distanciamento do padrão matriz europeu, pois a concepção medieval não permitia uma concepção de mundo que não fosse a do "orbis christianus" (PAIVA, 1982, p.61).

Essa alteração ou reordenação da estrutura mental européia de incorporação do novo/desconhecido, ou seja, do "novus/alter", dentro do "orbis" processou-se de maneira morosa no seio do corpo social. A sociedade européia, baseada na concretitude vivencial, demoraria a desenvolver novos raciocínios científicos inaugurados com o renascimento. Preponderavam ainda os limites da analogia e semelhanças para a descrição das coisas do mundo.

A Igreja e suas instituições, consideradas como difusoras, definiam o padrão de identidade cristã da qual a expansão, especialmente a expansão colonial dos portugueses, surge "como concretização histórico-humana de desígnios e projetos transcendentes-absolutos" (BARRETO, 1987, p. 38).

O papel desenvolvido por Portugal nesse processo de expansão, além de ser decisório para o rompimento dos estreitos limites que envolviam o homem europeu, contribuiu para consecução da circulação cultural. Barreto afirma que

"Os portugueses são os olhos do mundo e ouvidos da Europa, o comunicador intercivilizacional por excelência da cristandade" (BARRETO, 1987, p.56).

O reino português, sistematizador de teorias e difusor de conhecimentos, concentrou um conhecimento técnico e empírico entremeado pela religiosidade cristã, fórmula que extrapolou os limites da epistemologia teórica e foi disseminado pelo mundo, pela praticidade dos portugueses. Conforme afirmou Holanda, os marinheiros e exploradores portugueses do período, tendo a experiência como mestra, constituíam "os olhos que enxergam, as mãos que tateiam" e que iriam mostrar "constantemente a primeira e última palavra do saber" ao mundo (HOLANDA, 1959, p.11).

Se os portugueses eram os olhos do mundo e os ouvidos da Europa, como afirmou Barreto, sem dúvida os jesuítas compunham de forma complementar, o paladar e o olfato da cristandade portuguesa e européia, através dos quais a comunicação intercivilizacional se processou.

O século XVI, com as descobertas, revelou a Portugal e à Europa, pela visão e audição, um requestionamento cultural e religioso. O novo necessitava ser assimilado dentro do todo, até então conhecido, e sua inserção se deu através das similitudes. O olhar europeu busca no novo elementos que possam identificar marcas comuns a ambos os universos, empreendendo aproximações e reforçando a cultura cristã como superior.

A grande dificuldade desse processo é que o novo, pela existência autônoma que lhe é peculiar, possui um grau de dessemelhança grande em relação ao universo europeu. Por conseguinte, partindose de uma visão eurocêntrica, os demais povos eram vistos em função da proximidade em que se encontravam do modelo padrão, tido como civilizado, e a não proximidade apontava para um estágio primitivo humano (PAIVA, 1982, p.23).

Os jesuítas, imbuídos de fundamentos teológicos medievais, principalmente aqueles que norteavam as ações das cruzadas, consideravam, dentro desta perspectiva, que sua missão era cristanizar e aumentar o universo cristão, respeitando e ampliando a ordem dos governos vigentes que possibilitaram a atuação da Companhia. Eram eles os "guerreiros de Cristo" na luta para a expansão das asas da caridade, da fé católica, e do poderio econômico expancionista europeu (LEITE, 1954, vol. I, p.313).

O papel do inaciano tendeu a ser um elo de ligação e equilíbrio entre as partes componentes da sociedade e, por conseguinte, mantenedor e defensor da legitimidade dos governos nacionais nas terras americanas. A Companhia de Jesus agia para garantir o bom funcionamento do corpo social e da conversão destes para o catolicismo.

Mediadores entre o espiritual e o temporal, o poder reivindicatório dos jesuítas era limitado. Conciliadores, por formação, não procuraram tecer articulações que abarcassem grandes propostas radicais junto à sociedade. Voltados para um passado ideal, essencialmente guerreiro, as propostas restringiamse a projetos conciliatórios frente às mudanças, as quais inevitavelmente tenderam a se compor com o da ordem econômico-política vigente, pois dela advinha a sustentação da Companhia. O Novo Mundo era amarrado ao continente europeu, como parte secundária de uma máquina já em funcionamento.

A própria formação jesuítica apontava que o papel do futuro companheiro de Jesus deveria ser mais o de um facilitador, entre o humano e o divino, do que propriamente um questionador da estrutura de desigualdade social ou da garantia dos povos recém-achados.

