Nikelen Acosta Witter
Doutora em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Curso de História do Centro universitário Franciscano (UNIFRA-RS).
Quando se fala em lepra, o que vem geralmente à memória da maioria pessoas são as referencias bíblicas ou aquelas que remetem à Idade Média. Essa memória se esboça pela figura de uma pessoa coberta de andrajos da cabeça aos pés, trazendo nas mãos um longo e fino pedaço de madeira no qual escora seu caminhar já castigado pela deformação. Na ponta deste cajado, amarrados, uma cabaça para beber sua água sem contaminar a dos outros, símbolo de seu perdido contato com seus semelhantes, e um sino, que servia para avisar de sua aproximação, do perigo que carregava, e também marcava, em alto som, seu isolamento. A história narra que o leproso era visto como um morto em vida, e que cabia à sua família resignar-se com sua “perda” e ao doente esquecer que tinha uma família, pois a doença, marca do pecado e da impureza, lhe tirava, doravante, a possibilidade de qualquer toque, carinho ou contato.
Esta memória fala de um tempo com o qual os homens e mulheres urbanos do século XXI pouco se identificam e cuja narração, nas cidades modernas, causa indignação e escândalo. Para boa parte do mundo ocidental, medicalizado, burguês, capitalista, a lepra e sua memória são dados de um passado longínquo, acessível apenas por livros ou documentários de TV a cabo.
O excelente artigo de Keila Auxiliadora Carvalho não apenas resgata a memória dos pacientes de lepra, isolados compulsoriamente durante cinco décadas do século XX (1920-1960), mas também a memória da sociedade que os segregou. A autora, que está realizando sua pesquisa de doutorado, faz, neste artigo, uma aproximação inicial com os relatos orais dos ex-internos do Asilo-Colônia Santa Izabel, situado em Betim, Minas Gerais. Sua análise, embora esteja no começo, como ela ressalta, já é suficiente, no entanto, para colocar em evidência uma doença que, longe de estar restrita à lembrança de tempos passados, está bem viva, ainda hoje, nas regiões mais miseráveis do Brasil e do resto do Terceiro Mundo.
Neste sentido, pesquisas como a de Keila Carvalho2 não têm somente a função de historiar uma experiência de exclusão e preconceito no mundo contemporâneo, mas a função social de reconstruir a memória coletiva acerca da lepra. Não se trata apenas de dar voz aos pacientes, mas também de colocar a sociedade em que vivemos diante de mazelas que não se circunscrevem ao passado distante ou recente, mas à atualidade da vida em um planeta com 20 milhões de pessoas infectadas com a hanseníase. Esse número, muito longe de estar estanque como desejava a Organização Mundial de Saúde (que projetava o ano de 2005 como aquele que marcaria o fim das infecções pelo bacilo M. leprae) continua crescendo em locais onde o “bem-estar social” do mundo capitalista não chegou (nem parece pretender chegar): a África, a Índia e partes significativas da América Latina.
O fato é que, para além da memória, a lepra é uma realidade social dolorosa, pungente e, ainda, marcada pelo preconceito e pela segregação dos infectados. Assim como o tratamento da doença não chegou a muitos dos lugares citados acima, as informações a seu respeito também permanecem distantes e o medo – sempre ele – vencendo qualquer sentido de solidariedade humana. O fato é que o termo leproso, como signo de apartamento social, mantém sua existência acima dos avanços das medicinas, das parcas ações governamentais e da nula melhoria das condições de vida de milhares de seres humanos.
