photos from Chavez Ravine: 1949: A Los Angeles Story
Chávez Ravine: uma história americana
Durante a década de 1950, a comunidade mexicana em Los Angeles resistiu à polícia e ao preconceito. Mas acabou expulsa da terra que ocupara durante mais de um século
por Yuri Vasconcelos
A manhã quente e poeirenta de 8 de maio de 1959 marcou a vida de Manuel Arechiga e sua família. Naquele dia, eles foram arrastados de suas casas por policiais e expulsos do local onde viveram por mais de 30 anos. Aos berros, agarrando-se em móveis e tudo o mais que encontrasse pela frente, Abrana, a matriarca, exigia que a deixassem ficar. Aurora, a filha mais velha, foi presa. A brutal cena foi registrada por fotógrafos e emissoras de televisão que cobriam a expulsão da última família de Chávez Ravine, uma comunidade pobre da periferia de Los Angeles, na Califórnia. Menos de uma hora depois, tratores colocavam abaixo o lar dos Arechiga.
Os fatos ocorridos em Chávez Ravine são a síntese de uma história marcada por injustiça, intolerância e especulação imobiliária. Para entender por que os Arechiga e tantos outros foram privados de seu lar, é preciso recuar no tempo. Uma década antes da expulsão, 300 famílias viviam em Chávez Ravine. Lá, imigrantes mexicanos se misturavam a descendentes das pessoas que ocuparam a região desde quando ela ainda nem ficava nos Estados Unidos.
A comunidade ficava encravada num vale ao norte de Los Angeles, cercada por um extenso bosque chamado Parque Elysian. No passado, Chávez Ravine já havia abrigado uma aldeia de índios, uma fazenda de gado e um cemitério judeu. Seu nome homenageava Julian Chavez, um dos primeiros líderes da região, que comprara aquelas terras em 1840 – quando a Califórnia ainda era do México. Em cem anos, os três pequenos povoados (La Loma, Palo Verde e Bishop) que compunham o bairro de 1,3 quilômetro quadrado criaram um estilo de vida auto-suficiente. Plantavam, criavam animais e educavam as crianças numa escola local, isolados da metrópole que se agigantava. Era uma xangrilá dos despossuídos.
O destino de Chávez Ravine começou a mudar em 24 de julho de 1950, quando lá chegou um ofício emitido pela Autoridade de Habitação de Los Angeles. Em 26 linhas, ele informava que o local havia sido escolhido para um projeto de reurbanização e que todos deveriam abandonar suas casas. Elas dariam espaço para 24 edifícios de 13 andares e 163 residências de dois pavimentos, que formariam um empreendimento batizado de Colinas do Parque Elysian. Os cerca de 1100 moradores do local, prometia a carta, teriam prioridade na ocupação das novas moradias. A notícia caiu como uma bomba na comunidade, que não havia sido consultada sobre qualquer insatisfação com o lugar onde morava.
Alguns recusaram-se a sair, mas muitos, atraídos pelo valor da desapropriação – quase sempre injusto –, deixaram para trás suas casas, seus amigos e suas memórias. Entre eles a família do jovem Albert Elias, nascido em Palo Verde, em 1931. “Certa noite, nós estávamos jantando e meu pai disse: ‘Vendi a casa. Eles me ofereceram 9 600 dólares. Achei que estava bom’”, recorda-se Elias, em depoimento ao fotógrafo Don Normark, autor do livro Chávez Ravine, 1949: A Los Angeles Story (“Chávez Ravine, 1949: Uma história de Los Angeles”, inédito no Brasil). Segundo Normark, que no final da década de 1940 registrou o dia-a-dia da comunidade em centenas de fotos (como as desta reportagem), o projeto tinha boas intenções. “Perto do centro da cidade, com apenas 40% de sua área ocupada, Chávez Ravine parecia oferecer aos planejadores e arquitetos uma oportunidade ideal para melhorar a vida daqueles moradores de baixa renda”, disse. Mas a iniciativa não traria benefício algum para os que lá viviam.
Naqueles tempos de pós-guerra, os Estados Unidos viviam uma histeria anticomunista. Qualquer pessoa suspeita de simpatia com o regime soviético era convocada a se explicar. A chamada “caça às bruxas” destruiu reputações e condenou centenas de inocentes à prisão. E o que isso tem a ver com Chávez Ravine? Simples: os críticos do programa de reurbanização se valeram da paranóia e taxaram seus autores de socialistas, uma vez que o projeto tinha como finalidade distribuir casas aos mais necessitados. Um dos maiores defensores do projeto, Frank Wilkinson, diretor da Autoridade de Habitação de Los Angeles, foi chamado para depor, em agosto de 1952, no Comitê de Atividades Antiamericanas do Senado. Ficou calado e foi acusado de ser um agente comunista. Perdeu o emprego e passou um ano na cadeia.