Os Exercícios Espirituais, escritos por Loyola, não constituíam uma elaboração teórica sobre o cristianismo frente às novas descobertas nem pretendiam defendê-lo dos ataques que vinha sofrendo. Os Exercícios, muito mais pragmáticos do que teóricos, visavam antes de mais nada a reunir o ser humano ao seu criador, afastado por motivos terrenos (advindos da intensificação do mercantilismo e das descobertas), conclamando o ser humano ao discernimento e à aproximação com Deus. Partindo do pressuposto de que a condição humana era pecadora, por não reverenciar a Deus, os Exercícios se apresentavam como uma atividade controlada e metódica a ser praticada por todo o exercitante que, assumindo seus pecados, desejasse redimir-se. A união dos dois mundos, diversos e separados, nada mais era do que a decorrência de uma união da criatura com criador. O plano da vivência religiosa definia e unia toda a humanidade (BARTHES, 1991, p.46).

Os Exercícios, elaborados para um universo europeu, passaram a ser utilizados para a conversão do gentio, sendo utilizados como parte do processo de catequização que guiava as criaturas perdidas do rebanho a se reencontrarem com Deus. O ideal de Cruzada, enquanto combate contra hereges e infiéis, transparece na sistematização dos Exercícios que repetiam, no plano religioso, a fidelidade dos cavaleiros para com o rei (Deus), um modelo sugerido explicitamente.

Loyola, de forma clara e objetiva, definia que a força motriz do processo de reaproximação da criatura com o criador era o da conversão para uma vida regrada, a qual estava na base do processo educacional do indivíduo que era também a do jesuíta. Seguindo uma proposta rígida de conduta, o modelo deveria ser reproduzido. Esta missão deveria ser conduzida e impulsionada pelos reis escolhidos por Deus que, ao conquistarem a terra de infiéis, possibilitavam a reunião de toda a humanidade com o seu criador que Portugal com seus olhos bem abertos visualizou (LOYOLA, 1993, pp.65-66).

Aquele que guiava o exercitante2 deveria ser um facilitador da ação do Criador com a criatura e vice-versa. A meta era reestabelecer a ordem primordial, perdida com o afastamento do Criador, sendo que a criatura deveria mostrar essa alteração, inclinando-se para a luz divina e para uma nova vida espiritual, muito próxima daquela descrita no Gênesis (LOYOLA, 1993, p.21).

É importante destacar que o pressuposto para compreender a existência humana nos Exercícios, estava atrelado à concepção bíblica de que as criações divinas foram concebidas para louvar a Deus. Assim, o princípio fundamental do modelo ideal, salientado por Loyola, entendia que o "homem é criado para louvar, reverenciar e servir a Deus Nosso Senhor, e assim salvar a sua alma". Por conseguinte, as demais coisas terrenas são concebidas como um elo de aproximação do homem com o ente divino, pois são "criadas para o homem", a fim de "que o ajudem a alcançar o fim para que é criado", que é servir a Deus e privando-se "delas tanto quanto dele o afastem" (LOYOLA, 1993, p. 28).

O mundo natural como parte do processo de ascese, manifestava-se de maneira a confirmar o criador. A natureza assumia, momentaneamente, sensibilidades que reforçavam a existência divina. Tendo como pressuposto a natureza como parte do processo de ascese, é que se deve compreender a ressonância das metáforas correlatas aos elementos naturais que dão sustentação à praxis jesuítica.

É com alegria e esperança que Antônio Pires3 ressalta o comportamento de um chefe indígena, que ao desejar a ação catequética jesuítica, afirmava:

"Vinde, muito folgo com vossa vinda, alegro-me muito com isto os caminhos folgam, as ervas, os ramos, os pássaros, as velhas, as moças, os meninos, as águas, tudo se alegra, tudo ama a Deus" (LEITE, 1954, vol. III, p.313).

Os Exercícios, enquanto diálogo com Deus, eram a confissão explícita de um pecado, o rompimento com Deus e a negação do divino ou do distanciamento em relação ao Criador (LOYOLA, 1993, p. 50).

Este ponto comum, de que o homem era um pecador pela sua condição mundana, da qual a confissão nada mais era do que um passo para a conversão, revela que o catolicismo esperava uma mudança de conduta, que os Exercícios reforçavam e tomavam como base para alcançar Deus.

Os povos recém-descobertos eram vistos pelos jesuítas como seres mergulhados numa cegueira nociva que, após a morte, desceriam ao inferno e por isso necessitavam de um cuidado específico para alcançar a salvação. Com efeito, conforme aborda Silva Dias:

"Havia agora a certeza de que o Evangelho ainda não fora anunciado a todos os homens. E não podia deixar de ser dramático, à luz das concepções teológicas dominantes, que nem a todos os homens tivesse sido dada a oportunidade de se salvarem através do baptismo" (DIAS, 1982, p.48).

