quinta-feira, 6 de maio de 2010

História da Arte ou Estória da Arte?


História da Arte ou Estória da Arte?1

Roberto Carvalho de Magalhães
Pesquisador e Docente de História da Arte e Museologia Università Internazionale dell'Arte. Via delle Forbici, 24/26 50133 - Firenze, ITÁLIA. e-mail: rcmagalhaes@libero.it

RESUMO

Tomando como ponto de partida os conceitos sobre arte e história expressos por Paul Valéry em seus escritos teóricos, pelo filósofo alemão Konrad Fiedler e pelo historiador e crítico de arte italiano Carlo L. Ragghianti, o autor questiona as formas de se compor a história da arte e os seus desdobramentos pedagógicos. Perplexo diante da confiança nas definições dadas a períodos históricos, o autor contrapõe a verdade e a concretidão das obras existentes - que têm a sua própria linguagem, a sua própria forma - à reconstrução histórica, que não é capaz de fazer o passado reviver plenamente e não deixa de ser a projeção parcial de um olhar num passado que não existe mais e que chega até nós através de fragmentos e de enormes lacunas a serem preenchidas.

Palavras-chave: Educação artística; história da arte; verdade histórica; método crítico; El Greco; Chagall.


O texto inédito em português que segue foi escrito às vésperas do "Seminário Internacional de Educação Estética" promovido pela Faculdade de Educação da Universidade de Campinas em 2004. Tendo o seu autor já escrito a sua comunicação, sentiu a necessidade de esclarecer algumas questões de método que considera cruciais e que o guiam na sua atividade pedagógica e de pesquisador na Università Internazionale dell'Arte de Florença, Itália. Questões que estão subjacentes à comunicação feita em Campinas, e à globalidade do trabalho do seu autor, e que clamavam por ser explicitadas com clareza. O texto acabou tornando-se uma homenagem à memória de um grande pensador italiano, o filósofo, crítico e historiador da arte Carlo Ludovico Ragghianti (1909-1987), de quem o autor foi aluno. Parece-nos oportuno publicá-lo agora, não tanto por uma questão de datas - faz vinte anos que Ragghianti desapareceu -, mas, entre outras motivações, para introduzir o leitor brasileiro à sua obra, praticamente desconhecida nestas latitudes.

Gostaria de iniciar minha comunicação com algumas observações que poderiam ser úteis no âmbito pedagógico em que este seminário se desenvolve.2 Sei como a Professora Ana Angélica Albano está empenhada no debate sobre o mistério de tornar-se artista, sobre as questões que envolvem a educação artística e se esta pode ou não favorecer o nascimento de um artista. Não me esquecerei nunca do zelo e da sensibilidade com que ela propõe o percurso de transformação do homem num artista no seu livro Tuneu, Tarsila e outros mestres... o aprendizado da arte como um rito da iniciação.3 Ela descreve esse percurso como um renascimento psicológico em que o homem, desvencilhando-se das amarras das expectativas familiares, sociais ou, de forma mais geral, da imposição de um lugar comum existencial, afirma o outro que há em si próprio e o impõe ao mundo através da sua obra, da sua visão. Na relação entre os pintores Tuneu e Tarsila do Amaral, ela também entrevê um caminho possível para a educação artística: a orientação do mestre baseada no respeito da liberdade do discípulo. Mais do que isso, esta parece ser uma condição para se favorecer o nascimento do artista. Assim, a transformação do homem num artista acaba assumindo o caráter de aprendizado ou exercício da liberdade. Porém, na história, não foi sempre assim e nós podemos imaginar quantas vocações foram sufocadas por atitudes autoritárias dos mestres que negam aos discípulos a autonomia de criação e que querem ver neles somente o reflexo da própria imagem.

