Introdução – A questão básica que se coloca (qual ou quem é a mulher da MPB) estabelece a relação entre um nível de realidade simbólica – a música, o canto, a letra – e o sujeito desta mesma realidade simbólica - o ser humano – mas tomado em sua dimensão especial, biológica; o
sujeito-fêmea, agente e criador do símbolo, mas cuja situação é marcada pelo gerar e parir o criador-macho: o Homem.
Neste sentido a mulher da MPB é porção, complemento do criador, sujeito do discurso, mas é também – ou parcialmente – objeto da criação.
O discurso da MPB é pois o relato da relação fundamental entre o criador -sujeito e seu complemento – musa – objetivado no cantar, no discurso musical. Da natureza dialética da relação que se estabelece, decorre que a apreensão de um dos termos – mulher, musa, objeto do canto - implica a apreensão do outro – homem, criador, sujeito do cantar. E mais, não há como entender o discurso – a MPB – senão pela inserção da relação fundamental na realidade, na qual se inscreve, e da qual decorrem os sentidos atribuídos a ambos os termos e que emergem no discurso musical.
Sobre as questões de método e procedimento Trabalhar com as categorias homem/mulher é operar com uma seção da realidade do sujeito histórico (ser humano), pois ambas as categorias
referem-se a uma dada realidade social, histórica e cultural. Homem/mulher, relação fundamental, se cria na história, no agir, nas condições dadas pela história que os homens e mulheres alteram com sua ação.
Neste sentido, o criador na MPB, sujeito, é inscrito numa realidade histórica, cultural, numa dada estrutura de classes, à qual corresponde uma dada divisão de trabalho social e sexual. A mulher da MPB é pois, enquanto categoria, uma objetivação simbólica, cultural, e portanto histórica, que se faz ao longo do processo de transformação social, assim como o homem, de quem é feita complemento. Ambos submetidos às mesmas condições sociais.
A MPB torna-se assim um nível da práxis objetiva, marcada pelas condições concretas em que homens e mulheres existiram e a criaram, com um nível de discurso, no cotidiano de suas vidas, de suas estórias.
Esse discurso – aqui nível privilegiado de análise – reflete, como construção simbólica, os dois planos do processo histórico anteriormente mencionado: aquela história-práxis coletiva-tempo-
realidade e referência a uma dada formação social, e a estória individual, reflexo e referência da outra. Se a primeira permite apreender a natureza essencial da segunda, é esta que se objetiva no relato, no discurso, nas representações, na criação musical.
Portanto, cada música tomada individualmente apresenta-se ao pesquisador como peça única em uma série peculiar a cada autor.
Cada autor projeta em sua obra uma dada percepção do real, onde se reflete a sua posição de classe, sua estória, vivida na história.
Cada música é assim um cantar de tempo (época) no processo social e um canto do autor, de sua estória, ou dos autores (letra e música).
Autores que podem ser homens-mulheres que cantam seu complemento.
A cada situação corresponde uma disposição em relação à mulher - ou ao homem – e sua estória na história. Neste sentido é que se coloca a questão da posição do sujeito? Objeto, criador-criatura em relação à mulher na MPB.
Nesta dupla dimensão do histórico, de uma formação social e da estória individual, situa-se a mulher da MPB, referida, em geral, a um estereótipo de complemento do homem. Ele, por sua vez, também estereotipado. Os tipos femininos da MPB correspondem, pois, perto ou longe, a tipos masculinos que ficam no interdito, implícitos, disfarçados, camuflados no discurso, submetidos ambos às condições concretas e de classe, historicamente referidas na formação social.
Cada “peça” da MPB compõe-se de, pelo menos, duas linguagens simultâneas: letra e música (melodia, ritmo). Se a pesquisa de tipos femininos privilegia a letra (discurso, língua), a referência histórica, as dimensões estória/história encontram-se também, ou até propriamente, na linguagem musical, sobretudo ritmo.
