sexta-feira, 28 de maio de 2010

O nome do Brasil


O nome do Brasil*

Laura de Mello e Souza
Depto. de História - FFLCH/USP


RESUMO
O Brasil não teve sempre esse nome, pelo qual hoje é conhecido. Durante dois séculos, sua denominação oscilou entre Brasil, nome ligado à atividade mercantil decorrente da exploração do pau de tinta, e Santa Cruz, nome ligado à missão salvacionista que acompanhava a colonização realizada pelos portugueses. Ao longo dos tempos, houve seguidores de uma e de outra nomenclatura e, os motivos pelos quais as defenderam mudaram no tempo, conforme se tenta mostrar neste artigo.
Palavras-chave: Brasil; Terra de Santa Cruz; Colonização; Nome; Humanismo

1. Tempo de indefinição

Tocadas em 1500 pelos homens de Pedro Alvares Cabral, as terras que hoje são brasileiras foram desde então oficialmente incorporadas à coroa portuguesa. Se haviam sido freqüentadas antes, como sugere o Esmeraldo de Situ Orbis (Pereira 1991: 539540) e defendem alguns historiadores portugueses, disso não ficou maior registro, e não há, pois, como fugir da data consagrada e recentemente celebrada – para o bem e para o mal – por brasileiros e portugueses1. Descoberto oficialmente pois em 1500, sob o pontificado de Alexandre VI Borgia, não se pode dizer, a rigor, que existisse, então, nem Brasil nem brasileiros. Vários são os sentidos dessa não-existência.

Há primeiro um sentido físico: as terras que hoje constituem o território brasileiro ainda não eram conhecidas na sua feição física pelos portugueses, que, conscientes disso, dedicaram os 30 primeiros anos do século XVI a expedições de reconhecimento e vigilância da costa. Onde começava e onde terminava a jurisdição lusa sobre aquelas terras? Dado que a nova terra fazia parte de um espaço tido pela diplomacia e pela geopolítica lusitanas como pertencente à sua coroa, pareceu de início natural que integrasse o império português, o que de resto achava-se garantido pelo Tratado de Tordesilhas.

A idéia geral sobre esse espaço era contudo ainda vaga, e falhava quando se chegava aos aspectos mais detalhados. Os portugueses se empenharam em suplantar essa indefinição, tarefa que teve aliás a primazia em relação ao aproveitamento econômico da terra. Esta, de início, não despertou maiores interesses na corte de D. Manuel, que pensava acima de tudo no Oriente e nos projetos que melhor viabilizassem sua exploração comercial. Antes talvez de ser vista como espaço econômico, e deixandose de lado o interesse logo despertado pelo pau brasil, a nova terra interessou pela sua capacidade de renovar os conhecimentos cartográficos e astronômicos: diferentemente da África ou da Ásia, era terra nunca antes descrita ou representada.

Vindo na esquadra de Cabral, assim que as naus aportaram Mestre João logo cuidou de observar o céu, dele tomando posse para os portugueses e realizando a primeira descrição européia exata "da mais famosa constelação de todos os novos céus", o Cruzeiro do Sul (Seed 1999: 147)2 . As expedições de exploração da costa, enviadas desde 1501 e durante os vinte primeiros anos do século, deram nome aos acidentes geográficos e mediram as latitudes de norte a sul, trazendo contribuições decisivas para reforçar a idéia de que a terra firme ocidental era um continente, e para melhor representá-la nessa feição. As cartas de padrão régias traduziram esse conhecimento (Couto 1995: 191). Por volta de 1514, o Livro de Marinharia de João Lisboa já fazia menção ao Cruzeiro do Sul, e trazia um regimento para determinação das latitudes (Couto 1995: 197). Antes do primeiro quartel do século chegar ao fim, os portugueses conheciam a costa sul americana do Atlântico muito melhor do que os espanhóis, o que lhes dava vantagem na disputa pelo controle político dos espaços do Novo Mundo.

Em 1502, copiando o sistema anteriormente adotado na costa ocidental da África entre 1469 e 1475, a terra foi arrendada a uma associação de mercadores. Em 1504, a monarquia portuguesa fazia sua primeira doação em território americano, concedendo, pelo prazo de duas vidas, a capitania da ilha de São João a Fernão de Loronha. Em 1513, novo contrato, sobre o qual se sabe quase nada, e desta vez para Jorge Lopes Bixorda (Couto 1995: 192-194). Nos 20 primeiros anos de vida do futuro Brasil, os portugueses criaram apenas duas feitorias: em 1504, em Cabo Frio; em 1516, em Pernambuco (Couto 1995: 194-202). Predominaram, portanto, as atividades de cunho privado, e o Estado poupou suas energias para a construção de um império no oriente. Nenhuma preocupação com o povoamento surgiu tampouco nessa época, quando os habitantes europeus da costa eram apenas os degredados deixados para trás desde a viagem de Cabral, um ou outro desertor das naus, como os grumetes a que se refere a carta de Caminha, todos eles constituindo o tipo do "lançado", que desde a experiência quatrocentista da África fazia, voluntária ou involuntariamente, a intermediação entre os universos culturais distintos (Bethencourt 1998: 58-115).

Todos esses fatos evidenciam o pouco interesse da Coroa em aproveitar economicamente a terra, então considerada como um espaço-reserva para atividades mais sistemáticas, e que naquele momento servia primordialmente como fornecedor de pau-brasil, não requerendo maiores esforços no sentido de se investirem capitais e se prover à colonização. A fluidez do direito internacional e da diplomacia, por um lado, e a nascente concorrência internacional, por outro, não permitiriam, contudo, que terra tão vasta ficasse reservada para o futuro. Se, como viu Luís Adão da Fonseca, D. João forçou uma decisão diplomática em Tordesilhas e quis segui-la à risca até mesmo quando Colombo chegou às Antilhas, o mesmo não se passou com a Espanha, que logo invocou o direito de descoberta e defendeu a posição mais aguerrida de que, quem chegasse primeiro, tornava-se o senhor de direito (Fonseca 1999: 113). Mal iniciava o século XVI e os espanhóis já exploravam a costa nor-nordeste da América do Sul. Os franceses também não tardaram, contestando a divisão luso-espanhola do globo e enviando navios para o Atlântico Sul. Não era então muito claro que a decorrência óbvia da viagem de Cabral fosse o direito português sobre a nova terra.

