Arendt e o totalitarismo
14 de março de 2010
Os estudos sobre o totalitarismo esclarecem a face trágica do século 20 e os desafios das democracias no século 21
Newton Bignotto
Hannah Arendt começou a escrever As origens do totalitarismo logo depois da guerra. Após sua chegada aos Estados Unidos em 1941, ela se dedicou, sobretudo, às questões ligadas à situação dos judeus, colaborando com várias revistas ligadas aos imigrantes europeus e participando intensamente dos debates travados por intelectuais que haviam sido obrigados a fugir de seus países de origem. A descoberta das atrocidades nazistas nos campos de extermínio conduziu-a, no entanto, aos problemas que estariam no centro de seu pensamento nos próximos anos. A obra testemunha um mergulho apaixonado na cena contemporânea e o desejo de pensar o que parecia impensável: o surgimento de estruturas de poder voltadas para uma forma total de dominação, que não se detêm nem mesmo diante da tarefa monstruosa de eliminar populações inteiras, para fazer triunfar idéias abstratas e crenças na superioridade de raças e de ideologias. A leitura do livro é ainda hoje uma experiência fascinante.
As duas partes iniciais do livro, dedicadas ao anti-semitismo, como fenômeno político, e ao imperialismo, como resultante do desenvolvimento da lógica de expansão do Estado-nação, misturam literatura, história, sociologia e economia, num esforço gigantesco para explorar os desvãos de uma época que colocou a violência no centro da política. Essa é uma das intuições geniais do texto. Ao estudar a formação e a decadência dos projetos nacionais e de suas extensões imperialistas, Arendt mostra como a experiência totalitária não surgiu como o produto da loucura de poucos, mas sim como uma possibilidade inscrita na lógica de sistemas de dominação que não hesitaram em fazer de diferenças étnicas e de classe o motor para um processo de exclusão e domínio cujos resultados desastrosos marcaram o último século.
Terra de ninguém e totalitarismo
Uma das análises mais fecundas de Arendt, que conserva uma grande atualidade, é aquela do tema dos apátridas. Tendo vivido a experiência de ser jogada no mundo sem lastro ou referência de identidade nacional, quando vagou pela Europa entre 1933 e 1941, e depois quando permaneceu sem a cidadania americana por alguns anos, ela soube fazer dessa questão um tema universal, cujas conseqüências chegam até nós. O fato de que o mundo passou a conviver com milhões de pessoas rejeitadas, sem ter um estatuto legal definido, é ao mesmo tempo uma das conseqüências da política contemporânea, que resultou na criação dos regimes totalitários, e uma de suas heranças. Ainda hoje, a figura de cidadãos sem direitos em países ditos democráticos é um alerta quanto aos riscos que corremos ao aceitar dividir o mundo entre os que têm direitos e os que vivem numa terra de ninguém onde todos os excessos são possíveis. A recente legislação européia, que permite manter presos, por até dezoito meses, indivíduos destinados à expulsão, mas que não foram julgados, assim como os campos de prisioneiros americanos, situados fora de seu território, demonstram a sobrevivência dessa terra de ninguém, para a qual são mandados os que não podem se beneficiar da proteção integral das leis vigentes nos diversos países.
Para medir o alcance dessas observações, devemos nos reportar à terceira parte de As origens do totalitarismo que, com suas análises apaixonadas e profundas, contribuiu para fazer dele um dos clássicos do pensamento político contemporâneo. O conceito de totalitarismo não foi forjado por Arendt. Já na segunda década do século 20, a palavra aparecia associada ao regime dominado por Mussolini, mas foi, sobretudo, a partir dos anos 1930, no período de ascensão e consolidação do nazismo, que o conceito ganhou forma e apareceu em estudos, como os de Raymond Aron ou de Franz Neumann, -dedi-cados a compreender as experiências ameaçadoras que ganhavam corpo na Europa. Não resta dúvida, no entanto, de que o livro de Arendt contribuiu em muito para a propagação do termo junto aos estudiosos, que se dedicaram a entender a natureza do fenômeno, que produziu uma tragédia sem precedentes na história da humanidade. Acrescia a isso, o fato de que para a pensadora o regime que vigorava na então União Soviética continha os mesmos traços fundamentais do fascismo italiano e do nazismo. Sem desconhecer as diferenças entre a experiência dos diversos países, Arendt acreditava que podíamos nos servir do conceito de totalitarismo para abordar os problemas resultantes de um regime que destruía o terreno da política e fazia do terror uma forma central do relacionamento do Estado como seus cidadãos. Mais que isso, ela mostrava que o totalitarismo era o produto de um século que havia jogado por terra as antigas teorias políticas, tornando obsoletos conceitos que antes orientavam os que se ocupavam das questões de governo e de suas formas. Uma nova barbárie havia sido gestada por um regime sem comparação com aqueles conhecidos pela tradição.