A opção pelo ritmo, enquanto forma cultural, trai a origem do autor, e, em certo sentido, denota o discurso.
Admitindo-se que exista afinidade entre compositor e letrista, a “peça” resultante a caracteriza. Isto não significa que esta afinidade resolva origens (estórias) diferentes, às vezes radicalmente diferentes. Embora conscientes desta dificuldade, os autores deste trabalho não a exploraram, preferindo considerar, em uma primeira aproximação, como possível de serem trabalhadas as peças, admitindo que a afinidade existente, entre letra e melodia, ainda que pontual, revela acordo, parceria, encontro.
Para este estudo exploratório foram utilizadas coleções particulares de discos de MPB e a coleção Nova História da Música Popular Brasileira editada em 1976, pela Abril Cultural. Procedeu-se a um levantamento das letras, análises e identificação dos tipos femininos aqui discutidos.
Os limites do presente trabalho estão situados também no material utilizado; enfim, a escolha de músicas para fascículos ou discoteca particular atende a critérios externos aos aqui observados. A
continuidade do trabalho, e utilização de outras fontes de pesquisa, permitirá a crítica e aprofundamento das conclusões aqui expostas.
O grande útero, uma questão de origem
A música que hoje reconhecemos como popular brasileira surge no Rio de Janeiro, na segunda metade do Século XIX, como o canto de camadas populares urbanas em formação. Grosso modo pode-se dizer, portanto, que os ritmos típicos identificados com a atual MPB trazem aquela marca de origem, e surgem já como o canto de um povo em formação na Capital do Império.
A emergência dessa categoria social decorre dos processos de desagregação do modo escravista de produção de matérias-primas e da emergência do modo capitalista de produção de mercadorias, [1] levando à liberação da mão-de-obra escrava, sua transformação em força de trabalho assalariada, porém não-qualificada, deslocamento e concentração desta população nas áreas urbanas, sobretudo capitais provinciais e Corte, onde se manteve a preservação e recriação de formas culturais de origem, inclusive a música. Ali foram combinado lundu e modinha pelos artistas de “pau de corda”, resultando, ao longo do tempo, o maxixe, um ritmo erótico, no dizer dos comentaristas da época. [2]
O declínio da exportação de fumo e cacau na Bahia e café, na área fluminense do Vale do Paraíba, é fator que remonta mais ou menos a 1870, citado [3] como responsável pelo deslocamento da mão-de-obra escrava e, mais tarde, não-escrava para o Rio. É na Corte que o contingente da população negra, transformado pela força de lei de meio de produção em fator de produção, ou seja, mão-de-obra assalariada, vai tentar integrar-se à economia nacional, buscando a possibilidade de trabalho urbano compatível com sua baixa qualificação:
a estiva, na zona portuária da Saúde. [4] Mais tarde chegam ao Rio, já Capital da República, 1898, “os primeiros ex-combatentes de regresso da Campanha de Canudos, que iriam constituir, com suas cabrochas, a primeira Favela da cidade”. Na bagagem pouca, esta população colorida trouxera da Bahia a movimentação, o ritmo e o modo de cantar; as festas religiosas e aquelas de pretexto religioso; sobretudo, a disponibilidade para o festejo de modo ruidoso, lascivo, exótico ou erótico – adjetivos aplicados conforme a intenção do comentarista. É no ritmo e modo de cantar e
dançar desta população que Chiquinha Gonzaga inspirou-se para a criação da marcha Ó abre alas. [5]
O carnaval, festa do povo, refletiu, no Rio, do final do século e princípio do Século XX, a estratificação social que se formava resultante dos processos já mencionados, bem como expressava as diferentes formas pelas quais as classes populares se divertiam; cordões e ranchos, marchas, marchas-ranchos, batuques e estribilhos eram cantados nos diferentes carnavais: “o dos pobres na Praça Onze, dos remediados na Avenida Central e dos ricos nos corsos com automóveis”. [6]
A toda festa a vertente negra, sobretudo baiana, contribuía significativamente. Instalados na “cidade Nova e adjacências, bairros da Saúde, Estácio de Sá e Lapa”, [7] daí saiu o primeiro rancho carioca (1893) “Rei de Ouro”, fundado por Hilário Jovino Ferreira, que no princípio do século já era Tenente da Guarda Nacional. Refletindo ele próprio e outros elementos um processo de mobilidade social que se observava segmento da população.