As dificuldades eram muitas e a exigüidade de recursos, que afligiam os jesuítas, tende a comparar-se com aquelas que o casal Maria e José, pais de Jesus, padeceram em sua viagem por terras estranhas: fome, sede, calor, frio, injúrias e afrontas.

Os símbolos religiosos, utilizados para remeterem à associação com Deus, nesse primeiro contato cultural, envolviam diretamente elementos da natureza, geralmente em função dos atributos que Cristo recebeu do Pai divino. A natureza era cenário e meio para que a mensagem catequética se realizasse. E, conforme observou Theodoro ao analisar Exercícios Espirituais,

"A relação entre imagem, pensamento e palavra constituem a memória como sistema capaz de criar analogia entre signos de poder" (THEODORO, 1992, p. 59).

As imagens simbólicas atribuídas a Jesus na sua atuação junto ao gentio, para a propagação da seita cristã, seriam recuperadas totalmente pois, o gentio dos primeiros anos do cristianismo era tão hostil quanto aqueles encontrados nas novas terras. A ação benéfica de Cristo resida também em poder converter elementos do mundo natural em produtos diferentes da sua existência primeira. Assim, o jesuíta associou à sua prática por um processo de concatenação direta, ora a figura de um pastor, ora a de um agricultor, sintetizando nestas imagens o dom ofertado por Deus para a ação do homem junto à fauna e à flora.

O elemento indígena assume, dentro desta leitura, várias representações simbólicas: ovelhas perdidas, uvas de uma vinha que não produz bons vinhos, metáforas comuns e densas de significados que, além de se associarem aos escritos sagrados, revelam como uma mentalidade jesuítica construiu ligações para unir os dois mundos, utilizando-se da natureza empírica que confirmava as verdades das Escrituras Sagradas. Rui Pereira4 relata aos Padres e Irmãos de Coimbra que:

"quantas razões temos de nos alegrar vendo que, além do fruto dos nossos trabalhos que na glória esperamos, vemos na terra criarem-se tantas plantas para o céu, e que gosta Deus delas tanto que parece que antes de serem de vez as colhe, e que não pode esperar dilação!" (LEITE, 1954, vol. III, p.298).

Tanto a terra como o céu eram povoados pelo mundo natural, com plantas de espécies variadas na terra, mas plantas iguais no céu.

A Bíblia, de maneira figurada, identificava o povo de Deus como ovelhas, e aqueles destinados ao cuidado delas, como pastores. A associação do jesuíta com a figura dos guardadores de rebanhos é uma imagem comum dentro das cartas, sendo que o gentio é inúmeras vezes classificado com um ser afastado do rebanho do Senhor.

Os jesuítas, identificando-se com a imagem do pastor Jeremias, que demonstra ser "uma cidade fortificada, como uma coluna de ferro e como um muro de bronze, sobre toda esta terra(...)", lançam as bases para que o catolicismo seja construído no Novo Mundo, funcionando como um cimento para a construção do edifício da cristandade.

Uma segunda associação da metáfora do pastor advinha da figura de Cristo, enquanto pastor de Deus na Terra. Os loiolanos companheiros de Cristo eram herdeiros de seus atributos, pois todas as imagens convergiam para um único ponto: Deus.

Nas Epístolas6, Pedro, referindo-se à união íntima com Cristo, ressalta esta imagem aos homens dissociados do filho de Deus, afirmando que:

"Porque vós [humanos] éreis como ovelhas desgarradas, mas agora vos convertestes ao pastor [Cristo] e bispo das vossas almas".

Essa identificação de Cristo como pastor, segundo São João7, tinha sido sugerida por Jesus, ao afirmar:

"Eu sou o bom pastor. O bom pastor expõe a sua vida pelas suas ovelhas", concluindo que "Eu sou o bom pastor, conheço as minhas [ovelhas], e as minhas [ovelhas] conhecem-me."

Os jesuítas, enquanto companheiros de Cristo, configuram-se como parte dos atributos que aquele possuía, aptos e qualificados portanto, a pastorear o rebanho do Novo Mundo, servindo de meio para a promessa de Deus, que dizia:

"Eis que eu mesmo irei buscar as minhas ovelhas e as visitarei. Assim como um pastor visita o seu rebanho no dia em que se acha no meio das suas ovelhas [depois que andaram] desgarradas, assim eu visitarei as minhas ovelhas, e as livrarei de todos os lugares por onde tinham andado dispersas no dia de nublado e de escuridão"8.