Críticas
A grande repercussão dos escritos de Arendt foi acompanhada, nos anos que se seguiram à sua publicação, por uma avalanche de críticas. Em primeiro lugar, os escritores formados na tradição marxista recusaram a aproximação do nazismo com o comunismo soviético. Para eles, havia semelhanças entre o período dominado por Stalin e o nazismo, mas essa aproximação não levava em conta os objetivos específicos de cada regime. No caso do comunismo, o fato de que ele buscava implantar uma sociedade melhor e mais igual pareceu uma razão suficiente para recusar a aproximação com outros regimes, mesmo quando se reconheciam os excessos cometidos em um período determinado da história soviética. No contexto da Guerra fria, muitos opositores da tese totalitária viam na aproximação entre os regimes nazista e comunista uma maneira de levar a cabo a luta entre os dois blocos opostos no terreno da ideologia.
Um outro conjunto de críticas veio dos historiadores, que se ocuparam tanto do fascismo e do nazismo quanto do comunismo. Para eles, o conceito de totalitarismo não precisava ser inteiramente deixado de lado, mas ajudava pouco quando se tratava de estudar no detalhe a evolução das sociedades, que viveram as experiências limites do século 20. Diante dos caminhos diferentes que seguiram o fascismo italiano, o nazismo e o comunismo soviético, o recurso a um conceito único pareceu-lhes de pouca utilidade, quando a tarefa de analisar um conjunto amplo de fontes se colocou no centro de suas preocupações.
É certo que Arendt não conhecia as entranhas do poder soviético, o que do ponto de vista da historiografia só se tornou possível depois do fim da União Soviética. Por isso, algumas de suas observações carecem de precisão, assim como é possível encontrar problemas em alguns de seus estudos referentes a acontecimentos anteriores à Segunda Guerra mundial. Mas esse não é o núcleo de seu trabalho nem a herança que nos legou. Ela nunca pretendeu escrever um livro de história tradicional e era consciente do desequilíbrio entre as partes de sua obra. O que importava, no entanto, era ir direto aos “grandes problemas”, sem se deixar iludir por falsas proximidades com o passado.
Campo de concentração como fundamento totalitário
Para recolher a herança de Arendt, em primeiro lugar, devemos estar atentos para o fato de que ela soube como poucos destacar a originalidade dos sistemas totalitários, compreendendo-os como produto de uma época que ainda não esgotou seu sentido para nós. Ao buscar suas raízes no passado, ela mostrou que o totalitarismo é filho da sociedade industrial, que combinou a crença na força das tecnociências com o desenvolvimento do racismo e da exclusão. Ao apontar para o campo de concentração como a estrutura fundamental de domínio totalitário, ela forneceu um horizonte de explicação e de identificação da natureza dos regimes extremos que ultrapassa o significado das diferenças que sempre existem entre formas históricas particulares. Esse conceito-chave é uma ferramenta preciosa para entendermos a gravidade do aparecimento de novas formas de exclusão no interior das sociedades democráticas atuais.
Um segundo aspecto importante da herança arendtiana é a capacidade que ela demonstrou de apontar os traços fundamentais que distinguem os regimes extremos do século 20. Ao analisar o papel do líder totalitário e mostrar os laços que o unem às massas desenraizadas e solitárias de nosso tempo, ela soube compreender o significado da solidão num tempo em que as comunicações aparentemente aproximaram os homens. Ao apontar para a progressiva destruição da esfera pública, que implicou o colapso do sistema partidário e em última instância da idéia mesma da pluralidade como valor primeiro das sociedades livres, ela mostrou ao mesmo tempo o lugar do qual nasce a experiência democrática e os limites de suas instituições. Finalmente, ao estudar o papel do terror na estrutura de domínio total, ela apontou para a destruição dos laços éticos entre os homens como a conseqüência necessária de uma sociedade sem política.
Se a referência aos campos de concentração, como fundamento da experiência totalitária, é um dos pilares da investigação de Arendt sobre a face trágica da política contemporânea, do ponto de vista filosófico, a referência ao mal radical – tema que perseguiu a pensadora durante toda sua vida – é o caminho para compreender como ela soube integrar a tradição filosófica de investigação da natureza do mal ao esforço de desvendamento do significado dos horrores que surgiram das entranhas da modernidade. Os estudos de Arendt sobre o totalitarismo esclarecem ao mesmo tempo a face trágica do século 20 e os enormes desafios das sociedades democráticas do século 21.
Revista CULT
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