Como professor de história da arte e de museologia, partilho completamente dessas preocupações e, freqüentemente, me coloco a questão se a história que eu conto aos meus alunos amplia ou restringe a sua experiência da arte. Tenho sempre em mente, como uma advertência, as palavras de Paul Valéry em Degas, danza, disegno: "Não sei o que quer dizer verdade histórica; tudo aquilo que não existe mais é falso".4 A reconstrução histórica não deixa de ser a projeção parcial de um olhar num passado que não existe mais e que chega até nós através de fragmentos e de enormes lacunas a serem preenchidas. Fico sempre um pouco perplexo diante da confiança nas definições dadas a períodos históricos, que me parecem galáxias com tantos planetas e astros ainda a serem descobertos. Esta sensação é ainda mais forte quando me deparo com obras que transcendem o tempo e o lugar em que foram criadas para assumir um perfil único, individual, autônomo, que mal se adaptam às definições gerais. Essas são, para mim, as obras de arte.

Por outro lado, o risco do relativismo e da dispersão do pensamento está sempre de tocaia e, como a experiência e o conhecimento se dão enquanto comparação, conexão e agregação de idéias e visões, não posso deixar de comunicar, antes de enfrentar o tema do meu ensaio para o volume Lugares do Olhar,5 alguns conceitos que norteiam o meu enfoque da arte, da sua história e da sua comunicação.

Começo pelo próprio título deste seminário, que contém a palavra "estética". Apesar de não assumir na história sempre o mesmo significado, ela nos reserva uma armadilha: é comumente entendida como o âmbito da filosofia que estuda o "belo" ou, ainda, as questões relativas ao "gosto". Ora, o gosto ou a idéia de beleza em arte pressupõe um juízo a priori, um juízo baseado num modelo pré-concebido ou na reação de aceitação ou repulsão de algo em função das expectativas a priori do observador. Vincular a história da arte ou a própria arte ao conceito de beleza e a apreciação de uma obra ao gosto ou ao prazer que ela pode suscitar limita a sua existência como forma de conhecimento. A beleza é uma forma de preconceito e "...somente quando estamos livres de todo e qualquer preconceito, podemos entender com segurança a atividade do artista, e, então, a beleza perderá a sua dignidade de objetivo da arte".6 Dessa forma, a história da arte não se constitui mais como a história dos conceitos de beleza ou de harmonia e da sua utilização por parte dos artistas, mas sim como uma história dos caminhos da expressão individual e dos seus desdobramentos culturais. Ela assume o papel de recuperação não de algo que é "acessório da vida", mas de algo que é "exteriorização indispensável da vida".7

O meu mestre de crítica de arte, Carlo L. Ragghianti (1909-1987), sustentava que a obra de arte fosse um ser vivo. Desenvolvendo as idéias sobre a estética do pós-kantiano Konrad Fiedler (1841-1895), ele acreditava que "quem é capaz de entender as obras de arte como seres vivos, tais como são, é um dono da terra. Os políticos, os produtores da economia, os senhores da guerra dominam ou comandam setores de homens e mulheres, sempre com precariedade, e são, freqüentemente, por eles depostos, expulsos ou mortos; e não dominam e não mandam nos mortos, que às vezes os perseguem e os vencem.

O crítico que compreende acolhe, junto aos homens com os quais convive num momento ou num período de tempo, um número infinito de interlocutores de qualquer proveniência geográfica e de qualquer história, diante dos quais a única proibição é a incapacidade de entender, e com os quais a relação é sempre de igualdade e liberdade recíproca e ilimitada. O conhecimento de tais presenças é incondicional, se é exercitado não como domínio, utilidade, gozo ou outro tipo de posse que aliena, mas como compreensão aberta e fraterna de todas as iniciativas de vida realizadas nas obras de arte.

O crítico vive avançando por entre uma multidão cada vez mais ilimitada de experiências humanas que as obras de arte guardam na sua plena integridade e vitalidade. O crítico pode multiplicar indefinidamente a sua vida, e a dos outros, com a compreensão incessante. A sua sociedade não tem vínculos nem limites, a não ser o céu que, desde a aurora do mundo, contém o ar e o sol para as coisas humanas".8

A percepção da arte entendida como âmbito do belo e do gosto pressupõe a submissão a um modelo, ou a um uso funcional, o que a reduz na sua dimensão de iniciativa de vida, que vai muito além de toda e qualquer idéia de beleza e de função.

