sexta-feira, 14 de maio de 2010

Lobo em pele de papagaio


Lobo em pele de papagaio
O Brasil é o país do samba, do futebol e da cordialidade, certo? Não é o que pensam nossos vizinhos da América do Sul, que nos acusam de imperialismo. A análise fria da história mostra que os hermanos têm alguma razão
por Texto José Francisco Botelho
Em abril de 1866, uma coalizão de países conhecida como Tríplice Aliança invadiu a República do Paraguai e iniciou uma das ocupações mais catastróficas na história das Américas. O objetivo oficial era derrubar o ditador Solano López. Teoricamente, uma cruzada contra a tirania, em nome da liberdade e da civilização – semelhante à guerra que George W. Bush iniciou em 2003. Mas os paraguaios, como os iraquianos, penaram com as conseqüências de sua “libertação”: cerca de 70% da população morreu na guerra e sua economia ficou dependente dos conquistadores. Século e meio depois, nacionalistas paraguaios ainda reclamam que o país foi vítima da maior agressão imperialista na América do Sul. Detalhe: o país-líder da coalizão foi o Brasil.

Se você ficou surpreso ou ofendido com o parágrafo aí em cima, certamente não está só. Para a maior parte dos brasileiros hoje, “imperialista” é um rótulo que combina apenas com os EUA. Mas, entre uruguaios, paraguaios, equatorianos e outras nações vizinhas, o “país do jeitinho” é um colosso que inspira respeito. E revolta – por causa do tamanho, da economia gulosa e da projeção internacional, o Brasil às vezes é visto como um país aproveitador e prepotente. Esse antibrasileirismo tem seu quê de sensacionalista, mas também carrega algumas verdades desconfortáveis. Apesar da fama de cordial e avesso a brigas, o Brasil ganhou seu lugar no mundo, passando de colônia européia a potência emergente, da mesma forma que todos os Estados modernos: a ferro e fogo. Hoje, a projeção do país na América do Sul (e no mundo) atrai críticas ferozes ao lado de elogios entusiásticos. Nestas páginas, você vai conhecer os dois lados do império tropical.

Fronteiras de sangue

O imperialismo é a dominação política ou econômica que um Estado exerce – na marra, se necessário – sobre outros mais fracos. O termo surgiu no século 19, quando nações européias como Inglaterra e França chegaram a dominar 80% do planeta. Exemplos recentes são os EUA e a falecida União Soviética, que cimentaram sua hegemonia financiando golpes de Estado e apoiando ditaduras.

Mas o tipo mais simples e agressivo de imperialismo é mesmo a expansão de fronteiras – e, até um século atrás, o país do samba viveu num sangrento baile territorial com seus hermanos hispânicos. O racha começou antes que os Estados sul-americanos existissem: em 7 de junho de 1494, quando Portugal e Espanha assinaram o Tratado de Tordesilhas, dividindo o mundo “a descobrir” entre as duas nações. A fronteira virtual passava a 2 mil quilômetros de Cabo Verde, exatamente sobre a então inexplorada América do Sul. Após o “terra à vista” de 1500, os portugueses aumentaram sua colônia pelas armas, e o Brasil foi virando o que é hoje: uma enorme ilha lusófona num mar de fala espanhola.