A ação propiciatória à efervescência musical dos alegres baianos de origem negra esteve reservada à mulher: Seja parceira no erotismo do batuque, dança lasciva, como queria Alfredo Sarmento, onde “encenava -se a estória de uma virgem a quem são explicados os prazeres misteriosos do casamento”. [8] Sejam as respeitabilíssimas Tias baianas, elas sim ” úteros” geradores do samba. Sérgio Cabral aponta: “Tia Sadata, fundadora do Rancho da Sereia, Tia Dadá, Tia Gracinda, Tia Amélia, mãe de Donga, Tia Presciliana de Santo Amaro, mãe de João da Bahiana, e, a mais famosa, Tia Ceata”. [9]
Interessante notar que o tratamento “Tia” é um misto de respeito e carinho usado para designar figuras que, pertencentes ao Candomblé, sobretudo de origem em Angola ou Congo, têm conforme preceitos religiosos, um certo grau ou muitos anos de iniciação; [10] é um tratamento próximo ao de Mãe (Yalorixá). Tia Ceata deveria ser uma das yalorixá, aliás é quase nesta posição que Tinhorão a apresenta [11] com o nome de Omim (Água). Portanto, as festas que em sua casa eram realizadas, ao que tudo indica, tinham também propósito ou pretexto religioso.
A figura de Tia Ceata surge nos textos como realmente figura propiciatória, aquela que cria condições para que ajam as forças da Natureza, tal qual age a Mãe de Santo, Yalorixá, no culto africano: sua ação não é de criar ou gerar, ela própria, mas sim a de favorecer, de participar com seu instinto, “força de axé” e conhecimento do ato de criação.
Assim nasce o samba em casa de Hilária Batista de Almeida, baiana chegada ao Rio por volta de 1870, com tabuleiro na 7 de Setembro e, mais tarde, casada com o médico João Batista da Silva. Ela realizava festas em sua casa, possivelmente, associadas às comemorações religiosas, e nelas participavam “os bambas” da época: Caninha, Sinhô, Donga, Heitor dos Prazeres, Marinho que Toca, Mauro de Almeida, João da Bahiana e outros.
A figura feminina, da baiana, exatamente pela dança e roupas, tinha um destaque especial nestas festas. “Com seus balangandãs, camisus, cabeção de crivo, anáguas de crivo gomadas. Os calcanhares bem arranhados com cacos de telha… se o samba fosse de partido alto as veteranas ficavam perto dos tocadores, raiadores e das cantoras de chulas, estas com seus panos da costa ou xales de rica confecção.
Assim que acabava a parte cantada, as baianas davam início à dança, rodando três vezes em torno dos músicos, fazendo o miudinho, mexendo os quadris, e deixando cair os xales até a cintura. O sapateado das baianas arrancava aplausos.” [12]
A baiana, figura feminina que representa o próprio país, era então, na festa, o centro, com seu gingado e dança, aliás do mesmo tipo que aquela descrita como lasciva e erótica. É interessante notar, entretanto, que na cultura negra de origem, sobretudo na dimensão religiosa, encontra-se a mulher representada parceira do homem na luta, na guerra, ao lado da mulher-mãe. O reconhecimento das diferentes dimensões da mulher, em igualdade de condições com o homem, talvez seja um elemento diferenciador na cultura negra que ajude a explicar este assumir de uma dança que, para o europeu, parecia erótica.