Talvez não seja exagerado dizer terem sido os franceses que decidiram a sorte das terras achadas por Cabral. Não fosse sua presença constante no litoral durante todo o primeiro quartel do século, e não fosse, muito depois, em 1555, o seu empenho em fundar uma colônia na baía de Guanabara e talvez o interesse português pelo Atlântico Sul ficasse adormecido por mais tempo.

Desde pelo menos 1504, quando da viagem da nau L'Espoir de Honfleur, os franceses estiveram na costa da nova terra, carregando com pau-brasil os navios de armadores normandos e bretões (Baião e Dias 1923: 60). Após 1521, quando morreu D. Manuel, a indecisão de seu sucessor, D. João III, em se alinhar com Carlos V contra Francisco I acabou beneficiando as investidas francesas no Atlântico Sul. Enquanto a política oficial dos dois países não assumia contornos mais definidos na Europa, os armadores franceses continuavam a freqüentar a costa brasileira, o que levou a conflitos armados de dimensão considerável nas águas atlânticas. Esses conflitos se intensificaram entre 1526 e 1527, quando Cristóvão Jaques, patrulhando a costa, procedeu a prisões e execuções de súditos de Francisco I, que, sob pressão dos armadores prejudicados, reclamou indenização junto ao monarca português (Couto 1995: 204-205). Mais do que nunca, ficou então patente a divergência entre Portugal, que com base nas bulas papais e nos tratados internacionais defendia a doutrina do Mare Clausum, e as pretensões de Francisco I, que postulava uma doutrina de mar aberto, se assentava num conceito de império baseado no direito das gentes (jure gentium) e achava que os direitos territoriais só podiam ser reconhecidos quando acompanhados de ocupação efetiva (Moysés 1996: 21-23). É tal divergência que se acha expressa na fala atribuída anos mais tarde ao rei francês, em 1541: exigia que lhe mostrassem a cláusula do testamento de Adão que o excluía da partilha do mundo (Baião e Dias 1923: 63-64). É tal divergência, igualmente, que esteve na base dos atos de ocupação por franceses de territórios " vazios" na América do Sul mesmo antes da ascensão de Francisco I ao trono, ou seja, poucos anos após a chegada dos portugueses à nova terra.

Mas além desse sentido físico da fragmentação, há um sentido espacial e cultural. Grupos culturalmente distintos ocupavam espaços muitas vezes descontínuos, que podiam não ter relação entre si. Para esses grupos, indígenas, que constituíam uma população de cerca de 2.500.000 habitantes na época da chegada de Cabral, as terras onde moravam também não eram o Brasil (Hemming 1987: 487-92). Quando do início da colonização, após 1530, os espaços continuaram a ser múltiplos, em função das várias frentes colonizadoras mais ou menos independentes que se abriram. Espaços quase sempre auto-contidos, isolados, e que às vezes se comunicavam mais facilmente com a Corte – como é o caso das terras ao Norte – do que uns com os outros (Novais 1997: 14-39). Se as capitanias hereditárias, cedidas pela Coroa a particulares, foram no início da vida da terra a expressão dessa configuração espacial, o sentido de fragmentação espacial e isolamento persistiu por séculos, sendo uma das feições dominantes do território brasileiro até praticamente o século XX. Nada ilustra melhor esse sentido do que as imagens seiscentistas e setecentistas de fortalezas portuguesas em paragens remotas, ou do que os belos desenhos e aquarelas das vilas amazônicas deixados pela expedição científica de Alexandre Rodrigues Ferreira já nos tempos da Ilustração.

E aqui se chega, por fim, ao sentido administrativo: vários particulares se empenharam na exploração daquelas terras, cada um com jurisdição própria sobre a faixa que lhe cabia. Portanto, cerca de 30 anos após o descobrimento, ainda não havia qualquer senso de unidade nas terras que, depois, seriam o Brasil, e que à época sequer tinham nome certo.

2. Um nome à procura de lugar

Porque, naquela época, o nome do Brasil não era Brasil. Entre 1351 e 1500 – o ano em que Cabral chegou à América do Sul –, os mapas europeus mostram o nome Brasil e variantes dele – Bracir, Bracil, Brazille, Bersil, Braxili, Braxill, Bresilge – designando, em lugares diferentes, uma ilha ou até três, a diversidade dos nomes traduzindo a vaguidão do lugar geográfico e a pouca certeza da existência física (Abreu 1900: 48-50). Podia-se, quando muito, falar das ilhas Brasil, que seriam várias, e nunca uma só, e que correspondiam a um horizonte geográfico ainda mítico, como o das ilhas Afortunadas e tantas outras miragens que a prática navegadora e a experiência, madre de todas as coisas, acabaria por dissipar.

Assim, primeiro houve o nome, depois o lugar que foi nomeado. Por curto tempo, ocorreu uma denominação intermediária, adotada nas cartas de Pero Vaz de Caminha e de mestre João, ambas de 1 de maio de 1500, mas que não teve muita sorte: Vera Cruz (Baião 1923: 317-347)3. Alguns italianos usaram-na nos primeiros anos após as viagens de Cabral e de Vespucci. Um certo Giovanni di Leonardo da Empoli, comerciante e armador toscano, referia-se "à terra da Vera Cruz" numa carta de 16 de setembro de 1504 (Dias 1923: 217). Mais ou menos na mesma época, Matteo di Benigno, que viajou na esquadra de Estêvão da Gama, escrevia que navegaram da Madeira até "a saliência de Vera Cruz" "sem vista de terra alguma"(Leite 1923: 410).