Não é à toa que, mais do que memórias da doença, os ex-internos de Santa Izabel têm são memórias amargas do mundo que os excluiu. Neste sentido, penso que o trabalho de Carvalho poderia valer-se bastante, em sua análise, se incluísse a diferenciação que a antropologia médica americana cunhou para conceituar os estudos sobre doença e que boa parte da historiografia anglo-saxônica sobre o assunto assumiu. Trata-se da diferenciação entre desease – definida como a doença etiologicamente determinada –, sick – que define o estar doente, aquele que é acometido por determinada patogênese – e illness – a experiência da doença, o ser doente, os sofrimentos e mal-estares causados pela moléstia aos sujeitos estudados.3
Essa diferenciação me parece instrumentalmente interessante para analisar os relatos dos ex-internos de Santa Izabel. Isso especialmente porque, ao menos nas narrações que a autora reproduz no artigo, os pacientes não parecem dar grande espaço à memória do incômodo físico da moléstia. De fato, este parece ser um problema maior fora da colônia do que dentro dela. Ao leitor, fica a impressão de que, dentro do asilo-colônia – quando a rejeição ao toque de médicos, enfermeiros e freiras não era evidente, quando as visitas não separavam os sadios dos enfermos – a vida podia ser vivida “quase” como se fosse normal. Um “quase” de imenso tamanho, marcado por medicações, curativos, horários restritivos, mas um “quase” que fazia com que a vida na colônia fosse muito menos sofrida que a vida fora dela. Não se pode negar aqui certa institucionalização do paciente, o qual passa a ver nas rotinas hospitalares e nas relações aí construídas uma segurança que ele não seria capaz de alcançar ou sentir no mundo externo. Trata-se de um caminho bastante comum entre pacientes de doenças dadas, no passado, como incuráveis e cujo principal tratamento prescrito era o isolamento (o caso congênere da tuberculose, por exemplo). O doente tornava-se dependente do tipo de tratamento que recebia ou buscava, e construía sua vida e sua identidade em função deste.4
Sendo assim, creio que o trabalho da autora ganharia em profundidade se, conceitualmente, as experiências da doença fossem separadas: ser leproso diferenciado de viver com lepra, ser hanseniano distinguido de viver com hanseníase. Pergunto-me como essas experiências assumem conotações diferentes intra e extramuros do asilo-colônia? De fato, parece-me que os relatos apontam para isso: uma percepção diferenciada do viver com a doença e dos mal-estares por ela provocados. Uma diferenciação que, sem dúvida, aponta para o “lugar” como bem analisa a autora ao tratar do “lugar da memória” e do “lugar que o paciente sente como seu". Contudo, creio que seria possível afirmar que o “lugar” é também responsável pelo conteúdo e a forma da experiência com a doença em si. Há uma diferença entre ser leproso numa colônia de leprosos e fora dela. Por outro lado, é importante observar, como bem ressalta a autora, que a modificação da função do Asilo-colônia – agora um centro de referência para doenças de pele – tem sido responsável pelo aumento da auto-estima destes pacientes e por alterar a memória que estes construíram a respeito do asilo e de sua vida nele.
Concordo com a autora quando ela diz que não se pode usar esse tipo de interpretação para ver a política de isolamento com olhar benevolente. Afinal, ele somente se afigura benéfico, na memória, por estar em oposição ao mundo hostil extramuros. Contudo, cabe ao leitor igualmente não avaliar a experiência do sequestro dos doentes de modo anacrônico, imaginando que os homens de ciência e política do início do século XX poderiam ter uma visão diferenciada desta que impulsionou o isolamento compulsório. Existiam teorias não contagionistas acerca da lepra? Sim, é claro, e este foi um dos grandes debates da medicina da virada do século XIX para o XX.5 Mas estas interpretações foram minoritárias e, nos debates científicos que se estenderam após o isolamento do bacilo em 1873, foram derrotadas.6 De fato, o isolamento compulsório foi visto como a mais segura das medidas de profilaxia social, e a criação dos hospitais-colônia (estas minicidades onde se invertia a realidade externa: a doença era a regra e a saúde a exceção) vista como a mais humanitária das medidas para com os pacientes.
Assim, fugindo de qualquer julgamento, ficaram, após a leitura, algumas questões que vão além da oposição entre o mal-estar em sociedade e (não o “bem-estar”, mas) o acomodar-se à vida de interno da colônia. Estas questões perpassam, para mim, diretamente a experiência da doença. Como os pacientes figuravam o tratamento? Paliativo? Percebiam melhoras? O que era viver sob o signo do “incurável”? Como a descoberta da cura alterou a forma dos pacientes construírem sua identidade? As narrativas, muitas vezes, procuram destacar os momentos de alteração e rompimento de determinadas percepções da realidade. Acho que essas alterações podem fornecer dados cruciais à pesquisa, pois é nestes momentos-chave que se percebe o que muda na autopercepção do doente, mas também o que permanece, os elementos aos quais ele se apega, dos quais ele não abre mão, pois já se incluíram em sua identidade.