Após a independência, em 1822, o Brasil virou Império até no nome, um Estado poderoso cercado por 9 repúblicas menores. Quase todas assustadas pela proximidade do gigante. Só a então próspera Argentina ousava competir: no século 19, ela disputava com o Brasil a influência sobre os vizinhos. O grande palco desse duelo, que um século depois passaria aos campos de futebol, foi o Uruguai. Em 1821, o país foi invadido pelas tropas daquilo que na época era o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves – a mentora da operação foi a rainha Carlota Joaquina, nascida na Espanha, que sonhava com um Estado hispano-português cujas terras atingissem o rio da Prata. A independência uruguaia veio em 1828 com a ajuda nada desinteressada de exércitos mandados por Buenos Aires. Décadas depois, Solano López se meteu no tango estratégico: num desafio desastrado ao poderio de brasileiros e argentinos, o paraguaio atacou ambos em 1864. E se deu muito mal: os velhos rivais se uniram, arrastaram junto o satélite Uruguai, rechaçaram Solano e logo invadiram o Paraguai. Depois de saquear Assunção, tropas brasileiras mataram o ditador em 1870. Nesses 6 anos, a destruição foi enorme – cerca de 600 mil paraguaios morreram. “O Paraguai foi o primeiro país na região a ter telégrafos, fornos siderúrgicos e indústria pesada. A guerra destruiu tudo isso”, diz o historiador Fernando Lopez D’Alessandro, da Universidade de Montevidéu. “E não foi por acaso. A Tríplice Aliança tinha a intenção de transformar o Paraguai num exemplo a quem desafiasse sua hegemonia.”

Hoje, muitos historiadores brasileiros acham que a invasão foi uma resposta legítima à agressão de Solano. Os paraguaios, claro, discordam. “O que a Tríplice Aliança cometeu foi um genocídio”, diz o sociólogo Enrique Chase, diretor do Instituto de Comunicação e Artes de Assunção. Após a guerra, o Brasil anexou pedaços do país derrotado e o ocupou até 1876. A economia local nunca se recuperou e até hoje muitos culpam o Brasil pelo subdesenvolvimento do país. Em 2004, grupos paraguaios de extrema esquerda invadiram dezenas de fazendas na fronteira leste do país – propriedades compradas por imigrantes brasileiros, que hoje somam cerca de 500 mil pes­soas. O grito de guerra dos invasores não incluía chavões marxistas. Eles gritavam “Brasileños, fuera!”

Nova potência

A hegemonia brasileira foi eclipsada no século 20 pela política externa dos EUA, que engolfou as Américas após a 2ª Guerra. E, por décadas, as reclamações contra o imperialismo verde-amarelo ficaram ralas (exceto no Paraguai, onde o Brasil nunca perdeu a fama de vizinho abusado). Nos anos 80 surgiram novos pólos de força no chamado terceiro mundo. A diplomacia brasileira impôs respeito em 1991, impulsionando a criação do Mercosul, o tratado de livre comércio que inclui Argentina, Uruguai e Paraguai. Foi uma tentativa de desfazer o tal racha sul-americano – e uma jogada esperta contra a supremacia dos EUA, acostumados a tratar a América Latina como seu quintal estratégico.

Por pensar assim, o Brasil era visto como um paladino internacional do terceiro mundo – até o início do século 21. Daí por diante, segundo os críticos, nossas ambições de potência tropical subiram à cabeça. Sintoma disso seria o discurso de Lula ao tomar posse do Planalto em janeiro de 2001: o novo presidente afirmou que o Brasil era o “líder natural” dos vizinhos, espalhando acusações de arrogância aos quatro ventos do Mercosul. Outro argumento para o antibrasileirismo veio no ano seguinte, quando o Brasil se candidatou a um assento no Conselho de Segurança da ONU: oficialmente responsável por manter a paz no mundo, o órgão é acusado de defender só os interesses das grandes potências. E para abrilhantar sua campanha, o Brasil aceitou o comando das tropas da ONU enviadas ao Haiti, sacudido por conflitos civis em 2004. Hoje, muitos analistas vêem na “missão de paz” uma interferência indevida das potências graúdas no pequeno país caribenho – e o Brasil, para fúria dos detratores, está bem no meio da confusão.