Depois, durante os trinta anos seguintes, pelo menos três denominações se sucederam nos mapas e nos escritos sobre o novo achado do rei de Portugal. Ainda entre os italianos, após 1501, quando chegou do oriente a armada de Cabral, a terra foi referida como Terra dos Papagaios, e da mesma forma aparece no globo de Schöner em 1520 ("America vel Brasilia sive papagalli terra") e no Ptolomeu de 1522. Na carta-portulano de Fano, datada de 1504, aparece em dialeto genovês a originalíssima menção à Terra de Gonçalo Coelho, nome do comandante das frotas de reconhecimento que exploraram a costa brasílica entre 1501 e 1503-4: Terra de Gonsalvo Coigo vocatur Santa Croxe, menção onde se combinam a designação insólita e aquela que se generalizou mais tarde entre portugueses e europeus (Baião 1923: 321; Leite 1923: 254; Couto 1995: 192; Varnhagen s/d: 89-90)4. Esta a designação presente, por exemplo, na carta que D. Manuel enviou aos sogros, os Reis Católicos, narrando o achamento em 1501, ou ainda no mapa de Bartolomeu Colombo de 1506 (Couto 1995: 188; Gil 1992: 184). Em1512, numa carta de Afonso de Albuquerque ao rei e ainda no globo de Marini, surge pela primeira vez o termo Brasil para designar em âmbito oficial a América Portuguesa (Couto 1995: 195; Baião 1923: 320). Usada alguns anos antes no Esmeraldo de Situ Orbis de Duarte Pacheco Pereira – "e estas são as gentes que habitam na terra do Brasil" –, a designação se fezcada vez mais freqüente daí em diante (Baião 1923: 321; Pereira 1991: 661). Sua consagração oficial ocorre entre 1516, quando D. Manuel investe Cristóvão Jaques nas funções de "governador das partes do Brasil" – que ainda são muitas – e 1530, quando D. João III designa Martim Afonso de Sousa encarregado do governo da terra: "Martim Afonso de Sousa do meu conselho capitão-mor da armada que envio à terra do Brasil" (Baião 1923: 321).

Contudo, certa flutuação de nomenclatura continuaria a existir, seja em escritos, seja em mapas, onde a mais antiga representação da nova terra ocorreria no planisfério português anônimo de 1502, conhecido como de Cantino (Couto 1995: 158159). No mapa do Visconde de Maiolo, de 1527, aparecem as duas designações, a antiga e a moderna, combinadas numa fórmula só: "Terra Sante Crusis de lo Brasil e del Portugal" (Baião 1923: 321). O aspecto mais curioso dessa indefinição inicial é a "disputa" que dividiu humanistas e comerciantes a partir do meado do século XVI, e que teria vida longa.

3. Entre Deus e o Diabo

Apesar de intuída por Antonio Baião, essa disputa nunca foi estudada e o fato de ter-se estendido no tempo atesta, a meu ver, sua importância e interesse (Baião 1923: 317-324)5. Como não podia deixar de ser em época onde o plano espiritual e o temporal apresentavam-se de forma indistinta, e numa conjuntura histórica marcada pelas reformas e perseguições religiosas, era também religiosa a linguagem e a forma de abordar o assunto.

Tudo indica ter sido João de Barros o fundador de uma tradição, perpetuada posteriormente por outros autores, onde a luta entre Deus e o Diabo aparece identificada ao surgimento da colônia luso-brasileira. Conta o humanista que Cabral chamou de Santa Cruz a terra onde tinha aportado em abril de 1500, assim homenageando o Lenho Sagrado. A necessidade de nomear a nova terra se colocou para Cabral quando, dias depois, a 3 de maio, partia para a Índia: mandou, então, "arvorar uma cruz mui grande no mais alto lugar de uma árvore e ao pé dela se disse missa. A qual foi posta com solenidade de bênçãos dos sacerdotes: dando este nome à terra, Santa Cruz". O Santo Lenho inscrevia o sacrifício de Cristo na gênese da terra encontrada, que ficava toda ela dedicada a Deus, como a expressar as grandes esperanças na conversão dos gentios. Mas os acontecimentos tomaram rumo diverso. Se a cruz erguida naquele lugar durou algum tempo, o demônio logo começou a agir para derrubá-la, pois não queria perder o domínio que tinha sobre a nova terra. Valendose do fato de chegarem a Portugal carregamentos cada vez mais significativos de pau-brasil, trabalhou para que o nome da madeira comercializada dominasse o nome do lenho no qual morrera Jesus, vulgarizando-se na boca do povo. Assim, era como se importasse mais "o nome de um pau que tinge panos" do que o nome "daquele pau que deu tintura a todos os sacramentos por que somos salvos, pelo sangue de Cristo que nele foi derramado" (Barros 1988: 174-175).

Condenando o apreço excessivo à atividade comercial, João de Barros clamava contra o triunfo de princípios seculares sobre os religiosos, querendo corrigir tanto o rumo tomado pela expansão portuguesa quanto o nome que ia ganhando prestígio popular para designar as terras "descobertas" por Cabral. Como não podia se vingar do demônio de outra forma, Barros admoestava seus leitores "da parte da cruz de Cristo Jesus" para que se empenhassem em devolver à terra "o nome que com tanta solenidade lhe foi posto, sob pena de a mesma cruz que nos há de ser mostrada no dia final, os acusar de mais devotos do pau brasil que dela". E finalizava, celebrando o providencialismo da expansão: "E por honra de tão grande terra chamemos-lhe província, e digamos a Província de Santa Cruz, que soa melhor entre prudentes que brasil, posto por vulgo sem consideração e não habilitado para dar nome às propriedades da real coroa".