A história da arte não deve, portanto, ser condicionada à idéia de beleza e muito menos aos limites inevitáveis do gosto. Ela deve saber reconhecer o aparecimento de uma nova visão, que é ampliação da consciência e da experiência. Ela deve reconhecer que o verdadeiro artista não reflete uma visão do mundo, mas acrescenta uma visão ao mundo. "Ao invés de expressar o que se gosta de chamar de conteúdo do seu tempo, a personalidade de gênio - e, portanto, também o artista - oferece, graças à sua própria originalidade, um conteúdo completamente novo à sua época e àquelas que virão, elevando a sua própria visão e a sua própria consciência a expressão e constrangindo a humanidade a apropriar-se delas por um período mais ou menos longo; ele enriquece a cada dia o universo dos homens".9

Ragghianti fala de "iniciativas de vida realizadas na obra de arte". O que são, concretamente? São as escolhas do artista, é o processo através do qual o artista constrói a sua obra, é a visão que se elabora num processo dialético entre a vontade e a matéria. Por isso, sinto o dever de me colocar diante de um quadro ou de uma escultura e de abrir-me para que eles "falem" comigo, que me digam aquilo que querem dizer na sua linguagem. Faço de tudo para não pedir-lhes que correspondam às minhas expectativas, mas que comuniquem o que são - e só os meus limites de compreensão e os meus preconceitos podem limitar essa experiência. Procuro me comportar exatamente como deveríamos fazer diante de uma pessoa que temos a vontade de conhecer: deixamos que fale, que se conte, observamos as suas ações e hábitos, que, depois, à medida que a intimidade da amizade cresce, colocamos em relação com as ações e os hábitos dos seus familiares e do seu ambiente, descobrindo o que há de oposto ou de semelhante entre eles e, ainda, o que há de absolutamente único.

Estava dizendo que procuro abrir-me, quase depojando-me de mim mesmo, para que as obras falem comigo na sua própria linguagem. Em Florença, encontrei o meu "maestro" de crítica de arte, o qual dedicou uma vida inteira a esse problema e que, com unhas e dentes, defendia a idéia de que a obra de arte - seja ela figurativa ou abstrata - não representa, é expressão autônoma, que se consubstancia numa linguagem específica, que não é tradução em imagem de outra linguagem, como a língua escrita ou falada, que é o domínio da literatura, da poesia e da filosofia. Obviamente, há símbolos, há histórias, na pintura e na escultura. Os quadros do Renascimento estão cheios deles. Porém, não são eles que fazem da pintura uma arte, mas sim a visão do artista, que já é outra coisa, vai além da narração, da representação de tal ou tal símbolo religioso, do fato histórico ou do assunto mitológico. Na obra, o artista projeta a sua interioridade, o seu saber, as suas intuições, a sua emotividade. E isso se constrói de qualquer forma, na figura ou na ausência dela. Seja no âmbito figurativo, seja no abstrato, uma obra de arte assume em si uma história. Não a crônica de um fato, mas a história do conhecimento e da intuição do artista, o qual, por ter a força, a vontade de afirmar o outro que há em si, transmite à sua obra uma idéia que é acréscimo e não reflexo. A obra de arte se faz receptáculo da ciência, da consciência e da reflexão do artista - e, também, por uma parte, da cultura da qual o artista partilha com o seu tempo. O resultado aparentemente estático que ele obtém, de imagem aparentemente parada, congelada, contém, na verdade, todos os passos de um processo que se desenvolveu no tempo, incluindo a sua realização material. A obra nunca é estática. Ela é, na verdade, um poço de reflexões, de movimentos, de idas e vindas, de arrependimentos, de ímpetos. Ela é um processo perene - contanto que conservada no tempo. Ela é um ser vivo. Não respira como nós, mas oferece a quem quiser, e a quem respeitá-la no seu ser específico, o prazer de descobertas insuspeitáveis e de uma nova consciência.