O atributo de pastor não advêm da condição de missionário, mas sim da proposta de conversão que este pretendia realizar. Conforme sublinha Azpilcueta Navarro9, a persistência dos costumes gentios era decorrente da ausência de

"pastor que os metesse no curral da vida cristã, que é caminho de ouro, que é a glória onde nós todos esperamos de ir... " (LEITE, 1954, vol. I, p.178).

Por decorrência, o jesuíta é o meio pelo qual se efetiva, segundo Anchieta, a ação do Senhor que

"por sua misericórdia e bondade infinita quer reduzir algumas destas ovelhas perdidas ao rebanho de sua Igreja, e isto não com pequeno trabalho que com eles temos, predicando-lhes continuamente e trazendo-os por quantas vias podemos, porque es esta gente tão indômita e bestial, que toda sua felicidade tem posta em matar e comer carne humana, do qual pela bondade de Deus tenemos apartados estes:... " (LEITE, 1954, vol. II, p.120).

Os indígenas, considerados "ovelhas perdidas" as quais Deus quer incorporar ao rebanho da Igreja, conferem dilatada dimensão para a figura do pastor, que é o condutor dessa "gente tão indômita e bestial" ao "curral da cristandade".

A ovelha, dentre os animais, é mais vulnerável, por sua fraqueza e por sua incapacidade, de procurar alimentos sozinha, assim como de fugir de seus predadores. Desta forma, a ovelha é entendida pela falta de capacidade de agir de forma independente, assumindo além desta caracterização, e num sentido figurado, uma referência explicita às pessoas inocentes ou recém-convertidas, como exalta o Ir. Anchieta, ao afirmar:

"(...) já não é pouco fruto, antes o maior benefício de Deus, que entre tanta multidão de infiéis, algumas poucas ovelhas se abstenham ao menos de comer seus próximos." (LEITE, 1954, vol. II, p.110)

As demais ovelhas, espalhadas e desgarradas, estavam também sujeitas a toda sorte de malefícios, inclusive aqueles provenientes do Diabo. Por isso, nas Epístolas, Pedro dedicava especial atenção aos deveres dos pastores e dos fiéis, ressaltando:

"Sede sóbrios [pastores] e vigiai, porque o demônio, vosso adversário, anda ao redor, como leão que ruge, buscando quem devorar. Resisti-lhe, fortes na fé sabendo que os vossos irmãos, que estão espalhados pelo mundo, sofrem as mesmas coisas"10.

O demônio, "inimigo dos homens", estava tão presente como Deus e era identificado normalmente como responsável pela não consecução da salvação humana; perspicaz e ardiloso, ele atuava diretamente na sociedade para impedir o êxito das obras cristãs, das quais os pastores inacianos eram guardiões e defensores.

Esta analogia do índio como a ovelha sugere de maneira indireta uma forma de percepção mediatizada pela Bíblia, que identifica, naqueles que não são cristãos, as fraquezas humanas sujeitas ao demônio, sendo que a ação dos pastores de Cristo era, segundo o Pe. Rui Pereira, "a restauração das ovelhas e castigo dos lobos"(LEITE, 1954, vol. III, p.300).

O Ir. Antonio de Sá11, relatando suas atividades na aldeia de Vitória, Espírito Santo, traça na sua narrativa a composição de um quadro catequético, onde o divino e o demônio guerreiam. Exaltando os êxitos obtidos pela conversão, Antonio de Sá ressalta a fúria do demônio, afirmando que este andava

"muito raivoso e indignado por ver que lhe temos [jesuítas] levado este ano tão grande prenda de almas, que na mortandade passada depois de ser batizadas levou o Senhor para si" (LEITE, 1954, vol. III, p.45).

Todavia, a persistência do demônio continuava, não deixando de existir com as conversões in extremis. Todo o ato de expansão da cristandade deparava com a presença de um demônio atuante. Isto leva o missionário a afirmar que:

"Mil impedimentos há posto o inimigo para que esta Aldeia de Vasco Fernandes não se ponha por obra, porque como determinamos de residir nela teme já a perda que há de receber com nossa [jesuítas] estada, ... " (LEITE, 1954, vol. III, p.45).

A escolha do sítio para Igreja e a casa jesuítica era, de forma simbólica, o triunfo da cristandade contra o demônio. Deus vencia o Diabo na terra dos brasis.