As considerações sobre a viagem de Pedro Álvares Cabral e sobre o Brasil en-contram-se na primeira Década, publicada em 1552. Em 1554, Fernão Lopes de Castanheda sintetizaria a mesma idéia na sua História da Índia: "Nesta terra mandou Pedralvares meter um padrão de pedra com uma cruz e por isso lhe pôs nome terra de Santa Cruz, e depois se perdeu este nome e lhe ficou o de Brasil por amor do pau brasil" (Baião 1923: 318; 322). Em 1556, Damião de Góis também se estenderia sobre a questão na Crônica de D. Manuel: "Antes que Pedro Álvares partisse deste lugar, mandou por em terra uma cruz em pedra como por padrão, com que tomava posse de toda aquela província para a coroa dos Reinos de Portugal, à qual pôs nome de Santa Cruz, posto que se agora (erradamente) chame do Brasil, por caso do pau vermelho que dela vem, a que chamam Brasil". Na mesma época, D. Jerônimo Osório também frisou que Cabral desejou celebrar a Santa Cruz ao nomear a nova terra, que acabou por se chamar Brasil (Baião 1923: 322). Todas essas evidências revelam a preocupação da vertente do humanismo português que se debruçava sobre a expansão em tematizar o problema da nomenclatura da terra brasílica, o que foi talvez decisivo na sua fixação definitiva (Rebelo 1998: 113-133).

João de Barros recebeu em 1535 duas capitanias na nova terra, uma em sociedade com Aires da Cunha – a do Maranhão – e uma para si, a do Rio Grande do Norte. Parece que nunca esteve nelas nem em qualquer outra parte da América, ao contrário de um outro humanista, Pero de Magalhães Gandavo, que teria permanecido cerca de seis anos em Salvador como provedor da fazenda e que em 1575 manifestou concepções análogas às do autor das Décadas na História da Província de Santa Cruz6.

Autor dessa importante crônica dos primeiros anos da terra, Gandavo mostravase igualmente inconformado com o nome que vigorava na designação da Colônia – Brasil –, acreditando não haver razão para negar ou esquecer o nome originalmente dado, já naquela época eclipsado "tão indevidamente por outro que lhe deu o vulgo mal considerado, depois que o pau da tinta começou de vir a estes reinos". Para magoar "ao Demônio, que tanto trabalhou e trabalha por extinguir a memória da Santa Cruz e desterrá-la dos corações dos homens, mediante a qual somos redimidos e livrados do poder de sua tirania", Gandavo propunha que se restituísse à terra o nome antigo, chamando-a – daí o título de seu livro – Província de Santa Cruz. Aos ouvidos cristãos, concluía, soava melhor o nome "de um pau em que se obrou o mistério de nossa redenção que o doutro, que não serve de mais que de tingir panos ou cousas semelhantes".

Gandavo foi, como se sabe, um propagandista da colonização, escrevendo, por isso, uma história "antes natural do que civil", onde as riquezas e potencialidades da terra excitariam as pessoas pobres para virem povoá-la (Abreu 1932: 300). Na sua concepção, que Capistrano chamou "teológica" mas que foi, sobretudo, típica de seu tempo e da indistinção entre o sagrado e o profano vigente na época, colonização não podia ser entendida sem cristianização, nem descobrimento sem providência divina. Deus tinha, desde muito cedo, dedicado a terra à Cristandade: na passagem em que trata do nome da terra e lamenta o triunfo da designação comercial sobre a religiosa, Gandavo acrescenta um aspecto novo, ausente dos demais textos. Lembra que o nome de Santa Cruz, dado inicialmente por Cabral, fazia sentido não apenas por ter-se rezado a primeira missa no dia 3 de maio, quando se comemorava o Lenho Sagrado, mas porque as terras descobertas por portugueses cabiam à Ordem de Cristo, cujos cavaleiros traziam no peito a cruz por insígnia. Não havia pois como negar à colonização o seu caráter sagrado, que deveria se refletir no nome da terra a colonizar.

Antes da História da Província de Santa Cruz – cujo título é acompanhado do complemento a que vulgarmente chamamos Brasil –, Gandavo escrevera um Tratado da Terra do Brasil, provavelmente redigido em 1570 (Garcia 1924: 13). No transcurso de cinco anos, portanto, mudara de posição e passara a considerar preferível a designação religiosa, sinalizando, como João de Barros, que a designação comercial se impusera por obra do vulgo e não deveria, nessa qualidade, ser endossada por homens doutos e pios.

Houve contudo homens religiosos que, na época, ficaram fora dessa discussão. Importantes textos jesuíticos produzidos na segunda metade do século XVI ignoraram tranqüilamente a questão e não hesitaram em abraçar a nomenclatura que se ia consagrando, ou seja, a referida ao pau de tinta. Para Nóbrega, o Brasil ainda era plural: "A informação que destas partes do Brasil vos posso dar...", escrevia na Informação das Terras do Brasil, de 1549 (Nobrega 1988: 97). José de Anchieta teria atitude semelhante, anos depois. Na Informação do Brasil e de suas capitanias, de 1584, resolve o problema de forma direta e sem mais delongas: "Os primeiros portugueses que vieram ao Brasil [no singular] foram Pedro Álvares Cabral com alguma gente em uma nau que ia para a Índia Oriental no ano de 1500 [...]. E toda a província ao princípio se chamava Santa Cruz; depois prevaleceu o nome de Brasil por causa do pau que nela há que serve para tintas" (Anchieta 1988: 309). Naquele momento, a guerra dos nomes não era assunto de padres catequistas, para quem as lutas entre Deus e o Diabo tinham um sentido bem mais corpóreo, encarnando-se no esforço cotidiano e cada vez mais estéril de converter almas para a vinha do Senhor7.