Mas o que significaria respeitar uma obra de arte no seu ser específico? Antes de mais nada, significa apropriar-se da linguagem que lhe é própria. Ou seja: se queremos ler um romance, temos, antes de mais nada, que saber ler. Se o romance é em português, temos que saber ler o português. E quanto mais vocabulário tivermos, quanto mais formas verbais conhecermos, mais à vontade nos sentiremos durante a leitura. Sem esses instrumentos, não entendemos as palavras, as frases, os seus sons, o seu ritmo e os eventuais desvios - com todos os desdobramentos de sentidos e inesperadas vibrações - das normas. Então, deixando um pouco de lado o que "sentimos" diante de uma obra, devemos apropriar-nos, primeiro, com humildade, dos instrumentos que são próprios do artista, devemos estudar a "gramática" das artes visuais, que será o nosso primeiro passaporte para o extremamente complexo e misterioso mundo das artes plásticas. Como um turista pelas ruas de uma cidade estrangeira, se temos um mínimo de vocabulário em comum com as pessoas do lugar, conseguimos comunicar com elas, podemos intuir um pouco do seu modo de ser - que, imediatamente, nos torna também mais conscientes do nosso próprio modo de ser - e achar os caminhos para visitar os tesouros locais.

Essas reflexões são feitas por quem ensina história da arte - e não iniciação artística, o que é bem diferente. Acho, porém, que certa história da arte, a que procura ver a arte com os intrumentos do artista, pode ser parte útil e reveladora também na iniciação à arte. A história da arte que eu ensino se baseia fundamentalmente nas obras, nos seus desdobramentos formais, carregados, porém, de conseqüências culturais, psicológicas, que, no caso da arte figurativa, não têm nada a ver com o seu conteúdo imediatamente narrativo ou ilustrativo, mas com a visão singular na qual esse conteúdo se consubstancia. É quase uma história da arte fora da história, porque é a história daquilo que se eleva acima dos processos humanos comumente partilhados - poderíamos dizer dos "lugares-comuns" - e contemplados pela história tradicional dos processos econômicos e políticos, da luta pelo poder e pela supremacia. Ragghianti costumava dizer que a verdadeira história do homem é a história da sua espiritualidade. Essa idéia tem uma matriz fiedleriana: "A tudo aquilo que, não tendo um valor eterno, tem um interesse puramente histórico, opõe-se, entre as obras do passado, o que tem um significado espiritual, que, colocando-se acima e além da conexão histórica, com total liberdade, solta-se de todo e qualquer vínculo com o tempo e com o ambiente. Nos fenômenos que pertencem à primeira destas categorias, a importância histórica ultrapassa a espiritual; naqueles pertencentes à segunda, o valor histórico se reduz ao mínimo diante do seu significado de produção do espírito humano acima de qualquer condição histórica". 10 Uma obra de arte tem, portanto, uma vida independente do seu contexto histórico. Ela não é um documento histórico, mas sim uma expressão que se eleva acima do contexto. De outra forma, desaparecidas as condições em que a obra foi criada, ela tornar-se-ia incomunicável. Não precisamos conhecer toda a história do cristianismo para ficarmos subjugados pelos mosaicos de Ravena, pela Capela Sixtina ou pelas cúpulas de Correggio em Parma. Não precisamos conhecer os detalhes da vida de corte em Mântua para ficarmos boqueabertos na Camera degli Sposi, no Castelo Ducal, diante dos afrescos de Mantegna. Não precisamos nem conhecer a identidade do homem no Retrato de homem com turbante vermelho de Jan van Eyck para nos darmos conta do prodígio artístico realizado.