Outros dois pontos me parecem extremamente interessantes de serem explorados: o primeiro é a questão dos contatos físicos e dos relacionamentos dentro da colônia, entre os internos. Apesar da forte fiscalização – a que a autora refere – acredito que houvesse burlas às regras e me parece fundamental comparar estes contatos com os que foram negados aos doentes no mundo exterior. Isso contribuiria para a colônia ser ainda mais fortemente percebida – como sugere Carvalho – como “o lugar ao qual os doentes se sentiam pertencer”?
O outro ponto que, a meu ver, mereceria a atenção da autora, é a questão dos medicamentos. Se compararmos os tratamentos do início do século XX com os que eram realizados no combate à lepra no século XIX, perceberemos uma enorme diferença.7 Contudo, quando abstraímos as esferas “científicas” e entramos no domínio das terapias populares encontramos um universo de tratamentos com os quais a população travava a sua luta contra os males físicos e dava a eles as suas interpretações. Fico pensando se a memória e a narrativa do abandono – tão cruciais na formação das identidades destes pacientes – não encobrem, de certa forma, os caminhos trilhados antes do diagnóstico fatídico e, por vezes, depois dele. Em comparação com o século XIX, será possível afirmar que as modificações, tanto na medicina quanto na indústria farmacêutica no início do século XX, alteraram substancialmente toda a forma de luta contra as doenças por parte daqueles que as sofriam, de seus amigos, parentes e relativos? O Brasil dos anos 1920, 1930, 1960, ou mesmo hoje, não era (nem é) um país sem percepções alternativas das moléstias em relação àquelas médico-científicas. Será que os pacientes da colônia Santa Izabel nada tentaram para ficar junto aos seus antes de serem sequestrados pelos poderes públicos?
São estas as questões que me sugeriram a leitura de um texto cientificamente instigante, deliciosamente escrito e humanamente tocante.
Notas
Revista AEDOS - UFRGS
Doutora em História Contemporânea pela Universidade Federal Fluminense. Professora do Curso de História do Centro universitário Franciscano (UNIFRA-RS).
Quando se fala em lepra, o que vem geralmente à memória da maioria pessoas são as referencias bíblicas ou aquelas que remetem à Idade Média. Essa memória se esboça pela figura de uma pessoa coberta de andrajos da cabeça aos pés, trazendo nas mãos um longo e fino pedaço de madeira no qual escora seu caminhar já castigado pela deformação. Na ponta deste cajado, amarrados, uma cabaça para beber sua água sem contaminar a dos outros, símbolo de seu perdido contato com seus semelhantes, e um sino, que servia para avisar de sua aproximação, do perigo que carregava, e também marcava, em alto som, seu isolamento. A história narra que o leproso era visto como um morto em vida, e que cabia à sua família resignar-se com sua “perda” e ao doente esquecer que tinha uma família, pois a doença, marca do pecado e da impureza, lhe tirava, doravante, a possibilidade de qualquer toque, carinho ou contato.
Esta memória fala de um tempo com o qual os homens e mulheres urbanos do século XXI pouco se identificam e cuja narração, nas cidades modernas, causa indignação e escândalo. Para boa parte do mundo ocidental, medicalizado, burguês, capitalista, a lepra e sua memória são dados de um passado longínquo, acessível apenas por livros ou documentários de TV a cabo.
O excelente artigo de Keila Auxiliadora Carvalho não apenas resgata a memória dos pacientes de lepra, isolados compulsoriamente durante cinco décadas do século XX (1920-1960), mas também a memória da sociedade que os segregou. A autora, que está realizando sua pesquisa de doutorado, faz, neste artigo, uma aproximação inicial com os relatos orais dos ex-internos do Asilo-Colônia Santa Izabel, situado em Betim, Minas Gerais. Sua análise, embora esteja no começo, como ela ressalta, já é suficiente, no entanto, para colocar em evidência uma doença que, longe de estar restrita à lembrança de tempos passados, está bem viva, ainda hoje, nas regiões mais miseráveis do Brasil e do resto do Terceiro Mundo.