Outro jesuíta célebre, o Padre Fernão Cardim, também adotou sem problemas a designação de Brasil nos seus textos, ignorando a questão da nomenclatura anterior: Do clima e terra do Brasil e de algumas cousas notáveis que se acham assim na terra como no mar, e Do princípio e origem dos índios do Brasil e de seus costumes, adoração e cerimônias. Devem ter sido escritos por volta de 1585, e foram publicados quarenta anos depois numa coletânea do inglês Purchas, denominada Pilgrimages8. Contemporâneos da Informação de Anchieta, neles o Brasil também figura no singular: a parte começava a se tornar um todo devido sobretudo à colonização que avançava, aproximando os portugueses de um e de outro lado do Atlântico. Tornou-se célebre a frase que abre o capítulo XXV de Do clima e terra do Brasil: "Este Brasil é já outro Portugal..." (Cardim 1978: 66).

Na Notícia do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa, obra de 1587 e unanimemente considerada a mais importante do século XVI, a referência à nomenclatura dupla aparece pela primeira vez numa perspectiva distinta, secular e histórica. O relato do descobrimento é fatual e objetivo, explicando-se o nome de Santa Cruz, sob o qual a província foi nomeada por "muitos anos", devido à cruz erguida no local quando da primeira missa rezada a mando de Cabral (Sousa s/d: 65).

Nada se diz de diabos, luta entre o Bem e o Mal, entre o sacrifício de Cristo e o vil comércio. Quase quarenta anos depois, em 1618, o Diálogo das Grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão, apresentaria posição análoga, acrescentando contudo mais um elemento: a identificação da terra com o continente, retomada apenas no século seguinte. "Essa província do Brasil é conhecida no mundo todo com o nome de América", diz Brandônio, "que com mais razão houvera de ser pela terra de Santa Cruz, por ser assim chamada primeiramente de Pedrálvares Cabral, que a descobriu em tal dia, na segunda armada que el-Rei D. Manuel, de gloriosa memória, mandava à Índia, e acaso topou com esta grande terra, não vista nem conhecida até então no mundo". Alviano, o outro interlocutor do Diálogo, indaga que razão houve para acabar esquecido o nome de Santa Cruz, originalmente dado por Cabral. "Não o está para com Sua Majestade e os senhores dos Conselhos", responde Brandônio, "pois nas provisões e cartas que passam, quando tratam deste Estado, lhe chamam a Terra de Santa Cruz do Brasil; e este nome Brasil se lhe ajuntou por respeito de um pau chamado desse nome, que dá uma tinta vermelha, estimada por toda a Europa, que só desta província se leva para lá" (Brandão 97: 14-16).

Da narrativa sobre o descobrimento, Brandônio suprimira o providencialismo divino, fundamental na passagem-mãe de João de Barros, e introduzira o acaso. Acerca da ambigüidade da nomenclatura, invocara as evidências, os documentos oficiais que continuavam fundindo os dois nomes. Constatações secas, encadeadas como num livro de contabilidade, sem qualquer recurso ao sobrenatural.

Mas a nomenclatura comercial não suplantaria de imediato a nomenclatura mística, como viu Antonio Baião (Baião 1923: 324). Ambas conviveram por longo tempo tanto nos despachos dos Conselhos reais quanto nas páginas dos livros que os letrados da época escreveram sobre a nova terra, que ia ficando mais velha mas não perdia a ambigüidade. E assim se chega à primeira História do Brasil digna do nome, escrita pelo franciscano Frei Vicente do Salvador em 1627.

À primeira vista, Frei Vicente filia-se à tradição fundada por João de Barros, segundo a qual o diabo conseguira substituir a Santa Cruz pelo pau de tinta na denominação da nova terra. Com a crucifixão de Jesus, que viera ao mundo salvar os homens do pecado, e a subsequente adoração da cruz, usada também para afastar o demônio, o diabo perdera o poder que tinha sobre os homens. Os textos de João de Barros e Frei Vicente se aproximam muito nesse tocante. Diz o autor das Décadas:

"Porém, como o demônio per o sinal da cruz perdeu o domínio que tinha sobre nós, mediante a paixão de Cristo Jesus consumada nela: tanto que naquela terra começou de vir o pau vermelho chamado brasil, trabalhou que este nome ficasse na boca do povo, e que se perdesse o de Santa Cruz. Como que importava mais o nome de um pau que tinge panos: que daquele pau que deu tinta a todos os sacramentos per que somos salvos, per o sangue de Cristo Jesus que nele foi derramado" (Barros 1988: 174-175).

Frei Vicente o acompanha de muito perto:

"Porém, como o demônio com o sinal da cruz perdeu todo o domínio que tinha sobre os homens, receando perder também o muito que tinha em os desta terra, trabalhou que se esquecesse o primeiro nome e lhe ficasse o de Brasil, por causa de um pau assim chamado de cor abrasada e vermelha com que tingem panos, que o daquele divino pau, que deu tinta e virtude a todos os sacramentos da Igreja, e sobre que ela foi edificada e ficou tão firme e bem fundada como sabemos" (Salvador s/d: 15).

Há, contudo, duas diferenças substanciais no texto do frade franciscano, acima transcritas em itálico: a perda do controle demoníaco sobre os homens não valia para a nova descoberta, onde os habitantes eram ainda gentios e, nessa condição, sujeitos potenciais do Diabo; os sacramentos não apenas salvavam – e isso João de Barros já dissera – como possibilitavam a instituição eclesiástica e a fortaleciam. Mesmo que não o explicite no texto, Frei Vicente leva o leitor a ver a necessidade da catequese, que transformaria os gentios em fiéis e fortaleceria a Igreja. Se o topos era repetido, o contexto histórico fazia com que mudasse de significado, e entre João de Barros e Frei Vicente, o processo de colonização lançara raízes9.