Por outro lado, a disponibilidade de Tia Ceata proporcionando as “intermináveis festas” das quais fala o comentarista, encontra-se igualmente refletida na natureza das festas religiosas – em geral três dias – além de ser, ao que tudo indica, um traço comum às pioneiras do samba de pagode. [13] “Lindaura Rocha Miranda – uma das mais antigas damas da Portela, primeira a pisar um palanque de Escola de Samba (faz de) sua casa um eterno pagode, nunca está fechada p’ra ninguém. A hora que chegar, tá bem chegado.” [14]
A figura feminina marca assim a história do samba, permitindo que se diga mesmo de um “grande útero” propiciatório a este gênero típico de música popular. Assim também as escolas de samba e os ranchos tiveram suas fundadoras ou damas ilustres, inclusive Tia Ceata, e outras citadas por Beth Carvalho. [15]
“Chiquita, primeira compositora do Cacique de Ramos, Zica, mulher de Cartola e líder das pastoras; Dona Ivone Lara, compositora desde os doze anos e a primeira a enfrentar a ala de compositores, desfila na ala das baianas do Império Serrano; Paula do Salgueiro, da Mangueira; Tia Vicentina, Doca e Eunice, Portela; Clementina, Tia Ester, a Ceata da Portela, e a própria Tia Ceata”. São mulheres do povo, cujas estórias de vida escrevem parte da história do canto popular sobre o cotidiano triste e alegre, da vida na cidade, da sobrevivência do morro e fora dele.
Mas também as marchas, tida por Tinhorão [16] como ritmo mais ao gosto da classe média, teve uma mulher – Chiquinha Gonzaga - (1842-1934) como “mãe”. Aqui, entretanto, trata-se de uma outra dimensão do sujeito feminino: é a mulher que, rompendo com os papéis que lhe reservava a sociedade da época (casamento, filhos e anonimato), assume sua própria vida como obra de criação, construindo-a apesar dos preconceitos e conceitos da época. Branca, educada à européia, compositora e maestrina, Chiquinha em nada se assemelha às Tias-Mães do samba. Sua estória, e sua liberdade enquanto mulher, é traçada no caminho da criação da MPB, criação da marcha, democraticamente assumida pelo povo e classes populares.
Ela foi, a seu tempo, o que Dona Ivone Lara dizia ser proibido: compositora. Esta só aparece na década de 60, quando na MPB se registra um movimento de busca às origens populares. Dona Ivone dizia em entrevista, muito tempo depois,” compositora mulher não pode, né?”. [17]
Em síntese, na origem da MPB a figura feminina assume duas dimensões complementares e não exclusivas: a de propiciar e de criar, exemplificadas, grosso modo, pelas figuras da negra Tia Ceata e da branca Chiquinha Gonzaga.
Ambas as dimensões refletindo posturas aproximadas ao sujeito do discurso. Há porém, no conceito da MPB, a representação do feminino como construção estereotipada, que se remete às condições históricas e sociais de cada época e situação social.
Neste sentido é que se coloca a figura feminina como “construção de época” assim como o homem que a ela se relaciona. O importante a ressaltar, entretanto, é que, para a mulher, este estereótipo, idealização masculina sobre a contraparte, é tomado como um dos espelhos em que a mulher se reflete, buscando identificação, com maior ou menor “preocupação” em moldar-se, conforme a classe social e a própria postura individual.
A fase de identificação feminina – com a mãe durante a infância – vai se completando na adolescência e, não raro, na idade adulta, por esta dimensão social do tipo feminino construído pelo homem. Há, neste sentido, um moldar-se ao padrão, à expectativa, uma correspondência muda à mulher, representação cultural e ideológica masculina. Tais são os tipos femininos buscados neste trabalho: objetivações estereotipadas que correspondem a representações masculinas idealizadas da contraparte.
Sujeito compõe e musa inspira Diferentemente da “atitude propiciatória das primeira mulheres da MPB, a mulher-musa do canto popular é sobretudo uma construção simbólica masculina, ainda que, em muitos casos, esta mulher tenha existido na estória do seu criador, sua imagem no canto é idealizada numa representação que permite comunicar, não o específico, a autobiografia,
mas a condição, generalização, simbolização.