A presença de forças malignas nesta terra não impunha somente transtornos em nível material. Azpicuelta Navarro enfatiza esta ascendência demoníaca sobre o gentio, afirmando:

"Tem o Demônio muito domínio nelles, o qual dizem algumas vezes lhes apparece visivelmente e que lhes dá e atormenta outras vezes asperamente. Nosso Senhor nos livre de suas mãos" (CARTAS JESUÍTICAS, 1988, vol. II, p.97).

O Diabo, tão onipresente quanto Deus, estava dissimulado em multiformas, controlando uma série de entidades negativas que coabitam com os homens.

A ação jesuítica tinha salutar importância nessa luta terrena contra inimigos da cristandade, por vezes invisíveis. A tarefa do missionário jesuíta era lutar contra o demônio, que reinava num meio inóspito, influenciando desde a população que habitava a região, até a natureza. Seu fim último era purgar os males brasílicos.

Diego Laynes, por ocasião de sua investidura no cargo de Prepósito Geral da Companhia de Jesus, destaca a importância da obra jesuítica:

"A importância da obra se vê quanta seja, tratando não somente de conservar e ajudar os cristãos que já na fé tem princípio de sua salvação, como por aqui se faz, porém ainda de trazer muitos outros de novo, que do todo eram servos do demônio, e como ele filhos da ira e da perdição, ao estado da liberdade santa, e adoção dos filhos de Deus, e herdeiros com Cristo nosso Senhor de seu reino e felicidade eterna" (LEITE, 1954, vol. III, p.8).12

Em contrapartida, a imagem do pastor é caracterizada por uma vida difícil, pois deve cuidar para que suas ovelhas obtenham alimento e água, além de protegê-las dos seus predadores, para que não se tornem presas de animais ferozes. Muitas vezes, expondo-se às alterações climáticas e a perigos incomensuráveis, o pastor luta para manter o rebanho unido, gastando parte do seu tempo na procura daquelas ovelhas que se desgarraram ou se perderam, e é assim que a maioria dos relatos caracteriza a atividade missionária. A catequização se consubstancia, via de regra, pelo mundo natural.

O Pe. Azpilcueta Navarro, por ocasião de sua viagem a Porto Seguro, relata aos Padres e Irmãos de Coimbra, os perigos incomensuráveis para a ampliação da doutrina católica. Utilizando as imagens do pastoreio, destaca:

"Dali também ia visitar algumas aldeias ao derredor. Indo uma vez me houvera de afogar em um rio em o qual há pouco tempo que se afogou um Frade de Santo Antonio que ia desta mesma capitania pregar no sertão. Passei assaz de perigo por ser o rio mui corrente e enganoso de passar. Outra vez íamos a Vicente Rodrigues e levávamos em nossa companhia uma língua; fomos a umas aldeias alongadas que ainda não tínhamos visitado e no caminho passamos assaz trabalho e perigo, por nos ser necessário andar de noite algumas vezes e por matos, porque cá não há os caminhos de Portugal e há nelles muitas onças e outras feras" (CARTAS JESUÍTICAS, 1988, vol. II, pp. 95-96).

O Irmão Pero Correia, em carta ao Pe. Belchior Nunes, de 8 de junho de 1551, relata, por sua vez, a vida difícil de missionário na jornada para divulgação da fé católica, que começa com o preparo dos meios de transporte:

"Em esta jornada que fizemos, fomos alguns oito ou nove dias por um rio abaixo em casca de pau, e primeiro que tirássemos as cascas em que havíamos de embarcar se nos gastou o mantimento, porque nos pussemos a fazer almadias de um pau molle, e quebraram-se depois de feitas" (LEITE, 1954, vol. I, p.220-221).

Os caminhos para conduzir as "ovelhas perdidas" ao "curral da cristandade" não eram tampouco fáceis de serem ultrapassados. Ressaltando-se a fragosidade da terra, os loiolanos evidenciaram as dificuldades em atravessá-la. Guerreiros do espiritual, lutavam contra as diversidades naturais do temporal.

A natureza inóspita impunha ao pastor barreiras concretas, que só a fé impelia à ação. António Blazquez, relatando a visitação feita à aldeia do Espírito Santo, na Bahia, destaca que para a realização e celebração do Senhor e do Espírito Santo foi necessária uma caminhada de seis léguas:

"...de aqui desta ciudad [Baia], el camino es parte por arenales, parte por lamaçales y charcos, el qual no se puede en ninguna manera andar sino descalços, que para gente poco devota no es pequeno impedimiento para dexar de lo hazer;..." (LEITE, 1954, vol. IV, p.73).