Isso explica porque, na continuação do parágrafo, Frei Vicente deixa de lado a defesa dos fundamentos religiosos da nomenclatura e passa a analisar a natureza da ocupação da nova terra, afastando-se de João de Barros e aproximando-se de Brandônio. A terra, reconhece o frade, "não se descobriu de propósito e de principal intento, mas acaso": terra, aliás, "da qual não havia notícia alguma". A tensão entre Deus e o Diabo, inscrita no nome que lhe deram, era certamente mais do que mera retórica para Frei Vicente, mas o motivo que o levava a justificar a restauração do primeiro nome era a necessidade de recolocar a colonização nos trilhos: o vício do nome funcionava, assim, como metáfora do vício mais fundo da colonização. Tinham tentado dar certa autoridade à designação da terra, chamando-a "Estado do Brasil", mas fora em vão: "ficou ele [o estado] tão pouco estável", diz o frade, que, passados cem anos da descoberta e do início do povoamento, "já se hão despovoados alguns lugares, e sendo a terra tão grande e fértil, como ao diante veremos, nem por isso vai em aumento, antes em diminuição".

De quem seria a culpa de ter a colonização desandado? Para uns, era dos reis que, intitulando-se senhores da Guiné, "nem o título quiseram" do Brasil, dandolhe pouca atenção depois que D. João III, esse sim um povoador, desaparecera. Desde então, a Coroa só cuidara de "colher as suas rendas e direitos". Para outros, era dos povoadores, que não conseguiam se fixar de fato na terra e, uma vez ricos, só pensavam em levar tudo para Portugal, pondo os interesses privados na frente dos públicos: "nenhum homem nesta terra é repúblico, nem zela ou trata do bem comum, senão cada um do particular".

A ausência de sentido comum impedia que a terra fosse uma república, "sendoo cada casa", conforme observara um prelado espanhol de passagem na terra10. Frei Vicente reconhece todas essas razões, mas acredita que a elas "se pode ajuntar a [...] de lhe haverem chamado estado do Brasil, tirando-lhe o de Santa Cruz, com que pudera ser estado e ter estabilidade e firmeza" (Salvador s/d: 16-17).

Esses exemplos – Ambrósio Fernandes Brandão e Frei Vicente do Salvador – mostram que conteúdos mais secularizados começavam a se manifestar sob a superfície das formas de cunho místico, mas ainda não conseguiam prescindir delas. Ao fim e ao cabo, persistiam limites à secularização do pensamento, podendo parecer contraditório e intrigante que religiosos como Nóbrega, Cardim ou Frei Vicente se incomodassem menos com a perda da nomenclatura mística em favor da comercial do que letrados como João de Barros ou Gandavo. Talvez a chave do aparente enigma esteja na natureza ambivalente do humanismo cívico português.

O humanismo cívico que nascera em Florença e tivera sólida formulação teórica nas gerações subsequentes impunha "o primado do direito e da justiça na governação, e preconizava a submissão dos interesses privados ao interesse coletivo". Na Itália, houvera coincidência entre essa doutrina e "os interesses da estrutura social e da ideologia política das respectivas comunidades". Em Portugal, porém, o humanismo cívico se combinou com a defesa da monarquia e de suas políticas, e o tema nodal desse discurso foi o embate entre vida ativa – "vida de ação, posta ao serviço da comunidade" – e vida contemplativa – "vida intelectual". Se num primeiro momento as "preocupações mais estéticas e as idéias literárias da romanização" dominaram o humanismo português, aos poucos elas foram eclipsadas pelos motivos ligados à expansão, despertando localmente um interesse que por toda a Europa – e sobretudo entre italianos – já se encontrava disseminado (Rebelo 1998: 124-126)11.

Há sem dúvida ecos do humanismo português na idéia de república expressa por Frei Vicente no trecho citado, e tal como a concebera Martinho de Figueiredo no Comentum super prologum naturalis historiae Plinii: em termos mais amplos, capaz de abarcar não só os territórios diretamente controlados pelo rei como todos os demais, integrantes da totalidade "onde se exerce a autoridade da civitas". Sousa Rebelo viu que essa nova conceituação mostrava "uma adaptação às realidades trazidas pela Expansão, na qual se inclui", no tempo de Martinho de Figueiredo, "a criação do estado da Índia" (Rebelo 1998: 127). Quase um século depois, Frei Vicente via-se às voltas com um problema concreto: a criação do Estado do Brasil, inspirada nos antecedentes asiáticos, não propiciara o surgimento de um espírito cívico, onde a comunidade se sobrepusesse aos interesses individuais. Por isso nenhum homem na terra era "repúblico", nem zelava do bem comum, "senão cada um do particular".

Já os ecos do humanismo cívico presentes na formulação de João de Barros são de outra natureza. Por um lado, num contexto político em que o Turco avançava sobre a Europa, esses ecos vinculam-se ao espírito de cruzada que impregnou vários dos humanistas portugueses, opondo-se ao pacifismo e à busca de soluções por meio da concórdia religiosa. "Qual príncipe converteu à Fé de Cristo tantas províncias, tanta multidão de almas, cuja bem-aventurança não pode deixar de ser comunicada com a causa dela?.... Vossa Alteza, além de a seus naturais manter em muita paz e justiça, manda continuamente por mar e por terra seus exércitos e grossas armadas contra os infiéis, buscando sempre novos triunfos e vencimento", diria João de Barros nos Panegíricos (Dias 1969: 827).

Por outro lado, a passagem de João de Barros sobre o Santo Lenho e o paubrasil relaciona-se ao profetismo e ao providencialismo comuns às crônicas portuguesas dos descobrimentos. Nesta seara, o De Nobilitate Civile et Christiana (1542), de D. Jerônimo Osório, fora um marco, sustentando "que todos os feitos dos portugueses, desde a criação e a fundação do reino, só se poderiam entender com a ajuda de Cristo" (Dias 1969: 132). Ora, o trecho das Décadas sobre a nomenclatura mística e a comercial do Brasil sugere uma guinada no que diz respeito tanto ao providencialismo quanto ao espírito de Cruzada contra o infiel: invocamse as ações salvacionistas portuguesas, mas o tom não é de triunfo, e sim de derrota, pois o Diabo leva a melhor sobre Cristo. Como a colonização portuguesa da América ainda engatinhava, referida apenas a iniciativas particulares, o tom derrotista talvez reflita antes os insucessos da Índia e uma crise no oriente do Império. Mais: o confronto entre o soldado cristão e o mercador parece encobrir a tensão sempre dolorosa, na época, entre vida ativa e vida contemplativa, e que, durante o governo de D. João III, corporificou-se na oposição que, juntas, a nova nobreza e a classe mercantil fizeram à aliança entre a monarquia e os letrados burocratas, como João de Barros12.