Exemplos desta situação existem muitos na MPB: Geraldo Pereira, eterno amante de sua “nêga” Isaura, Roberto Carlos e o canto para a mãe “Lady Laura”, Lupicínio Rodrigues e sua dor-de-cotovelo pela Iná, e assim muitos. [18]
A musa inspiradora torna-se objeto-motivo que sugere o canto, transcendendo este a situação particular em que foi criado. É a partir deste processo de generalização que se vai encontrar a figura feminina representando dimensões de processos em curso na sociedade brasileira, os quais, obviamente, a transcendem na medida em que se referem a um dado momento histórico e relações de classe.
Uma das músicas “clássicas” do repertório popular brasileiro tem esta origem: Maringá, de Joubert de Carvalho. Conforme o próprio autor, a cabocla Maringá não existiu, mas representou a calamitosa situação da seca nordestina. [19] Da mesma forma a cabocla Caxangá de Catulo, 1913. São figuras femininas que representam a pureza e beleza do sertão, no saudosismo rural da década de 20, como p. ex. Chuá, Chuá, de Pedro Sá Pereira, 1926, ou representam a tristeza da partida, como em Maringá, ou a aridez e desolação da seca, como Maria do Maranhão, Carlos Lyra, 1962. Seja o êxodo rural, seja a migração nordestina, trata-se de processos sociais que transcendem ao feminino, mas que o compositor representa colocando a mulher na posição de símbolo, sujeita, ela própria, àquelas condições, e assim representando e comunicando um conteúdo além do feminino.
Todavia, a cabocla Maringá é a “retirante que mais dava o que falá” cuja ausência “deixava o sertão triste”; da mesma forma as outras figuras desta fase rural dos anos 20 são trabalhadas a partir de categorias e atributos como “eterno feminino”: a beleza, formosura, singeleza, etc.
Portanto, encarnam ao mesmo tempo a concepção de mulher do autor e uma dada dimensão de processo social à qual está sujeita.
Tem-se, portanto, a mulher-motivo, musa e símbolo, dimensões que existem decorrentes da colocação da mulher como objeto de desejo, inacessível ao sujeito, e por isso mesmo motivando, inspirando, sugerindo, e como tal ainda representando figurativamente condições que a transcendem.
Se a construção da mulher-símbolo, representação, se dá pela apreensão, por parte do sujeito, de uma dada dimensão ou condição do processo histórico-social, trata-se de uma construção ideológica cuja existência estereotipada é inscrita nos processos de transformação da sociedade brasileira. Por outro lado, a musa, o mesmo objeto inacessível do desejo, tem sua existência marcada ao nível dos processos psicológicos afetivos, não menos ideológicos, porém pessoais, particulares. Ambas as dimensões, social e psicológica, terminam entretanto por resultarem em estereótipos cuja compreensão ultrapassa a estória do sujeito, atingindo a história do canto popular brasileiro. Ambas as dimensões expressam modos distintos de manipulação simbólica e portanto também ideológica, do mesmo objeto de desejo: a mulher.
A construção de estereótipos femininos de modo geral, e na MPB em particular, pode ser entendida desta forma, pela confluência das duas dimensões ideológicas apontadas: a psicológica, cultural, e a de classe.
Ambas evidentemente contidas na história da formação social.
Os estereótipos, como resultantes de processo de manipulação simbólica do objeto-mulher, diferem na medida em que se reportam a posições de classe diferenciadas, linguagens e condições sociais e histórias diferentes. Aproximam-se na medida em que reproduzem a perspectiva masculina na manipulação psicológica, cultural, no trato do objeto do desejo-mulher.