No ano seguinte, o projeto Colinas do Parque Elysian foi abandonado e a área foi vendida para a prefeitura de Los Angeles. Chávez Ravine foi, aos poucos, se transformado em uma cidade-fantasma. Água e luz foram cortadas, não havia coleta de lixo. A maioria das casas havia sido demolida e outras eram usadas para treinamento do Corpo de Bombeiros. Poucas famílias, como os Arechiga, ainda viviam clandestinamente no local.
É aí que entra o último grande personagem dessa história: Walter O’Malley, dono de um time de beisebol, os Dodgers. Ele queria tirar a equipe de Nova York, onde não conseguira lugar para construir um estádio. Sonhava levá-la para um outro grande mercado, a Califórnia (nos Estados Unidos, os times de beisebol têm donos, que podem levá-los para onde quiserem. Seria como o Flamengo deixar o Rio de Janeiro para se instalar em Fortaleza). No início de 1957, o prefeito de Los Angeles, Norris Poulson, percebeu a grande oportunidade: de um lado, um terreno ocioso, do outro, um empresário querendo construir um estádio que geraria novos negócios. Não teve dúvidas: cedeu a área, praticamente de graça, para O’Malley erguer a arena dos agora Los Angeles Dodgers. “Gastamos milhares de dólares e os Dodgers ficaram com tudo por apenas uma pequena fração do valor. Foi uma tragédia para o povo e uma das coisas mais hipócritas que poderia acontecer à cidade”, disse Frank Wilkinson no documentário Chávez Ravine: A Los Angeles Story, dirigido por Jordan Mechner e musicado por Ry Cooder (veja quadro na pág. 58).
A negociata, no entanto, gerou controvérsia, já que o vale deveria ser destinado a um bem público. O prefeito Poulson foi acusado de ter feito um acordo espúrio com o dono dos Dodgers. Os apoiadores da venda, entre eles o ator Ronald Reagan (que se tornaria, nos anos 1980, presidente dos Estados Unidos), acusavam os oponentes de ser “inimigos do beisebol”. Na época, uma campanha liderada pelo jornal Los Angeles Times difamou os moradores de Chávez Ravine. Com requintes de racismo contra descendentes de mexicanos, a comunidade foi acusada de abrigar plantações de maconha e esconderijos de bandidos. A celeuma só foi resolvida com um plebiscito, em dezembro de 1958. Por uma margem inferior a 2%, a população de Los Angeles deu a vitória aos Dodgers.
Em 1959, a polícia de Los Angeles foi terminar o serviço. E então voltamos à manhã onde começamos este texto. Depois que os policiais o tiraram de sua casa e os tratores demoliram seu lar, Manuel Arechiga ainda acampou, durante cinco dias, sobre os destroços. Em vão. Quatro meses depois, começaram as obras do estádio, que foi inaugurado em 10 de abril de 1962. Com capacidade para 56 mil pessoas, é, até hoje, a “casa dos Dodgers”, como dizem os americanos. Pouca gente, no entanto, conhece a história por trás da construção do estádio, que maculou a tão propalada democracia americana. “A lição fundamental é que líderes civis e burocratas com grandes projetos precisam respeitar a face humana de uma cidade tal qual a encontraram”, afirmou, ao jornal Los Angeles Times, o historiador Ronald Lopez, especialista em estudos sobre comunidades mexicanas nos Estados Unidos.
Atualmente, os antigos moradores de Chávez Ravine formam um grupo chamado Los Desterrados e encontram-se anualmente no Parque Elysian, local que era o playground de sua infância. Com o estádio dos Dodgers ao fundo, fazem piquenique com suas famílias e contam velhas histórias de uma comunidade que vivia em paz e harmonia e acabou sendo destruída pelo crescimento da grande metrópole.
Lado B
Ry Cooder lançouum disco sobre o fimda comunidade
Mais conhecido como produtor da banda Buena Vista Social Club, que redescobriu o trabalho de geniais músicos cubanos, o guitarrista e compositor americano Ry Cooder sabia muito pouco sobre Chávez Ravine quando foi convidado, há quatro anos, pelo fotógrafo Don Normark para fazer a trilha sonora do documentário Chávez Ravine: A Los Angeles Story. Apaixonou-se pelo projeto e convidou personagens e músicos com origem na própria comunidade para participar da produção da trilha. O resultado foi o álbum Chávez Ravine, um libelo político-social com 15 músicas que contam, por meio da rumba, da polca, do jazz, do R&B e de outros ritmos, um pedaço vergonhoso da história americana. No site www.nonesuch.com/Hi_Band/rycooder, você pode ouvir quatro das faixas do disco, inclusive “Poor Man Shangri-la”, que é um verdadeiro retrato cantado da vida no antigo bairro de Chávez Ravine.
Saiba mais
Livro
Chávez Ravine: A Los Angeles Story, Don Normark, Chronicle Books
Revista Aventuras na História
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