Neste sentido, pesquisas como a de Keila Carvalho2 não têm somente a função de historiar uma experiência de exclusão e preconceito no mundo contemporâneo, mas a função social de reconstruir a memória coletiva acerca da lepra. Não se trata apenas de dar voz aos pacientes, mas também de colocar a sociedade em que vivemos diante de mazelas que não se circunscrevem ao passado distante ou recente, mas à atualidade da vida em um planeta com 20 milhões de pessoas infectadas com a hanseníase. Esse número, muito longe de estar estanque como desejava a Organização Mundial de Saúde (que projetava o ano de 2005 como aquele que marcaria o fim das infecções pelo bacilo M. leprae) continua crescendo em locais onde o “bem-estar social” do mundo capitalista não chegou (nem parece pretender chegar): a África, a Índia e partes significativas da América Latina.
O fato é que, para além da memória, a lepra é uma realidade social dolorosa, pungente e, ainda, marcada pelo preconceito e pela segregação dos infectados. Assim como o tratamento da doença não chegou a muitos dos lugares citados acima, as informações a seu respeito também permanecem distantes e o medo – sempre ele – vencendo qualquer sentido de solidariedade humana. O fato é que o termo leproso, como signo de apartamento social, mantém sua existência acima dos avanços das medicinas, das parcas ações governamentais e da nula melhoria das condições de vida de milhares de seres humanos.
Não é à toa que, mais do que memórias da doença, os ex-internos de Santa Izabel têm são memórias amargas do mundo que os excluiu. Neste sentido, penso que o trabalho de Carvalho poderia valer-se bastante, em sua análise, se incluísse a diferenciação que a antropologia médica americana cunhou para conceituar os estudos sobre doença e que boa parte da historiografia anglo-saxônica sobre o assunto assumiu. Trata-se da diferenciação entre desease – definida como a doença etiologicamente determinada –, sick – que define o estar doente, aquele que é acometido por determinada patogênese – e illness – a experiência da doença, o ser doente, os sofrimentos e mal-estares causados pela moléstia aos sujeitos estudados.3
Essa diferenciação me parece instrumentalmente interessante para analisar os relatos dos ex-internos de Santa Izabel. Isso especialmente porque, ao menos nas narrações que a autora reproduz no artigo, os pacientes não parecem dar grande espaço à memória do incômodo físico da moléstia. De fato, este parece ser um problema maior fora da colônia do que dentro dela. Ao leitor, fica a impressão de que, dentro do asilo-colônia – quando a rejeição ao toque de médicos, enfermeiros e freiras não era evidente, quando as visitas não separavam os sadios dos enfermos – a vida podia ser vivida “quase” como se fosse normal. Um “quase” de imenso tamanho, marcado por medicações, curativos, horários restritivos, mas um “quase” que fazia com que a vida na colônia fosse muito menos sofrida que a vida fora dela. Não se pode negar aqui certa institucionalização do paciente, o qual passa a ver nas rotinas hospitalares e nas relações aí construídas uma segurança que ele não seria capaz de alcançar ou sentir no mundo externo. Trata-se de um caminho bastante comum entre pacientes de doenças dadas, no passado, como incuráveis e cujo principal tratamento prescrito era o isolamento (o caso congênere da tuberculose, por exemplo). O doente tornava-se dependente do tipo de tratamento que recebia ou buscava, e construía sua vida e sua identidade em função deste.4
Sendo assim, creio que o trabalho da autora ganharia em profundidade se, conceitualmente, as experiências da doença fossem separadas: ser leproso diferenciado de viver com lepra, ser hanseniano distinguido de viver com hanseníase. Pergunto-me como essas experiências assumem conotações diferentes intra e extramuros do asilo-colônia? De fato, parece-me que os relatos apontam para isso: uma percepção diferenciada do viver com a doença e dos mal-estares por ela provocados. Uma diferenciação que, sem dúvida, aponta para o “lugar” como bem analisa a autora ao tratar do “lugar da memória” e do “lugar que o paciente sente como seu". Contudo, creio que seria possível afirmar que o “lugar” é também responsável pelo conteúdo e a forma da experiência com a doença em si. Há uma diferença entre ser leproso numa colônia de leprosos e fora dela. Por outro lado, é importante observar, como bem ressalta a autora, que a modificação da função do Asilo-colônia – agora um centro de referência para doenças de pele – tem sido responsável pelo aumento da auto-estima destes pacientes e por alterar a memória que estes construíram a respeito do asilo e de sua vida nele.
