Uma nova abordagem sobre a crise urbana na obra de Mike Davis
Henrique Carneiro
Os três últimos livros de um dos mais importantes marxistas norte-americanos, o urbanista e historiador Mike Davis, traduzidos recentemente no Brasil (Cidades mortas, Record, 2007; O monstro bate à nossa porta: A ameaça global da gripe aviária, Record, 2006; e Planeta favela, Boitempo, 2006), assim como a publicação de um novo, Apologia dos bárbaros: Ensaios contra o império, a sair neste ano também pela Boitempo (com apresentação de Paulo Daniel Farah), mais a reedição prometida para 2008, pela mesma editora, de Cidade de quartzo, são expressões de análises lúcidas e precisas das condições sociais e ambientais que nos esperam no futuro das próximas décadas.
Davis, membro da revista New Left Review, que lecionou planejamento urbano no Instituto de Arquitetura do Sul da Califórnia, e atualmente é professor de História na Universidade da Califórnia, em Irvine, vem tratando nessas notáveis obras de uma análise crítica das condições urbanas contemporâneas. Em Cidade de quartzo (Scritta, 1993), contou a história de Los Angeles, metrópole pós-moderna por excelência, nascida do nada, no deserto, para tornar-se uma cidade para automóveis, espalhada como a mais extensa mancha urbana do mundo. Em Holocaustos coloniais (Record, 2002), analisou as ondas de fome do século 19 e suas relações com o clima, o mercado mundial e as expansões dos impérios europeus na Ásia e África. Em O monstro bate à nossa porta (Record, 2006) e Planeta favela (Boitempo, 2006), se debruçou sobre dois dos mais terríveis cavaleiros do apocalipse: a pobreza e a peste.
É difícil não sentir um arrepio apocalíptico diante dos cenários catastróficos que se combinam: explosão de hiper-urbanização favelizada em megacidades, aquecimento global e pandemia. A fome, a doença, a guerra e a pobreza potencializam-se num complexo espantoso de desastres e tragédias anunciadas.
Ler Mike Davis é uma tarefa indispensável, mas extremamente sombria. O futuro que nos espera será terrível. Um “futuro exaurido”, em que bilhões de seres humanos vão viver amontoados nas maiores cidades que já existiram em um planeta no qual o aquecimento global, a poluição, o extermínio da biodiversidade e demais processos de decadência do século 21 serão anunciados na forma de ondas de calor, incêndios, inundações, pandemias, além, é claro, da violência e da guerra onipresentes.
Um profeta do apocalipse, dir-se-á. E não é para menos, pois como este crítico implacável do capitalismo e do imperialismo analisa em suas muitas obras, “tempos estranhos começam”.
Na turbulência do movimento juvenil dos anos 1960 na Califórnia, Mike Davis, nascido em 1946, tornou-se um jovem ativista da Students for a Democratic Society, a principal organização de política estudantil contestadora, e começou sua trajetória como um dos críticos mais radicais das condições da sociedade contemporânea. Mas, diferentemente da maioria dos jovens rebeldes brancos, que eram de classes médias e abastadas, Mike Davis foi aprendiz de açougueiro e caminhoneiro, antes de tornar-se um professor de planejamento urbano no Instituto de Arquitetura do Sul da Califórnia.
Sua obra já vasta começou com a análise de Los Angeles como a cidade síntese da civilização do automóvel, da especulação imobiliária, da mercantilização da água, da indústria armamentista, do entretenimento e da alta tecnologia, cujo presídio high tech em pleno centro da cidade num edifício de vidro e aço é um símbolo mais significativo que o letreiro de Hollywood. Mais tarde, abordou o fenômeno da cidade contemporânea, em que as megalópoles tornam-se pela primeira vez na história da humanidade o lugar de moradia da maioria da população e a área rural uma zona despovoada em todo o planeta. Essa expansão caótica é um sintoma mais profundo de uma ruptura da civilização humana com a sua interdependência da natureza.
O ponto de convergência da crítica de Davis é a noção de cidade, originalmente vista como um refúgio diante dos perigos da natureza selvagem e que se tornou hoje em dia o centro de todos os pavores e inquietações. A “ecologia do medo” visa compreender como a vida urbana tornou-se tão monstruosa. E não é para menos, já que diante do apocalipse anunciado é preciso cada vez mais pensar uma “epistemologia neocatastrofista para reinterpretar a história ocidental”.
Na tradição do pensamento marxista, a análise das condições habitacionais dos pobres das cidades inglesas foi o ponto de partida de Friedrich Engels, em A condição da classe trabalhadora na Inglaterra (1845). Nos dias de hoje, essa tradição crítica do marxismo em relação à crise urbana refloresce na obra de Mike Davis. Sua perspectiva ambiciosa aponta para a necessidade de uma “ciência urbana realmente unificada”, a qual ainda mal podemos vislumbrar, mas que deveria tentar compreender a dialética entre a “cidade e a natureza”.
A conexão da crítica ao crescente caos urbano com a denúncia da escala gigantesca do ecocídio que está em curso, aliada a uma arguta análise da política interna norte-americana, assim como das relações internacionais, leva Davis a mostrar como a catástrofe da natureza não se separa das condições da exploração capitalista e da dominação imperialista mundial, cujo fundamento é uma doutrina de terror militar.
Para isso, uma boa data a ser lembrada é 10 de março de 1945. O dia do maior morticínio que a humanidade já conheceu no “mais devastador ataque aéreo na história mundial”, quando duas mil toneladas de napalm e magnésio incineraram cerca de um milhão de habitantes de Tóquio.
Esse foi o coroamento (seguido, é claro, alguns meses depois, das bombas atômicas) de uma doutrina militar nascida na Grã-Bretanha, na década de 1920, quando Churchill era o secretário da guerra. Essa “doutrina Churchill” é a do “bombardeio moral”, ou seja, do terror aéreo contra populações civis. Ele começou a ser praticado no Iraque em 1920, quando a RAF (Royal Air Force) usou, além de bombas, gás mostarda. As populações coloniais foram as cobaias para o aperfeiçoamento do bombardeio terrorista contra civis, “a trajetória até Guernica, Varsóvia, Dresden e Hiroshima começou nas margens do Tigre e nas encostas do Atlas”.
O modelo da guerra pós-moderna, além da supremacia absoluta do poderio bélico e dos bombardeios com “armas inteligentes”, enfrentará a resistência na forma não de exércitos convencionais, mas de milícias travando “operações militares em terrritórios urbanos”. A insurgência do século 21 também terá como cenário as cidades. A “israelização” das táticas de combate “assimétrico” às milícias insurgentes se aplicará não só ao Iraque ou à Palestina, mas a qualquer rebelião potencial do futuro, com a visão panóptica dos satélites e aviões espiões, com armas eletromagnéticas e de microondas, além das já tradicionais armas nucleares, químicas e biológicas de destruição em massa. Esse cenário sombrio é definido por Mike Davis como “o estado de terror puro e simples: uma Assíria do século 21 com laptops e modems”.
Henrique Carneiro é professor do Departamento de História da USP
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