Poderíamos continuar citando obras, da pré-história aos dias de hoje, para as quais até os títulos nos parecem supérfluos, pois vivem de uma vida própria e não são simplesmente o reflexo de alguma outra coisa. Gostaria, porém, de citar e analisar brevemente um exemplo muito revelador daquilo que estou tentando comunicar: o bracelete em marfim de cerca 17.000 a.C. achado em Metsin, na atual Ucrânia. Em 1981, Ragghianti publica um livro intitulado L'uomo cosciente - arte e conoscenza nella paleostoria,11 que considero de grande importância não somente para quem se ocupa da assim chamada pré-história, mas para os historiadores da arte em geral. Uma das teses defendidas no volume é a de que a história não começa com a língua escrita, mas muito antes. Segundo Ragghianti, muitos achados arqueológicos, para quem os analisa por aquilo que nos é dado ver objetivamente deles - ou seja, pelas suas qualidades formais, e não simplesmente pela suas funções ou supostas funções -, nos revelam uma quantidade insuspeitável de informações sobre a capacidade do homem assim chamado "pré-histórico", como a de equacionar problemas de ordem abstrata e técnica não muito distante da do homem moderno. O bracelete de Metsin é a demonstração disso. Realizado a partir de uma presa de mamute, é constituído por uma faixa única de marfim de 60 milímetros de largura e 20 centímetros de comprimento e tem uma complexa trama decorativa de meandros geométricos entrelaçados. A dificuldade enfrentada no desenvolvimento do motivo de espirais quadradas concatenadas entre elas e a habilidade com a qual o seu autor o realizou numa superfície cilíndrica são impressionantes. Ragghianti nos pedia para copiar, a lápis, aquela decoração, fornecendo-nos uma reprodução plana, o que deveria facilitar a tarefa. Invariavelmente, a nossa dificuldade era enorme, mesmo para aqueles com maior talento para o desenho. Então, ele observava, divertido, que o artista (ou artesão) que havia realizado aquele objeto o tinha feito não numa superfície plana (e não simplesmente desenhando sobre um papel), tinha esculpido aqueles meandros geométricos na superfície curva da presa de mamute, cuja forma cônica não lhe consentia uma visão simultânea ou contínua do seu projeto e tornava, outrossim, a sua tarefa ainda mais difícil (para não falar nos problemas técnicos para se separar a camada superficial da presa da sua parte interna e obter, assim, o bracelete). Não podemos estabelecer quantas gerações de artistas ou artesãos teriam contribuído, através das suas tentativas e descobertas, com aquela incrível equação gravada no marfim pela colaboração entre os olhos, a mente e as mãos de um homem. Podemos estabelecer, todavia, o grau de ciência, de reflexão do seu criador e avaliar os problemas por ele enfrentados. Quem nos conta tudo isso é o próprio objeto, com a sua forma, que encerra em si a ciência e a visão do seu criador.







Desde então, eu mesmo passei a fazer essa experiência com os meus alunos, os quais, como eu muitos anos antes, acabam tendo que rever suas idéias sobre pré-história, sobre o que é história, sobre o conhecimento, que não é domínio exclusivo da palavra, sobre a vontade de criação do homem. No final das contas, acho que tudo isso pode favorecer, igualmente, a iniciação artística, pois o desenvolvimento da potencialidade de expressão depende, também, da consciência da expressão dos outros. E uma obra de arte só pertence à assim chamada história porque nós a colocamos lá. Mas, na verdade, qualquer que seja a época em que foi criada, ela vive no presente com seu perene enigma, com a sua experiência específica, com o seu próprio processo de criação.

Quando Ragghianti fala de "um número infinito de interlocutores de qualquer proveniência geográfica e de qualquer história", refere-se exatamente a isso, à infinidade de obras que, transcendendo as fronteiras do espaço e do tempo em que foram criadas, existem no nosso presente com as suas iniciativas de vida.

A história que eu gosto de contar é, portanto, uma história de "exteriorizações de vida", de "consubstanciações de expressões". Acho que "como o pensador que procura defender-se das palavras e das frases feitas, que dispensam as mentes de surpreender-se com tudo e tornam possível a vida prática, assim o artista pode, através do estudo das coisas informes, ou seja de forma singular, tentar reencontrar a própria singularidade e o estado primitivo e originário da coordenação do olho, da mão, dos objetos e da sua vontade". 12