Mas as maiores reclamações antitupiniquins pipocam mesmo na arena da economia globalizada. “Com a estabilização da economia nos anos 90, nossas empresas passaram a investir no exterior, principalmente na América Latina e na África”, diz o cientista político Ciro Torres, do Instituto Brasileiro de Análises Sociais e Econômicas (Ibase). Hoje, estamos entre as 12 nações que mais investem lá fora: só em 2006, transnacionais verde-amarelas aplicaram impressionantes US$ 28 bilhões em países estrangeiros. É claro que essa pujança traz suas benesses a regiões pobres – a companhia de construção pesada Odebrecht, por exemplo, emprega hoje mais de 12 mil pessoas em Angola e investe milhões em projetos sociais. Mas, junto à expansão, vêm as críticas. “Em alguns lugares, companhias brasileiras são acusadas de se comportar como as multinacionais americanas, cometendo abusos contra a natureza e os direitos humanos”, diz Torres, que coordena um mapeamento de impactos positivos e negativos de companhias brasileiras no exterior. “Muito disso pode ser boato, mas temos de monitorar a nós mesmos para não ganhar fama de vilões.”

A mais incendiária dessas polêmicas envolve a presença da Petrobras na Amazônia equatoriana. Em junho, a estatal brasileira ganhou uma concessão para extrair petróleo no Parque Nacional de Yasuní, que abriga diversas nações indígenas e é uma das regiões de maior biodiversidade do planeta segundo a ONU. O projeto de abrir estradas e cavar poços no santuário ecológico despertou a ira de ambientalistas e indígenas. Em outubro, dezenas de índios vestindo cocares de plumas marcharam em frente ao palácio do governo, em Quito, exigindo que a petroleira canarinho volte para casa. A Petrobras disse à Super que o local é mesmo uma jóia ecológica e que tecnologias de ponta serão usadas para não prejudicá-lo – mas esses argumentos não aplacam os críticos. “A lei brasileira proíbe a exploração de petróleo em reservas indígenas – ou seja, a Petrobras está fazendo aqui o que não pode fazer aí”, diz o equatoriano Javier Leon, da ong Acción Ecológica. “A concessão só ocorreu porque a influência do governo brasileiro é muito forte. O Brasil está criando sigilosamente um pequeno império no hemisfério sul”, acusa Leon. Mas será o impávido colosso tão malvado como pintam? Na dúvida, leia os exemplos a seguir.

O malandro, o caubói e o caudilho

Em 2006, o recém-eleito Evo Morales nacionalizou o gás boliviano e ocupou com soldados as plantas da Petrobras no país. Em vez de chiar, o Brasil deu tapinhas malandros no ombro do enfezado vizinho – e, em 2007, o ministro brasileiro das Relações Exteriores foi negociar um acordo mais favorável à Bolívia. Tudo resolvido com jeitinho. Já em 1953, quando um primeiro-ministro iraniano expulsou do país uma petroleira ocidental, a CIA organizou um golpe de Estado, acabou com a nascente democracia do país e colocou no poder um ditador-fantoche, acendendo o estopim do antiamericanismo no Oriente Médio. E o resto você sabe.

Aliás, para encontrar imperialistas mais truculentos que o Brasil, nem é preciso ir à América do Norte. O venezuelano Hugo Chávez, que hoje batalha um lugar no Mercosul, cultiva tentáculos políticos nada sutis. Um exemplo: em outubro, o embaixador da Venezuela em Buenos Aires foi acusado de financiar grupos chavistas, que, segundo a mídia argentina, somam 30 mil militantes no país. A Venezuela, por sinal, tem disputas territoriais com o Suriname e a Guiana – em novembro, o exército venezuelano foi acusado de atravessar a fronteira e disparar tiros contra navios guianeses. Até 2020, o governo de Chávez planeja investir US$ 60 bilhões nas Forças Armadas, o que tornaria a Venezuela a maior potência militar da América Latina. “Chávez não é de esquerda nem de direita. É um caudilho”, opina o historiador Marco Villa, da Universidade Federal de São Carlos. Caudilhismo alimentado pelos lucros do petróleo – afinal de contas, a Venezuela é um dos maiores exportadores do mundo. Por isso, a descoberta em novembro das mirabolantes jazidas de Tupi, com seus estimados 8 bilhões de barris de petróleo tinindo de fresco, lança uma sombra na camaradagem entre os governos brasileiro e venezuelano. Com Tupi na manga, o Brasil em alguns anos pode ser não apenas um dos maiores produtores das Américas mas do mundo.