Como se não bastassem os empecilhos e as precariedades para a construção do edifício da cristandade, existiam ainda as deficiências da manutenção durante as investidas pelo sertão. Os caminhos contribuíam para dificultar a atividade do inaciano. Perigos incomensuráveis são vislumbrados, conforme afirma Pero Correia na mesma carta de 8 de junho de 1551:

"E assim fomos nosso caminho passando por aquele rio passos muito periguosos de saltos muitos que tinha em lugar de pedra, e a fome apertava conosco e comíamos alguns palmitos cozidos em água tal e algumas frutas bem desengraçadas, de maneira que quando chegamos a povoado levamos as cores muito demudadas" (LEITE, 1954, vol. I, p.220-221).

As armadilhas dos caminhos são intensificadas com a iminência da falta de alimentos para os andarilhos da fé. A fome, tão temida quanto os caminhos, era no âmbito do vivencial, a barreira mais difícil de ser transposta.

O Irmão Diogo Jácome13, em carta aos Irmãos de Coimbra, revelava as dificuldades da prática missionária no Novo Mundo, quase desconhecida daqueles que viviam num universo em que as esmolas dos devotos supriam a deficiência alimentar. Assim se pronunciava o loiolano aqui residente:

"Por estes caminhos padeceram os Irmãos com o Padre muito detrimento além do cansaço do caminho que levaram passando por rios a nado despidos, que dizem os Irmãos que entangessiam com o frio; e não tão somente isto mas muita fome em extremo, que não comião senão palmitos que achavam pelo mato com outras frutas de mais poco substância sem terem nem um grão de farinha de que lá chamais de pau." (LEITE, 1954, vol. I, p.245)

A atividade jesuítica era o palco de inúmeras privações, provações que constantemente o inaciano sofria na pregação da fé católica. Cada vitória contra a fome e o mundo natural confirmava indiretamente o domínio de Deus sobre a criação.

Os jesuítas eram sempre colocados à prova sendo a água a mais constante e sugerida em todos os discursos. A necessidade de deslocamento por terra ou mar fazia com que o inaciano enfrentasse, ora um rio colossal, ora tempestades mortais, situações marcadas por um padecimento em nome da fé, que poderia ser amenizado com a interseção divina.

Além disso, o tratamento médico das feridas destes pequenos animais fracos e inocentes, como eram vistos pelos loiolanos, era necessário, revelando outra faceta da dedicação missionária. A imagem do pastor é a de um homem bravo e valente, persistente e engenhoso, que antes de tudo pensa com zelo no bem-estar do seu rebanho. Tomando a iniciativa de se deslocar das terras européias para terras desconhecidas, demonstravam ser prestimosos na procura dos necessitados e constituíam-se como modelos completos de uma conduta cristã pastoral.

A despeito disto, nem sempre a perseverança marcou a tônica do pastorear as ovelhas. Dificuldades e provações conduziram a um desânimo, revelado por alguns sinais de cansaço, logo após a euforia dos primeiros anos14.

Esta decepção, muitas vezes rotineira na prática jesuítica, consubstanciava-se através das visões do mundo natural. A não consecução dos objetivos previstos, sinalizados pela hostilidade do indígena e marcados essencialmente pela persistência de um padrão comportamental não cristão, levou, não raras vezes, a associar o comportamento indígena com aqueles praticados pelos animais ferozes e agressivos ao homem "gente tan mala, bestial y carnicera" (LEITE, 1954, vol. IV, p.147)15.

Caracterizados pela violência e agressividade para com os europeus, os jesuítas encontraram no mundo animal a exata medida simbólica que servia como elemento explicativo, facilmente assimilável, para delinear as similaridades do Outro - nativo -, mais próximo da natureza, do que da civilidade cristã européia.

As associações do indígena com os animais são variadas na sua representação metafórica. Tigres, leões e lobos são os animais mais utilizados para caracterizar a força, agressividade e antropofagia dos brasis, com quem os inacianos deparam. Assim se revela o sentimento dos jesuítas que invariavelmente estavam sujeitos às investidas dos índios que eram "como tigres, que aora dan aquí, aora ally, y huiem con la presa en los dientes" (LEITE, 1954, vol. IV, p.172).

No entanto, os desabafos provocados pelo ressentimento da capacidade do gentio em compreender a palavra de Deus e buscar a salvação não significaram um desestímulo ao trabalho missionário. O número reduzido de jesuítas foi um dos principais problemas enfrentados pelos inacianos. A diversidade de tribos, dispersas por várias aldeias, constituíram um dos grandes empecilhos a uma ação eficaz e ampla do plano catequético.

