sábado, 18 de dezembro de 2010

Filosofia: do início, e de antes

Pitágoras
14 de março de 2010

A Filosofia nasceu como ideal de felicidade, interessou-se primeiro pelos problemas da natureza. Mas antes de o nome ser registrado já havia Filosofia e filósofos
Há algo essencial nesse saber que exige nome próprio. O amor pela sabedoria foi expresso pela primeira vez por Pitágoras (século 6 a.C.) que, elogiado por sua eloqüência e indagado pelo saber que a inspirava, afirmou não ser um sábio (sophós), e sim um amante da sabedoria, um filósofo. Surpreso com a novidade do nome, o príncipe que o admirara perguntou-lhe o que eram os filósofos. A resposta metafórica comparou a vida humana às atividades ocorridas durante os jogos públicos, aos quais uns compareciam para brilhar nos exercícios físicos; uns aproveitavam a multidão reunida e iam em busca de comércio; e outros não buscavam dinheiro ou aplauso, e sim conhecimento: lá estavam para observar. Assim, teria dito Pitágoras: “Nós viemos à existência como se vai a uma grande feira, alguns como escravos da fama, uns ambiciosos de lucros, e outros ávidos de sabedoria. A estes últimos, mais raros, chamamos filósofos.”
Inicialmente, o termo theorós referia-se a espectadores que assistiam aos jogos olímpicos, a comandantes convidados a passar tropas em revista, a uma espécie de embaixador cuja função era estar presente e contemplar. O teórico era o espectador no sentido mais autêntico da palavra, e a teoria era uma forma de participação espetacular. O verbo filosofar apareceu quando o historiador Heródoto (século 5 a.C.) apresentou a autarquia como ideal da verdadeira felicidade e considerou que a vida contemplativa ou teórica era superior, por passar ao largo das disputas materiais. A Filosofia nasceu como nomeação sob a égide da ética eudaimônica e do pensamento não-instrumentalizado. Mas antes de o nome ser registrado já havia Filosofia e filósofos. Oficialmente, a Filosofia surgiu no século 6 a.C, em Mileto. É curioso notar que teve origem em uma colônia da Ásia menor, floresceu nas colônias da Itália meridional, e só depois de um século foi acolhida no centro da Grécia, e atingiu o auge em Atenas.
Antes, as epopéias homéricas haviam tornado os deuses inteligíveis e afastado o terror relativo a forças obscuras e incontroláveis. Mas o universo continuava sujeito a comportamentos passionais e arbitrários. Raios, relâmpagos e trovões surgiam da ira de Zeus; Poseidon criava ondas e tempestades marítimas, e Apolo trazia o sol em seu carro resplandecente. Um mundo à mercê dos humores divinos é o limite de racionalização das epopéias. A primeira pergunta posta pelo novo modo de pensar, portador de tamanha exigência de compreensão que mereceu nome próprio, foi: “Qual é o princípio (a arkhé) de todas as coisas?” Os primeiros filósofos tentaram entender a natureza a partir de um único princípio organizador, dessacralizado, impessoal, lógico. Uma vez entendida a arkhé, seguir-se-ia o entendimento das coisas. Na busca de um princípio único há, implícito, um desafio ao riquíssimo politeísmo grego. Os chamados filósofos naturalistas concebiam o mundo como kósmos – uma unidade sistemática composta de elementos diversos – e a premissa fundamental era a de que a natureza funciona sempre do jeito mais simples. A confiança na uniformidade do mundo natural, na existência de um padrão regular subjacente, distinto da caprichosa e imprevisível vontade de um deus, marca a mudança de atitude acerca da origem do cosmos e de seus fenômenos.
A filosofia grega começou com os problemas da natureza e não com os relativos ao ser humano. Por que o homem se interessou primeiro pelo cosmos, e só dois séculos mais tarde por conhecer a si mesmo? Não há resposta capaz de encerrar a questão e entre diversas razões verossímeis, ressalto a relativa à beleza da Grécia. A poderosa harmonia de desenho, cor, transparências e relevos da natureza grega interpela os que a vêem. Penso ser possível estabelecer uma analogia entre a invenção da Filosofia e a narrativa mítica sobre a passagem do caos ao cosmos. No início, diziam as musas, era o Kháos, um vazio abismal e vertiginoso, em cujo seio apareceu Gaia, a Terra. Da Terra, como impulso que nela fez brotar o desejo existente em suas profundezas, surgiu Eros, o Amor Primordial. Terra-Gaia gerou então Urano, o Céu, cuja única atividade era sexual: ele ficava o tempo todo deitado sobre ela! Terra engravidou e não pode dar à luz seus rebentos, teve de guardá-los no ventre, pois Céu, sempre em cima dela, mantinha uma noite contínua, sem deixar espaço a nenhuma outra existência. Dentro do corpo materno, Krónos, o filho caçula, decidiu enfrentar o pai e – com uma foice fornecida pela mãe – cortou-lhe os órgãos sexuais quando ele a penetrava. O Céu foi assim obrigado a separar-se da Terra. Como Krónos, os gregos arcaicos precisaram abrir espaço para o autodesenvolvimento, através de mediações abstratas, entre si e a beleza que os envolvia e os interpelava. Se, na Grécia homérica, o temor aos perigos naturais levou à produção de mitos, na Grécia arcaica o belo natural provocou o Logos. Enigmática e exuberante, a natureza pedia: “Diga meu nome.” Fatores históricos modelaram a fôrma filosofia, a partir da pulsão provocada pela Beleza. Lembro que Platão considerou a beleza capaz de provocar um arrebatamento potente o suficiente para conduzir a psykhé ao mundo das idéias, ao conhecimento. Teorizar tem certo teor de estar fora de si, de sentir-se arrastado e possuído pela contemplação. Ser arrebatado é mesmo a possibilidade da teoria, cuja essência consiste em uma espécie de transe entre sujeito e objeto contemplados. Reforço a hipótese com palavras de An Introduction to Greek Philosophy1: “A região chamada antigamente de Jônia é uma das áreas mais belas e mais favorecidas pela natureza na superfície deste planeta… Com seus promontórios abruptos e grandes ilhas em mar aberto, oferece uma mistura variada de montanhas e planícies, ricas em pastagens e em terra cultivável entremeada de pomares e bosques de oliveiras. O inverno é suave, com chuvas abundantes. Nascentes copiosas e longos rios perenes ajudam a manter a relva verde durante o calor do verão. Não há clima melhor em todo o mundo… a prosperidade era inevitável.”

Imaculada Kangussu é doutora em Filosofia pela Universidade Federal de Minas Gerais (Ufmg) e professora na Universidade Federal de Ouro Preto. Publicou artigos, principalmente sobre Estética, em diversos jornais, periódicos e livros, entre eles Katharsis – reflexos de um conceito estético (Com Arte, 2002) e Theoria Aesthetica (Escritos, 2005), dos quais é co-organizadora

Revista Cult

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