Por Fábio Lambertini Tozzi
O encontro entre as comunidades ribeirinhas e os voluntários ocorre em barcos, como na foto acima, que mostra a população do Tapajós
"A proposta era sair de São Paulo e desvendar um Brasil pouco conhecido, desde a costa aos rios da Amazônia, com seus povos tradicionais e riquezas naturais, e promover um trabalho voluntário de educação socioambiental. Mas, na verdade, passamos a ser alunos diante da riqueza do saber popular e da biodiversidade com os quais nos deparamos.
Levei como bagagem a minha experiência de médico cirurgião e socorrista, e minha esposa Adriana, de bióloga. Nós dois queríamos dar um tempo à vida urbana de São Paulo e partir para um trabalho científico e voluntário em comunidades ribeirinhas e tradicionais. Decidimos vender tudo e partir para uma expedição fluvial pelo Brasil, em janeiro de 2004, que batizamos de Brasil a Vela, no meu veleiro Kuarup (em homenagem à cerimônia dos índios do Xingu) reformado, que tinha desde 1989. Como roteiro, estabelecemos que percorreríamos a costa brasileira, a partir de Santos, com duas opções de destino.
A primeira, a Port Spain, em Trinidad e Tobago, refazendo o trajeto da viagem de exploração do naturalista alemão Alexander Von Humboldt (1769-1859), entre 1799 e 1804, que passou pelo rio Negro para chegar ao rio Orinoco, pelo canal Cassiquiare. A outra tinha como roteiro a navegação pelos rios Madeira, Mamoré e Guaporé, passando pela Bacia do Paraguai, navegando pelo Pantanal, com retorno por meio da Bacia Del Plata.
Entretanto, paramos em 2006, no Tapajós, no Pará, em um intervalo que dura até hoje, a fim de recompormos as nossas economias e por causa de um convite de trabalho desafiador. Comecei a atuar como médico da área de saúde do Projeto Saúde e Alegria (PSA), com os ribeirinhos do Tapajós e Arapiuns, e posteriormente assumi a coordenação do navio-hospital da entidade, atividade na qual ainda estou envolvido.
Brasil a Vela deverá voltar à ativa
O Projeto Brasil a Vela, do médico Fábio Lambertini Tozzi, deverá continuar viagem a partir da travessia no rio Negro, em data ainda a ser definida, diz Tozzi. "A nossa ideia é divulgar e promover campanhas para a manutenção de políticas públicas efetivas nesse lado do País, por meio de iniciativas como consórcios intermunicipais", afirma o médico.
Um dos principais legados de toda a experiência vivenciada até agora, segundo ele, é a absorção dos costumes tradicionais dos ribeirinhos, que trazem conhecimentos das florestas e dos rios e de como tratar de algumas doenças com ervas e plantas naturais, e de conviver harmoniosamente com a natureza. "Eles vivem com o essencial, mas à medida que adquirem bens de consumo, a vida deles começa a ficar desequilibrada", observa. A história da concepção do projeto, o diário de bordo, escrito a várias mãos, pelo casal e amigos, além de fotos do registro da viagem podem ser conferidos no site http://veleirokuarup.sites.uol.com.br/.
Projeto que visa a promover atendimento médico e educação ambiental em comunidades costeiras e ribeirinhas será reativado
Percorrer a extensão do litoral brasileiro de Santos ao norte do País, incluindo Fernando de Noronha, em Pernambuco, e Atol das Rocas, no Rio Grande do Norte, nos reservou momentos inesquecíveis, seguidos da experiência de conhecer as comunidades e ecossistemas ao longo dos rios Pará, Amazonas, Tapajós, Negro e Trombetas, além de seus afluentes.
Partimos do Guarujá no dia 25 de janeiro de 2004, às 7 horas, em um domingo ensolarado e de mar calmo. Só paramos em comunidades pequenas em todo o percurso da viagem. Nessas localidades, íamos às escolas falar com os diretores, professores e pais, para poder promover as aulas de cuidados com a saúde e noções socioambientais. Tratávamos de temas como primeiros socorros, sustentabilidade, ecologia e tratamento de lixo. Como recursos, utilizávamos vídeos de documentários e de filmes nacionais.
FÁBIO LAMBERTINI TOZZI, 50 anos, é médico especialista em cursos de primeiros socorros e sobrevivência no mar. Durante 15 anos foi cirurgião vascular do Hospital Universitário da Universidade de São Paulo (USP). Tem longa experiência como capitão amador de embarcação, com viagens à Antártica, Caribe e Europa.
No trecho baiano, ainda viajamos de bicicleta por todo o litoral. Tivemos a oportunidade de promover pesquisas com aves marinhas, especialidade de pós-doutorado de Adriana, além de auxiliar em pesquisas científicas de universidades em Abrolhos e em Fernando de Noronha, e no arquipélago de São Pedro e São Paulo, em Pernambuco.
E de todo o trajeto da viagem, alguns dos locais que mais nos impressionaram pela carência de recursos foram as reentrâncias maranhenses. Pudemos observar que nesses trechos mais distantes há praticamente a ausência do Estado.
De abril a dezembro de 2006, já estávamos na região do Pará. O rio Arapiuns é cheio de baías e durante a seca, enormes pontas de areia projetam-se rio adentro, obrigando o barco a zigue-zaguear. O rio foi ficando cada vez mais raso e algumas vezes tivemos de guinar rapidamente para não encalhar. Depois de muitas voltas e do rio ficar cada vez mais estreito, demos de cara com a belíssima cachoeira de Aruã. A comunidade é ótima e muito organizada, tem luz por meio de turbinas dispostas ao lado da cachoeira, uma pracinha construída pelos próprios comunitários, com balanços, gangorras e outros brinquedos, bancos de madeira e uma 'farmácia natural', que é um cercadinho onde são cultivadas plantas medicinais. Nos finais de semana a diretora da escola coloca a única TV da comunidade em frente à sua casa, atraindo toda a criançada para assistir a desenho animado.
Partimos da cidade de Santarém, às margens do rio Tapajós, onde praticamente não se via o outro lado. Fizemos uma pequena parada em uma baía chamada Urucureá. Lá conhecemos um grupo de uma comunidade que veio em uma bajara de rabeta (tipo de embarcação fluvial).
Voltamos em um barco em que dividimos espaço com meia dúzia de pessoas com seus sacos de farinha e artesanatos. A nossa parada final foi em Alter do Chão - onde bancos de areia em meio ao Tapajós tornam essa vila um dos locais mais visitados da região. Esse cenário nos conquistou e aí fixamos residência."
Revista Leituras da História
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