É neste sentido que o estereótipo feminino mais freqüente na MPB é o da mulher amada, amante, idealizada, tanto na louvação do amor-afeto -sexo, quanto representando a contraproposta: o ódio, abandono. O conteúdo do discurso difere, pela inscrição ao nível social, como foi dito, mas há uma irrefutável aproximação que trai a dimensão cultural masculina, p. ex.: o lirismo de Pixinguinha em Rosa, 1914, “Tu és, divina e majestosa…”não seria comparável ao de Ivan Lins em Madalena, 1968,”… o meu peito percebeu que o mar é uma gota, comparado ao pranto seu…”?
Na linguagem das primeiras décadas da MPB (10 a 30), a mulher amada é uma construção sobretudo estética, comparável à flor (amorosa, perfumosa, formosa) à rosa, como em Catulo e Pixinguinha, dentre inúmeros outros exemplos.
Coloca-se a mulher como algo inatingível, distante, inacessível. O desejo está nas entrelinhas do verso dirigido a um ser que não é de carne-e-osso, real, cotidiano, mas evanescente imagem doce, pura, distinta, discreta, ardente musa inspiradora mal adivinhada pelo autor.
O requinte do verso lembra o beletrismo criticado pelo modernismo de 22. Enfim, obras para serem cantadas em saraus e serenatas; lirismo delirante ao ritmo da canção, e valsa, para consumo, talvez, da classe média. À moral repressiva da época talvez se possa imputar o abuso das metáforas.
Neste tipo de mulher “a beleza é fundamental”, como diria Vinícius muito depois, sendo a beleza efêmera, como fez notar Catulo (Talento e formosura, 1904-1909), enquanto inteligência e sensibilidade, atributos masculinos, são perenes. A mulher permanece, pois, em desvantagem com referência ao homem, mesmo nas qualidades cobiçáveis e cortejadas.
A inacessibilidade e beleza permanecem no estereótipo da mulher amada ao longo de toda a MPB, independentemente das condições sociais em que se situa o sujeito. É interessante notar que a sensualidade, componente “de raiz” da MPB, fica implícita ao texto, como atributo presente, porém não mencionado, ou, quando feito, mascarado como carinho. A mulher amada é carinhosa e formosa e totalmente disponível. Como dizia Vinícius, “Formosa, não faz assim, carinho não é ruim, mulher que nega o que não é para negar, tem uma fibra de menos no seu coração..”
A construção do estereótipo da mulher amada está descrita de forma quase completa em Escultura, Adelino Moreira, 1957. Compõe o sujeito “de retalho em retalho” uma escultura que é a mulher amada, figura esta que combina o sorriso de Gioconda, glamour de Du Barry, voz de Dulcinéa, malícia de Frinéia, pureza de Maria. O resultado deste trabalho é a idealizada como objeto inacessível de desejo, disponível, parceira, dentre cujas qualidades e atributos “de um eterno feminino”, produto e manipulação da cultura masculina, devem ser acrescidos: devotamente, renúncia em função do homem.
Este estereótipo feminino está presente em A volta do Boêmio, Adelino Moreira, 1956 – renúncia; Amélia, Ataulfo Alves, 1941 – devotamente, sacrifício; Marina, Dorival Caymi, 1947 – obediência; Disritmia, Martinho da Vila – disponibilidade; Garota de Ipanema, Tom Jobim e Vinícius, 1964 – “coisa mais linda, cheia de graça”.
Como se pode observar, diferem as linguagens, as condições sociais e históricas e de classe em que se podem situar os criadores deste estereótipo. Todavia, a obra construída, a representação do objeto, é comum, aproximada, servindo possivelmente como modelo para a mulher, que assim procura corresponder às qualidades e atributos que lhe define o homem. Note-se a respeito que Dolores Duram, 1957, lamentava ao som de samba-canção, Noite do Meu Bem, “não ter a pureza que queria dar ao homem…”.
Por outro lado, este objeto feminino elaborado na imaginação não resiste ao cotidiano. Quando ganha a dimensão do real, desfaz-se a beleza e a idealização e o cantor passa ao relato de uma outra mulher objeto-construído, um outro estereótipo: a falsa, interesseira, que se utiliza do homem como valor-de-uso para sua sobrevivência.