Não há uma história da arte. Há muitas. Elas dependem, necessariamente, do ponto de vista que o historiador assume, do seu método e das suas convicções. Nas universidades italianas, a história da arte é "italocêntrica". Isso se deve ao fato que o patrimônio artístico italiano é tão vasto que, apesar dos dois séculos já transcorridos de pesquisas sistemáticas sobre a arte italiana - assumo aqui como início da história da arte moderna o Iluminismo -, há ainda muito a ser feito e descoberto. Falei de galáxias só parcialmente conhecidas no início desta comunicação. Eis uma. Os estudos de história da arte na Toscana, em Florença, são "toscanocêntricos". Repetimos o que já dissemos em relação à Itália: o patrimônio florentino, senês, aretino é tão vasto e importante - aqui nasce o renascimento italiano - que não sobra muito tempo para o que acontece em outras partes do mundo. Eis outra galáxia. Concentramo-nos nela e esquecemos o que acontece nas galáxias vizinhas. Ou, então, quando resolvemos dar um passeio em outra galáxia, o nosso olhar e o nosso juízo está condicionado por tudo aquilo que encontramos na galáxia anterior e, na nova experiência, individualizamos, ressaltamos só aquilo que a cultura acumulada anteriormente nos consente ver. O mesmo pode-se dizer de outros países. Há uma história da arte eurocêntrica, em que outros continentes entram somente na medida em que deram, visivelmente, uma contribuição ao desenvolvimento da linguagem visual européia, como no caso da relação da arte japonesa com o impressionismo, com Van Gogh, com o estilo art-nouveau e a art-déco. Com uma boa dose de otimismo, pensamos que, com o tempo, haverá um cruzamento de todas as informações produzidas por todos os lados e que, assim, cada coisa irá ao seu lugar.

Há, também, quem veja na arte um simples reflexo do seu tempo, considerando-a um fenômeno marginal e acessório da vida do homem, e a trata como simples documento de uma história de costume. Há quem só considera a atividade do artista na sua relação com as correntes do seu tempo e, portanto, o coloca na história porque partilha das idéias de um grupo. Há, ao contrário, quem inclui na história somente os artistas que visivelmente descendem estilisticamente daqueles que o antecedem - os "precursores" - e que antecedem os seus sucessores, tornando-se eles próprios precursores. É a assim chamada história genética da arte, que deixou e deixa tantas vítimas no seu caminho. É conhecido o caso de Monet, cuja obra mais tardia, originalíssima, só foi adequadamente reconhecida quando se afirmou a pintura gestual e a action painting, depois do totalitarismo crítico que vinculava o nascimento da arte moderna - identificada com o cubismo - exclusivamente à pintura de Cézanne. Tudo o que não era possível reconduzir ao estilo construtivista de Cézanne acabava ocupando uma posição marginal na história. O Monet dos Nenúfares foi recuperado pela história como fato relevante a partir do momento em que foi percebido que as suas telas já continham, muito antes de Pollock e outros pintores, a gestualidade que tornar-se-ia uma bandeira da pintura americana e européia dos anos 40 e 50. Individualiza-se o que hoje conta e vai-se buscar no passado o que o anuncia. Este também é um método de se contar a história da arte.

Se, por um lado, os verdadeiros artistas agem por necessidade de "reencontrar a própria singularidade", como diz Valéry, por outro lado, a história da arte tem a virtude de ajudar a preservar a memória da atividade artística, de contribuir com a transmissão e duração das obras de arte no tempo e, assim, de oferecer aos homens, como diz Ragghianti, "um número infinito de interlocutores de qualquer proveniência geográfica e de qualquer história". Mas pode, também, cometer grandes injustiças. Por exemplo, não sendo capaz de reconhecer a expressão singular de um artista e deixando, por isso, de lhe reservar o espaço que deveria ocupar ou tratando-o, simplesmente, como um documento e não uma voz. De certa forma - e apesar da sua fama -, Chagall é uma vítima das injustiças da história da arte. A ele tem sido reservada uma posição dentro e, ao mesmo tempo, fora da "história da arte moderna", que privilegia, freqüentemente, o método genético, colocando dentro da história os artistas que se inserem claramente na rede de ascendências e descendências ou que pertencem claramente a uma corrente, deixando de lado aqueles que não são afiliados a grupos ou que não sejam visivelmente "precursores" de outros artistas e correntes artísticas. Se se considera a idéia de corrente artística como o alicerce do discurso histórico, Chagall, que reivindicou com decisão, através do seu trabalho e também das suas declarações, a sua total independência em relação ao cubismo, ao surrealismo, ao construtivismo, etc., é inevitavelmente excluído. Reconhece-se que é um grande pintor, mas a posição que ocupa na reconstrução histórica é, no final das contas, marginal: ele entra pela porta de serviço da história na medida em que dialoga com o cubismo e com o futurismo ou, ainda, enquanto pintor onírico (definição, aliás, que ele próprio repudiava), portanto associável à pintura surrealista.