O Irmão Pero Correia relata com pesar a falta de jesuítas, ao Pe. Simão Rodrigues. Após ter visitado povoações indígenas em busca de um cristão que vivia entre o gentio da terra, há mais de oito ou nove anos, e seguindo em conjunto com o Pe. Leonardo Nunez e mais cinco Irmãos, desabafa afirmando que voltavam "muito desconsolados por ver tantas almas perdidas por falta de quem as doutrine" (LEITE, 1954, vol. I, p.230).

As longas distâncias que separavam as aldeias das vilas impediam a divulgação da mensagem divina e o controle efetivo sobre os hábitos, costumes e padrões comportamentais do indígena, dificultando a conversão que, antes de mais nada, deveria ser comprovada através de uma prática repetitiva de sujeição.

A ausência de novos agricultores, para a vinha do Senhor, foi sentida desde os primeiros contatos, quando se apresentou de maneira mais clara o contraste entre a quantidade imensa de almas indígenas na escuridão a serem convertidas, e a quantidade ínfima de operários para tamanha messe. O Ir. Pero Correia, com pesar, lamenta a exigüidade de vindimadores, para o Pe. Belchior Nunes Barreto, concluindo:

"Há cá tanta miséria que se as houvesse todas de escrever, sei que lhe poriam grande mágoa em seu coração; mas as maiores são as destas pobres almas que por todo este Brasil e toda esta costa se perdem, em que haverá mais de duas mil léguas, se tudo gente que não conhece a Deus. Ora pois, caríssimo Padre, em tamanha vinha bem há o que cavar, mas faltam os cavadores" (LEITE, 1954, vol. I, p.223).

Faltavam lavradores para semearem as sementes da fé cristã na vinha do Senhor, ou como afirma o missionário Jorge Rodrigues, "semear a semente da palavra de Deus" (LEITE, 1954, vol. IV, p.277). Muito mais que uma metáfora, a simbologia utilizada pelos inacianos para expressarem seus posicionamentos sobre a estratégia da Companhia revelava que as necessidades na colônia eram bem diferentes daquelas existentes na Europa, onde o solo europeu já tinha presente as raízes do cristianismo. Na Europa faltava somente acabar de cultivar para realizar a vindima e nas novas terras as sementes ainda tinham que ser deitadas a um solo pouco fértil, para começarem a nascer as raízes da cristandade.

A necessidade fazia com que a formação educacional do jesuíta quanto às Letras fosse secundária, como destaca Azpilcueta Navarro:

"Approuve a Deus Nosso Senhor que chegassem os Padres mandados dahi, e esperamos que façam grande fruto com os selvagens como fariam outros si tivessem muita caridade e castidade de par com as forças corporaes para suprir as necessidades de tantos. As letras são menos necessárias, bem que entre os Christãos e entre os mesmos Gentios conversos, sejam as lettras precisas para a solução de casos diversos que entre elles se dão" (CARTAS JESUÍTICAS, 1988, vol. II, p.79).

Nóbrega, compartilhando da mesma opinião, justificava tal posição afirmando que o indígena era "todo papel branco e não há mais que escrever a prazer" (LEITE, 1954, vol. I, p.142).

Estes posicionamentos, sem dúvida pragmáticos, entendem que para terras tão dilatas, com duas mil léguas, ou mais, os cultivadores eram insuficientes. Precisavam de cristãos com uma vida regrada, independentemente de uma formação acadêmica, para as mais diversas atividades como mencionava António Blazquez:

"arrancar los cardos y espinas, ora en criar las nuevas plantas que crecen, ora en trajar que se tire coja algún fructo para el Senor" (LEITE, 1954, vol. IV, p.186).

Vicente Rodrigues sintetiza e delineia a pluralidade dos papéis dos futuros jesuítas agricultores:

"uns orando, outros chorando, outros cozinhando, de maneira que com tudo ajudeis e socorrais a tão miserável perdida de estas almas redimidas com o sangue do benditíssimo Jesus" (LEITE, 1954, vol. I, p.415).

A associação com a figura do agricultor é sugerida através da atividade da vinicultura. Nas narrativas bíblicas a videira, que já estava presente na terra de Canaã, era difícil de ser cultivada, requerendo um cuidado especial para obter boas uvas. Como símbolo, a uva (videira) é em sentido figurado, mencionada no cumprimento da profecia dos últimos dias, quando Cristo recolhe as videiras que simbolizavam os seus inimigos16.

O missionário, enquanto cultivador das vinhas, ou seja, dos inimigos/infiéis do Senhor, é responsável pela produção de boas uvas (cultivar/catequizar), para que estas produzam bons vinhos (a adoção do modelo cristão de conduta).