Tudo isso acaba numa pergunta: o Brasil pode ser uma “potência não imperialista”? “Sim. Se o Brasil fosse mesmo imperialista, é claro que não teria tratado a Bolívia com tanta brandura em 2006”, responde o geógrafo Diego Pautasso, do Núcleo de Estudos de Relações Internacionais da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. Ele está entre os estudiosos que apontam na potência tupiniquim o sintoma de uma nova e bem-vinda ordem mundial. “O modelo da superpotência global, que impõe sua vontade a todos, está obsoleto. O futuro será das potências regionais, que servem de carro-chefe a suas regiões e negociam em vez de mandar. Se ganharmos um assento no Conselho de Segurança da ONU, a América Latina pela primeira vez terá voz ativa na política internacional.” Lá em Montevidéu, o historiador Fernando Lopez D’Alessandro escutou a mesma pergunta e opinou: “A projeção do Brasil pode ser bem-vinda, desde que não seja egoísta e arbitrária”. Ou seja, desde que o Brasil não seja um caudilho. Ou um caubói.

Liderança gente fina na África
Se os sul-americanos nos olham com desconfiança, os africanos que falam português adoram tudo o que é brasileiro
Se entre os vizinhos sul-americanos o Brasil amarga fama de imperialista, a situação é bem outra na África lusófona – que inclui Moçambique, Angola, Cabo Verde, São Tomé e Príncipe e Guiné Bissau, países colonizados por Portugal. “Nessa região, o Brasil tem uma imagem muito positiva. É um país de economia forte o bastante para ajudar os mais pobres e, por outro lado, nunca colonizou nem explorou a África. Por isso os africanos preferem ajuda e investimentos brasileiros no lugar dos europeus”, diz o historiador Fernando Seffner, da UFRGS, que viajou 12 vezes a Moçambique em projetos de cooperação acadêmica entre o Brasil e seus primos africanos. O império verde-amarelo está deixando sua marca não apenas nas empresas brasileiras que investem nesses países mas também no idioma. Até o início do século 21, o português falado na África era muito semelhante à versão européia. Mas isso está mudando – nos últimos 7 anos, os moçambicanos substituíram palavras como “autocarro” e “telemóvel” por “ônibus” e “telefone celular”. Tudo graças às novelas brasileiras que dominam a programação das televisões locais: a Record, por exemplo, têm 9 retransmissoras espalhadas pela África. E o maior mercado público de Luanda, capital de Angola, foi batizado em homenagem a um clássico das telinhas tupiniquins: chama-se Roque Santeiro.

A conquista do oeste
Nosso mapa triplicou desde 1500. E não foi na base da amizade
Séc. 16

O Tratado de Tordesilhas, de 1494, traçou um meridiano dividindo o mundo entre os portugueses (que teriam África e Ásia) e os espanhóis, que seriam donos de toda a América, menos este pedaço: o Brasil.

Séc. 18

Os colonos luso-brasileiros empurraram a fronteira para o oeste. Os espanhóis só resistiram de fato no sul do país, área que até hoje é meio “castelhana”.

1822

Em 1821, o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves incorporou o território ao sul do Rio Grande. Com a Independência, um ano mais tarde, a região passou a ser conhecida por província Cisplatina ou Oriental (por ficar a leste do rio Uruguai). A guerra de emancipação do Uruguai terminou em 1828.

1889

À época da Proclamação da República, o Brasil havia conquistado do Paraguai parte do que é hoje o estado do Mato Grosso do Sul. O oeste de Santa Catarina (e parte do Paraná), entretanto, permaneceria uma área de litígio com a Argentina até a década de 1940, quando foram definidas as fronteiras dessa região.

2008

No mapa atual do Brasil, há o aumento do Amazonas e a incorporação do estado do Acre, que antes pertencia à Bolívia. Essa anexação, por sinal, foi uma exceção pacífica na expansão territorial brasileira: foi pago um bom dinheiro (e não um cavalo, como disse Evo Morales) pelo território.
Revista Superinteressante

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