Concordo com a autora quando ela diz que não se pode usar esse tipo de interpretação para ver a política de isolamento com olhar benevolente. Afinal, ele somente se afigura benéfico, na memória, por estar em oposição ao mundo hostil extramuros. Contudo, cabe ao leitor igualmente não avaliar a experiência do sequestro dos doentes de modo anacrônico, imaginando que os homens de ciência e política do início do século XX poderiam ter uma visão diferenciada desta que impulsionou o isolamento compulsório. Existiam teorias não contagionistas acerca da lepra? Sim, é claro, e este foi um dos grandes debates da medicina da virada do século XIX para o XX.5 Mas estas interpretações foram minoritárias e, nos debates científicos que se estenderam após o isolamento do bacilo em 1873, foram derrotadas.6 De fato, o isolamento compulsório foi visto como a mais segura das medidas de profilaxia social, e a criação dos hospitais-colônia (estas minicidades onde se invertia a realidade externa: a doença era a regra e a saúde a exceção) vista como a mais humanitária das medidas para com os pacientes.
Assim, fugindo de qualquer julgamento, ficaram, após a leitura, algumas questões que vão além da oposição entre o mal-estar em sociedade e (não o “bem-estar”, mas) o acomodar-se à vida de interno da colônia. Estas questões perpassam, para mim, diretamente a experiência da doença. Como os pacientes figuravam o tratamento? Paliativo? Percebiam melhoras? O que era viver sob o signo do “incurável”? Como a descoberta da cura alterou a forma dos pacientes construírem sua identidade? As narrativas, muitas vezes, procuram destacar os momentos de alteração e rompimento de determinadas percepções da realidade. Acho que essas alterações podem fornecer dados cruciais à pesquisa, pois é nestes momentos-chave que se percebe o que muda na autopercepção do doente, mas também o que permanece, os elementos aos quais ele se apega, dos quais ele não abre mão, pois já se incluíram em sua identidade.
Outros dois pontos me parecem extremamente interessantes de serem explorados: o primeiro é a questão dos contatos físicos e dos relacionamentos dentro da colônia, entre os internos. Apesar da forte fiscalização – a que a autora refere – acredito que houvesse burlas às regras e me parece fundamental comparar estes contatos com os que foram negados aos doentes no mundo exterior. Isso contribuiria para a colônia ser ainda mais fortemente percebida – como sugere Carvalho – como “o lugar ao qual os doentes se sentiam pertencer”?
O outro ponto que, a meu ver, mereceria a atenção da autora, é a questão dos medicamentos. Se compararmos os tratamentos do início do século XX com os que eram realizados no combate à lepra no século XIX, perceberemos uma enorme diferença.7 Contudo, quando abstraímos as esferas “científicas” e entramos no domínio das terapias populares encontramos um universo de tratamentos com os quais a população travava a sua luta contra os males físicos e dava a eles as suas interpretações. Fico pensando se a memória e a narrativa do abandono – tão cruciais na formação das identidades destes pacientes – não encobrem, de certa forma, os caminhos trilhados antes do diagnóstico fatídico e, por vezes, depois dele. Em comparação com o século XIX, será possível afirmar que as modificações, tanto na medicina quanto na indústria farmacêutica no início do século XX, alteraram substancialmente toda a forma de luta contra as doenças por parte daqueles que as sofriam, de seus amigos, parentes e relativos? O Brasil dos anos 1920, 1930, 1960, ou mesmo hoje, não era (nem é) um país sem percepções alternativas das moléstias em relação àquelas médico-científicas. Será que os pacientes da colônia Santa Izabel nada tentaram para ficar junto aos seus antes de serem sequestrados pelos poderes públicos?
São estas as questões que me sugeriram a leitura de um texto cientificamente instigante, deliciosamente escrito e humanamente tocante.
Notas
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