Todavia, utilizar-se do homem para sobreviver só é possível quando a mulher-objeto é vista sob novo ângulo. Não mais o inacessível ser desejado, mas o objeto possuído, conquistado, dependente, sobretudo financeiro.
A falsidade e o interesse feminino pelo dinheiro estão presentes no canto daqueles que enalteceram também a boemia, a malandragem como postura ante a sociedade competitiva em formação, ou filosofia de vida, p. ex. Geraldo Pereira, bem como daqueles que fizeram da música uma opção profissional, p. ex. Sinhô, assim como de outros que combinaram profissões como jornalismo, a condição de operário com a de compositor, Orestes Barbosa, Bide. Neste sentido, não se pode entender o estereótipo feminino da falsa-interesseira como um simples “desabafo de malandro”, muito embora a pressão econômica em que sobrevivem as classes populares esteja presente na maioria das peças onde ela aparece.
Todavia, trata-se de um estereótipo construído na contradição do sujeito. Assim como revela Sinhô, Pé de Anjo, 1917, “a mulher e a galinha são dois bichos interesseiros: a galinha pelo milho, a mulher pelo dinheiro…” mas ele mesmo diz, em Gosto que me Enrosco, “Deus nos livre das mulheres de hoje em dia/desprezam o homem só por causa da orgia… mas o homem com toda fortaleza/desce da nobreza/e faz o que ela quer…”.
Há pois uma atitude dúplice diante da mulher-parceira (objeto idealizado /objeto odiado) que se revela também no trato com a relação financeira:
ao mesmo tempo em que a dependência econômica da mulher é um elemento a mais na posse, ela é apontada como um risco de falsidade na relação amorosa. Como diz Geraldo Pereira, Escurinha, 1945, “Escurinha tu tem que ser minha de alguma maneira/te dou meu boteco /… sai disso bobinha/só nessa cozinha levando a pior…”. O dinheiro está sendo usado como argumento de conquista, mas ao mesmo tempo pode encerrar um risco de perda, de falsidade, na medida em que pode se tornar justificativa da relação. Diz ainda Geraldo Pereira, Bolinha de Papel, 1945, “só tem medo de falsete/mas adoro a Julieta… mas só não quero que me faça de bolinha de papel/tiro você do emprego/dou-lhe amor e sossego/vou ao banco tiro tudo p’ra você gastar…”. A insegurança diante da natureza da relação com o objeto possuído aparece também em Orestes Barbosa, Caixa Econômica, 1933, “Você quer comprar sossego/me vendo morrer num emprego/p’ra então gozar/… eu não sou livro de cheque p’ra você descontar”.
Trata-se enfim de um jogo, como diz Ismael Silva, Se Você Jurar, “A mulher é um jogo/difícil de acertar/E o homem como bobo/não se cansa de jogar…”.
Exemplos são muitos ao longo de toda a MPB, de Sinhô a João Bosco e Aldir Blanc, Incompatibilidade de Gênios, 1976. Em geral relatando, no cenário da precariedade das condições econômicas das classes populares, o conflito doméstico, onde a mulher esposa, “nêga” – teúda e manteúda -, objeto possuído, adquire o estereótipo da falsa interesseira. Assim aparece em Wilson Batista, 1945; Zé Kéti, 1964; Bide e Marçal, 1941. Ao mesmo tempo, dela é esperada a conformação ante o inexorável, a compreensão ante a boemia e sobretudo ante a infidelidade no carnaval.
Assis Valente, Camisa Listada, 1937, Fez Bobagem, 1942; Ary Barroso, Camisa Amarela, 1937, dente outros, assumindo o discurso feminino, descrevem a atitude compassiva que integra o estereótipo da mulher- objeto-possuído, p. ex.: “despertou mal humorado/quis brigar comigo/que perigo/mas não ligo/o meu pedaço me domina/me fascina/ele é o tal/por isso não levo a mal” ; “Meu moreno fez bobagem/aproveitou minha ausência/e botou mulher sambando no meu barracão/E eu bem longe me acabando/trabalhando p’ra viver”.