Por outro lado, numa história que vê a atividade do artista como reflexo de uma cultura, e não como consubstanciação de uma expressão individual que se coloca acima e além de qualquer condição histórica, Chagall acaba sendo o símbolo ou a ilustração de certa cultura hebraica, com os seus judeus errantes, os seus rabinos, as suas sinagogas, que marcam o horizonte de Vitebsk - ou seja, um documento, e não uma voz autônoma. Ele vira um instrumento da religião e uma projeção da história de outrém.

Senão, a história - que tem uma forte tendência a catalogar - não sabe muito bem o que fazer com Chagall, pois, num momento em que se multiplicam as correntes artísticas - as assim chamadas vanguardas históricas - , o artista russo afirma a sua independência em relação a elas. Ele sabe, ele sente que o cubismo não é a sua voz. Ele se queixa do fato que as "gerações de agora", os seus contemporâneos, se deixam levar pelos "jogos de habilidade" e acabam caindo no "excesso de estilo" 13. Ele entrevê o perigo do academismo na própria vanguarda. Ele experimenta tudo o que vê em Paris durante a sua estada de 1910 a 1914, mas não se torna um artista ao serviço de uma corrente. Ao contrário, além de lutar para afirmar o outro que há em si em relação ao seu contexto familiar, social, religioso e cultural - refiro-me à sua vida na cidade natal, Vitebsk -, Chagall vai ainda muito mais longe na exteriorização da sua singularidade: ele deve afirmar o outro que há em si também em relação às correntes artísticas do seu tempo. Ele permanece um artista figurativo quando as artes caminham em direção da abstração. Ele entra em colisão com o construtivismo de El Lissitsky e com o suprematismo de Malevitch. A imposição do suprematismo no instituto de arte por ele fundado em Vitebsk, logo após a Revolução Russa, determina o seu abandono da escola. Ele defende, para si e para os outros, uma liberdade total em relação aos programas e às teorias artísticas, os quais são sentidos como uma limitação no processo de reencontro com a própria singularidade. Trata-se, certamente, de um processo dialético, no qual a descoberta do cubismo, do futurismo e das vanguardas tem a sua importância. Mas o seu processo de reencontro com a própria singularidade e a consubstanciação desta numa expressão artística original é muito mais amplo e complexo. Chagall acolhe como seu interlocutor favorito um pintor do passado: El Greco. Desta forma, transgride o apriorismo cultural segundo o qual - pelo menos no lugar comum da reconstrução histórica - ele deveria ter-se espelhado nos seus contemporâneos ou em imediatos antecessores, ou ainda, para ser moderno, para existir no seu tempo, deveria ter "rompido com o passado". Mais do que isso, ele dialoga com as "iniciativas de vida" (as obras de El Greco) que vêm de outra história e têm outra proveniência em relação àquelas às quais, segundo o esquema histórico habitual, ele deveria se referir. Neste sentido, Chagall demonstra reconhecer o caráter atemporal da atividade artística, o seu caráter autônomo, que se eleva acima das condições históricas. Ele dialoga com uma experiência humana que, embora tenha nascido num passado distante, vive intacta no presente e se oferece com o seu processo de exteriorização de vida singular a quem quiser com ela dialogar. A esse diálogo é dedicado o texto "El Greco num sonho de Chagall". 14 Chagall demonstra, assim, que El Greco é parte do presente tanto quanto Picasso, Matisse ou Kandinsky.

No processo de consubstanciação da sua expressão, Chagall não está preocupado em ser um reflexo do seu tempo, em ser "moderno", mas sim em ser si próprio e procura seus interlocutores entre os artistas com os quais sente grande afinidade, sejam eles seus contemporâneos ou não. Essa pode ser a chave para se compreender melhor a contribuição de Chagall para a história - e, quem sabe, uma advertência para os historiadores da arte. O artista reivindica a afirmação da própria liberdade na exteriorização de vida que é a sua obra. Ele pode estabelecer pontes insuspeitáveis com interlocutores de qualquer proveniência e de qualquer história, pois o seu problema não é existir no seu tempo, mas acima dele. Paradoxalmente, na história da arte não há presente, nem passado, mas a presença infinita e perene de exteriorizações de vida.

NOTAS

Revista Varia História

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