O projeto missionário, nesta perspectiva, via no gentio a representação do inimigo de Deus na iminência de precipitar-se no abismo infernal. Trata-se de uma visão salvacionista de missionários guerreiros. O pensamento jesuítico entendia sua obra como uma luta contra o indígena, contra o mundo natural, em prol de Deus.

Em sentido também figurado, os recursos utilizados pelos inacianos foram sempre manipulados para marcar a negatividade dos tempos que antecedem a ação missionária e os benefícios que advêem da conversão. O inimigo forte era paulatinamente destruído e a conquista era vista, passo a passo, nos escritos que construíam uma alteração comportamental muito mais desejada do que consolidada.

A conversão fundamental para o êxito da Companhia é consubstanciada a partir da alteração comportamental do gentio. Esta mutação, antes de ser um alteração rápida e concreta, foi percebida nas suas etapas parciais de adoção do modelo cristão, comprovadas principalmente no âmbito do mundo natural.

A religião católica, controladora do tempo e do espaço, ditava as normas para a ação do homem no mundo natural. A transformação do indígena de uma "gente tão indômita e bestial", para um rebanho de ovelhas, era necessária e implicava uma alteração do aborígene em relação à natureza. Como observou Koshiba " sob a aparência de queixa de um comportamento que desconhece o respeito a regras européias de boa conduta, oculta-se o sentimento de superioridade dos portugueses, que se colocavam como uma espécie de modelo ao qual se esperava ajustar-se o índio, para enfim admiti-lo como ser humanizado" (KOSHIBA, 1988, p.23).

Esta alteração, sinal concreto de uma batalha ganha, foi destacada com insistência. A mudança de comportamento em relação ao mundo natural é notada já por Azpilcueta Navarro, ao afirmar:

"Em toda a semana se ocupam em fazer roças para mantimentos (que antes ão faziam senão as mulheres). Guardam os domingos como nós o melhor, de maneira que em tais dias não fazem obra servil. Aconteceu em um dia destes haver ido uma menina ignorantemente a roça a trabalhar e, começando a trabalhar, veiolhe uma dor de barriga tão grande que houve logo tornar a casa. Entrando em casa, logo lhe dizeram que era festa, achou-se culpada de haver ido a roça" (LEITE, 1954, vol. I, p.179).

A desobediência aos ditames impostos pelo comportamento cristão implicava uma punição pela afronta que representava a fé católica. O respeito aos desejos divinos era fundamental, principalmente no que tocava às celebrações cristãs. O não cumprimento trazia malefícios que eram utilizados como exemplos edificantes para comprovar a onipotência de Deus.

O Irmão Vicente Rodrigues enfatiza este aspecto afirmando:

"Algumas vezes vão às suas roças, que é o seu mantimento, ao domingo e festas, onde os mordem bichos assi como bibaras, das quaes alguns morrem. As quaes cousas e outras mais particulares lhe succedem em tempos que lhes dá muito que cuidar e tirar de seus erros,..." (CARTAS JESUÍTICAS, 1988, vol. II, p.135).

O modelo europeu de cristandade intervinha no ritmo da vida das tribos, reordenando-o e impondo limites e permissões ao tempo e ao espaço que se justificavam em função da religião. A Bíblia impunha o compasso da vida ao mundo natural. Ser cristão era não só professar a fé católica, mas sobretudo estar atento a um conjunto de padrões impostos e definidos por Deus, desde a origem da humanidade. Ser cristão era não ir às roças aos domingos, pelo medo das punições divinas. Ser cristão era, sobretudo, aprender que a natureza deve ser cultivada, pois o cristianismo era uma civilização da cultura.

Esta simbologia, utilizada pela Bíblia e apropriada pelo pensamento jesuítico, tinha como objetivo principal e último dar orientação ao gentio para que ele pudesse ser inserido na civilidade cristã. A conversão significava não só introjetar bons hábitos de conduta moral católica, mas também uma nova relação com o mundo natural. A desordem do sistema do Novo Mundo aproximava-se do fim. A nova ordem era, a partir dos descobrimentos, a ordem católica, que se iniciava com a própria ocupação do espaço geográfico.

Em suma, o mundo natural para os primeiros jesuítas era uma realidade cotidiana indissociável da verdade absoluta de que Deus tinha sido o seu criador e deveria ser louvado por isso. O espetáculo da natureza, quando ocorria, processava-se principalmente em função e no âmbito do divino, que dava eco à ação missionária. Por outro lado, a natureza é algo que o loiolano tenta suportar, controlar ou vencer para a concretização do ato catequético.

Bibliografia

Revista de História - USP