A passagem do objeto inacessível (amada) para o objeto possuído (nêga, esposa), seja de que forma for, é apontada na MPB como um jogo (Ismael Silva) ou uma artimanha feminina (Pedro Caetano, Botões de Laranjeira, 1942) onde ela, a mulher, detém o controle e mais se beneficia. O casamento torna-se então um elemento construtor dos estereótipos femininos, na medida em que, através dele, explica-se a condição de “pertencer a alguém”, a condição de posse do objeto que, no discurso masculino da MPB, caracteriza destinos femininos típicos:
a mãe, esposa, “outra”, mulher solteira, a de muitos amores, etc.
Estes destinos estereotipados estão presentes na MPB de todas as décadas em discursos diferenciados pela linguagem que, em certo sentido, trai a origem social do sujeito, referentes à mulher esposa, companheira, das classes populares. A ausência da ligação de posse é cantada como um mal, identificada ao desespero e solidão.
Exemplos típicos seriam Buquê de Isabel, Sérgio Ricardo, 1958, “Isabel fez um sorriso aflito, p’ra que o buquê?”; Jair Amorim, Conceição, 1956; Lupicínio Rodrigues, Maria Rosa, e tantas outras.
A ambição feminina pela mobilidade social, representada pela “busca do asfalto” abandono do morro, etc. é sempre penalizada na música, e está associada, nas entrelinhas do verso, à prostituição, especialmente na década de 50, que se caracteriza pelo canto da fossa, do samba- canção existencial e de dor-de-cotovelo, enquanto a sociedade brasileira passava por intenso processo de mobilidade social e urbanização provocado pela industrialização. Os elementos culturais constitutivos deste discurso estão presentes ainda na MPB; veja-se Aldir Blanc e João Bosco, Miss Suéter, 1976; Martinho da Vila, Iaiá do Cais Dourado; Chico Buarque, Quem te viu, quem te vê.
Os estereótipos femininos comentados até agora têm em comum a perspectiva do sujeito homem relatando uma realidade que lhe é externa, e com a qual, objeto do canto, ele trava uma relação de desejo e posse.
É nesse sentido que o sujeito relata a mulher na MPB. É assim que Noel, 1937, diz – a Lindaura, sua esposa – Você vai se quiser (trabalhar) “mas não venha dizer depois/que você não tem vestido/e que o jantar não dá p’ra dois”. É também desta perspectiva que Martinho da Vila descreve, em 1971, em Menina-Moça, etapas da vida feminina: namoro, noivado, casamento, desquite.
É também desta perspectiva externa, por assim dizer, que são descritos os tipos da baiana, mulata, loura, normalista, operária, funcionária pública, bailarina etc. A todos eles correspondem
“qualidades” ou “defeitos”, enfim atributos diferenciadores: a mulata é assanhada, sensual; a loura, um convite; a normalista, linda; operária, obediente; funcionária pública é relapsa; bailarina é quase prostituta, enquanto mãe, uma categoria à parte, encerra todas as virtudes.
Seria difícil nos limites deste texto trabalhar todos os estereótipos femininos da MPB. É importante acentuar, contudo, que eles são construídos com base em traços distintivos, físicos, sociais, parentesco, etc., ou seja, atributos tomados pelo cantor como elemento de construção da mulher-objeto de seu canto.
Este procedimento está presente ao longo de toda a MPB, em que pese à linguagem apresentar diferenças que a situam em momentos históricos distintos.
Neusa Meirelles Costa é doutora em Ciência Política pela UNICAMP e professora do Mestrado em Comunicação Social do IMS-SBC.
Um comentário:
Muitissimo interessante. Parabens.
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