Conforme o século XVI chegava ao fim, essa aliança se esgarçava, e o messianismo "já com laivos sebastianistas" se imiscuía na produção letrada (Rebelo 1998: 132). Sob a ação cada vez mais enérgica do Santo Ofício, terminava o tempo áureo de uma política cultural promotora das letras e das artes, e alguns dos principais expoentes do efêmero Colégio das Artes, expressão maior da aliança entre os letrados e a monarquia deixaram Portugal assim que puderam, como os Buchanan e Damião de Góis (Dias 1969: 998-999)13.

Nesse novo contexto, o embate entre o Santo Lenho e o pau-brasil perderia muito do sentido original, inteligível apenas no contexto do humanismo português e dos conflitos entre letrados burocratas e mercadores. Dele se conservou o aspecto mais aparente, de cruzada do Mal contra o Bem. Em Gandavo, é um topos já meio esvaziado; em Frei Vicente, é um invólucro que recobre o esforço reinterpretador do sentido da colonização portuguesa na América, onde se procurava dar a César o que era de César, e a Cristo o que era de Cristo.

4. Persistências extempornêas

O Bem e o Mal, Deus e o Diabo continuariam a envolver o nome do Brasil em épocas posteriores, mostrando que, sob a diversidade dos contextos, persistiam profundos traços mentais. Andemos no tempo para melhor entender o fenômeno. Em 1728, cem anos depois de Frei Vicente escrever sua História do Brasil, Nuno Marques Pereira daria a público o Compêndio Narrativo do Peregrino da América14. A passagem referente aos primórdios do Brasil faz parte de um capítulo dedicado aos "louvores da Santa Cruz", dentre os quais se destacam os de caráter político e cruzadístico, ou seja, a eficácia da invocação do Lenho em situações de guerra e batalha:

"E assim não houve imperador nem rei cristão que não usasse da Santa Cruz para conseguir as suas maiores empresas", incluindo-se nessas "dívidas e mercês [...] os nossos reis de Portugal e seus vassalos a nosso Senhor Jesus Cristo", inúmeras vezes socorridos pelo sinal da Cruz, "com cujo patrocínio venceram e desbarataram a seus inimigos, aprovando e exaltando a nossa Santa Fé" (Pereira 1939: 89).

A Afonso de Albuquerque, a cruz aparecera no mar da Pérsia e lhe garantira sucessos. A conquista da Etiópia também se devera à cruz, e, dando seqüência à construção desse império de Deus por Portugal, algo análogo ocorrera no Brasil:

"Não foi menos venerada a Santa Cruz nesta Província do Brasil, quando pelo capitão Pedro Álvares Cabral foi descoberto este Estado no ano de 1500. E assim, acompanhado de muitos portugueses, saltaram em terra [...] aos 3 dias do mês de maio, como afirmam alguns: e logo, arvorando o estandarte da sagrada cruz em demonstração de grande alegria, se celebrou a missa, e houve pregação, não faltando salvas de artilharia da Armada; e puseram por nome, a terra tão formosa, Província de Santa Cruz: título que depois converteu a cobiça, e os interesses do mundo, em Província do Brasil, como vulgarmente hoje se chama".

Na pena do moralista Nuno Marques Pereira, invocava-se o tom providencialista e messiânico que o fim do humanismo fizera aflorar em Portugal, e que o padre Antonio Vieira, morto trinta anos antes, celebrizara em seus escritos. A cruz e a espada estavam juntas de novo na gênese do Brasil, aliás América, e a perda do primeiro nome, o sagrado, se devera, como no topos fundado por João de Barros, ao comércio. Por isso, o Peregrino tem inegável caráter residual.

Dois anos depois, em 1730, Sebastião da Rocha Pitta publicaria uma História da América Portuguesa. A mudança no título não é gratuita, e a obra, obviamente engajada, pertencia ao contexto de exaltação dos feitos portugueses na América, bem típica do difícil período atravessado pela monarquia joanina, carente de afirmação na Europa e acuada após vinte anos de ininterruptos levantes e sedições no Brasil15. Portugal e Brasil formavam um só corpo, e intelectuais contemporâneos a Pitta, ou uma geração mais jovens do que ele – Antonio Rodrigues da Costa, Alexandre de Gusmão, Dom Luís da Cunha – falariam, pela primeira vez após a morte de Vieira, da provável mudança da Corte para a América. É curioso que, em contexto tão novo, retorne, mesmo se um tanto elíptica, a formulação tradicional, já então, como se viu, transformada em topos e bem afastada do significado primeiro.

Após uma travessia perigosa, narra Rocha Pitta, Cabral aportou na nova terra, chamando-a Santa Cruz. Arvorou o estandarte da fé, disparou as peças de artilharia e fez rezar missa sobre um altar "que levantou entre aquele inculto arvoredo, que lhe serviu de dossel e de templo", assistido por bárbaros admirados "mas reverentes", prontos a abraçar – como depois o fizeram – a fé católica. "Este foi o primeiro descobrimento, este o primeiro nome desta região, que depois, esquecida de título tão superior, se chamou América, por Américo Vespúcio, e ultimamente Brasil pelo pau vermelho, ou cor de brasas, que produz" (Pitta 1880: 3).

Nas várias licenças – da Academia Real, do Santo Ofício, do Conselho de Sua Majestade – que antecedem o texto de Pitta, somam-se os elogios à iniciativa de escrever uma história da terra, a primeira de que se tinha notícia desde a de Gandavo, já que a História de Frei Vicente só se descobrirá no século XIX. "Tem o Brasil a ventura de achar na eloquência de um filho o melhor instrumento da sua glória e o maior manifesto do seu luzimento", dizia Frei Boaventura de São Gião, Qualificador do Santo Ofício. "[A]tendendo ao que este autor escreveu, entendo que justamente se lhe deve dar o título do novo Colombo, porque com o seu trabalho e com o seu estudo nos soube descobrir outro mundo novo no mesmo mundo descoberto", reivindicava Dom José Barbosa, cronista da Casa de Bragança e Examinador das Três Ordens Militares. Pitta permitia que se soubesse "com distinção" o que antes estava "em confuso", continuava Dom Barbosa. Até então, muitas histórias particulares haviam contado desgraças, sobretudo nas narrativas acerca da guerra pernambucana contra os holandeses; chegara a vez de "darem notícias das nossas vitórias". Martinho de Mendonça de Pina e Proença, célebre ilustrado português e membro da Academia Real de História, ponderava que o tom poderia ter sido mais encomiástico ainda: "Algum reparo se poderá fazer na miudeza com que em história tão sucinta relata alguns sucessos mais dignos de horror e silêncio do que de memória". Por outro lado, reconhecia que "não fazer deles menção seria diminuir a glória dos leais encobrindo a infâmia dos traidores contra as severas leis da História. Nihil veri non audet"(Pitta 1880: XXIII/segs).

As oscilações de juízo refletem as incertezas da época, quando o Império periclitava após trinta anos de levantes e a memória ainda ardia com a lembrança da guerra emboaba em Minas Gerais (1707-1709), da guerra dos mascates em Pernambuco (1709-1711), das invasões francesas do Rio de Janeiro (1710-1711), das revoltas do Maneta em Salvador (1711), dos revoltosos enforcados quando da Revolta do Terço Novo na mesma cidade da Bahia (1728). Antonio Rodrigues da Costa, o enigmático Conselheiro que presidiu o Conselho Ultramarino por mais de vinte anos, fazia um comentário seco e curto: "e ainda que me parece mais elogio, ou panegírico, que história, não entendo que desmerece o autor que Vossas Excelências lhe concedam a faculdade que pede" (Pitta 1880: XIX). O livro imprimiu-se, e o tempo mostrou a justeza do julgamento de Rodrigues da Costa.

O panegírico de Rocha Pitta se refere indistintamente à América Portuguesa e ao Brasil. Se havia na nova nomenclatura um conteúdo programático, que reforçava tanto a sujeição irrestrita da terra à sua Metrópole quanto a dimensão continental do império português, a indefinição continuava presente. Aliás, no limite, era o nome de Brasil que continuava se impondo, neutralizando a tentativa de identificar a região ao continente.

Mas voltemos ao ponto de partida. A possibilidade dos vários nomes e dos múltiplos sentidos está diretamente ligada à questão da indefinição que marcou o nascimento do Brasil. Tal indefinição, por sua vez, não pode ser compreendida fora do contexto em que se montou o império português, de início muito mais voltado para a África e a Ásia do que para o Brasil. Durante os primeiros 50 anos do século XVI, o Atlântico português não foi o Atlântico Sul dos séculos posteriores, onde o Brasil e a África formaram um sistema que teve papel fundamental na redefinição do império (Boxer 1950; Alencastro 2000), mas o Atlântico da costa ocidental africana e o da rota para as Índias. A nomenclatura flutuava pois sobre um espaço que era vago e não despertava grande interesse. Não há, além da notável carta de Pero Vaz de Caminha, escritos portugueses sobre as terras brasileiras antes das cartas jesuíticas do meado do século. Se os portugueses chegaram à Índia descrevendo homens, bichos e plantas, e se Zurara já fizera uma crônica da África no século XV, nada se fala sobre a natureza e os homens da terra tocada por Cabral nesses primeiros cinqüenta anos que, por tudo isso, afiguram um grande vazio.

Mas a flutuação do nome do Brasil tem outros significados. Barros, Gandavo, Nuno Marques Pereira expressam, na longa duração, a persistência de um universo mental marcado pelo embate entre Deus e o Diabo, que podia assumir formas sofisticadas e eruditas – como no humanismo de João de Barros – mas que, uma vez variando os contextos, reduziam-se quase a caricaturas, conforme se vê na passagem do Peregrino. Nem sempre eram religiosos os que mais lastimavam a perda da designação mística, mesmo porque para eles restava a esperança da catequese enquanto meio de salvação para os naturais da terra, conforme fica evidente no trecho de Frei Vicente do Salvador. Por outro lado, até para os mais afeitos a uma nascente mentalidade mercantil – como Brandônio –, era tal o poder do topos mítico que não havia como ignorá-lo.

O historiador lança mão de hipóteses e busca a compreensão, sempre baseandose em evidências empíricas, como se pensa ter feito aqui. No caso específico do nome do Brasil, é preciso ir além do significado aparente, já que a repetição do topos oculta deslizamentos e até alterações semânticas. Parece bastante óbvio que a oscilação entre o nome mítico e o comercial condicionou certas interpretações negativas sobre o país: terra de degredados, fadada ao fracasso, por motivos vários corrompida desde o início, quando um nome profano, mundano e de inequívocas implicações ínferas solapou o nome santo que lembrava a remissão dos pecados humanos e que se procurara celebrar não apenas com a cruz de pedra (ou madeira) erguida na praia como com a cruz de estrelas localizada no céu. Por tudo isso, o que aconteceu com a nomenclatura é bem mais do que a aplicação continuada de uma pura metáfora. Outras colônias adquiririam colorações negativas e até mesmo malditas, não fossem elas, de saída, designadas como local de degredo para criminosos e hereges, que assim purgavam seus pecados em infernos provisórios – como o é, de resto o próprio Purgatório dos católicos16. Fato ímpar entre terras coloniais, o Brasil seria a única, contudo, a trazer essa relação tensa inscrita no próprio nome, que lembraria para sempre as chamas vermelhas do inferno.

Referências Bibliográficas

Revista de História - USP

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