O rochedo do arcanjo
Lamberto Scipioni |
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Fotos: Lamberto Scipioni
Desde os tempos pagãos mais remotos, a ilhota montanhosa onde hoje se eleva o mosteiro de Saint-Michel, bem como toda a região que a circunda, era considerada território sagrado pelos antigos celtas. Inúmeros menires e dolmens de pedra de grandes dimensões até hoje podem ser vistos, fincados no solo daquelas terras. Ao redor do século 8, o cristianismo se instalou no topo do monte, com a construção de uma primeira cripta, feita de blocos de granito superpostos. Desde então, a história do Monte Saint-Michel tem sido uma sucessão de períodos de grande brilho intelectual e religioso, de crises internas, de guerras, de demolições e reconstruções do imenso complexo de edifícios que constituem a abadia e o mosteiro.
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Uma longa passarela: A aldeia medieval existente na base do Monte Saint-Michel é um primor da arquitetura medieval do norte da França. Ao redor de boa parte da ilha existe uma muralha encimada por uma longa passarela da qual o visitante descortina extraordinários panoramas da baía. As ruas da aldeia são estreitas, cheias de lojas de suvenires para os turistas, restaurantes e hotéis das mais diferentes categorias. |
Naquele período da Idade Média, o culto a São Miguel começava a se propagar em toda a Europa. Acreditava-se que os lugares mais altos, como o cimo das montanhas, lhe pertenciam. Sob a inspiração de Saint-Aubert, bispo de Abranches, 12 monges se instalaram na cripta: salmos, devoções coletivas e mortificações marcavam o seu cotidiano. Foi o que bastou para que um mundo de lendas e histórias milagrosas – algumas falsas, outras verdadeiras – se formasse ao redor do Monte Saint-Michel. Muitas foram transformadas em crônicas e relatos pelos próprios monges.
Os beneditinos assumiriam o lugar
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Perfeição arquitetônica: À esquerda, o salão principal do refeitório do mosteiro. Nele, antes de depois das refeições, eram realizadas sessões de leitura de textos sagrados. O conjunto do refeitório, abadia e claustro ficaram conhecidos pela alcunha de “A Maravilha”, pela sua perfeição arquitetônica. À direita, o menir pré-histórico de Dol, nas proximidades do Monte Saint-Michel. Na Antiguidade, toda a região era considerada solo sagrado para os celtas |
Como em todos os outros grandes sítios do catolicismo, a arquitetura grandiosa tinha a finalidade de agradar a Deus, aos sacerdotes e aos peregrinos. Desde o início, o santuário de Saint-Michel atraiu centenas de milhares de devotos. Com suas ofertas, eles contribuíram para a prosperidade do vilarejo e da comunidade monástica. Até o final do século 18, o Monte Saint-Michel fez parte de uma poderosa cadeia de metas maiores de peregrinação, em pé de igualdade com Roma, Jerusalém e Santiago de Compostela.
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Subida ao céu: Ao redor do Monte Saint-Michel, várias escadarias conduzem ao mosteiro e à abadia. Não importa qual seja o percurso, a vista que se descortina é sempre extraordinária. Sem falar nas construções em pedras, características da arquitetura do lugar, quase todas de época medieval. Como a terra é pouca, os moradores aproveitam o espaço para fazerem jardins |
A fama de lugar milagroso, depositário de inúmeras relíquias de santos, atrai milhares de peregrinos em busca da salvação e de milagres. Mas nem só de milagres é feita a história do lugar. Ela está repleta de relatos de acidentes e catástrofes. Só em 1318, 13 peregrinos morreram pisados pela multidão, 18 se afogaram no mar e 12 desapareceram nos bancos de areias movediças que surgem quando a maré é baixa e permite a travessia a pé do continente até a ilha. No ano 922 um incêndio destruiu boa parte da aldeia e do mosteiro.
Em 1103, uma grande porção da nave central da abadia desabou. Em 1203, novo incêndio arrasou o mosteiro: sua reconstrução faria surgir uma estrutura arquitetônica de inspiração gótica cuja extraordinária beleza a tornou conhecida como “A Maravilha”.
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Dois milhões de visitantes: A proclamação pela Unesco do Monte Saint-Michel como Patrimônio Cultural da Humanidade, em 1979, incrementou de forma extraordinária o número de visitantes. A cada ano, cerca de 2 mi de turistas do mundo todo visitam o lugar. Durante o dia, em todas as estações do ano, as ruelas da aldeia estão repletas de visitantes. À noite, a quietude reina |
Durante a Guerra dos Cem Anos (1337-1453), entre França e Inglaterra, a abadia tomou ares de fortaleza militar, sem contudo perder seu caráter sagrado nem suas funções religiosas. Os ingleses conquistaram todo o território ao redor do monte, mas não conseguiram sobrepujar as enormes muralhas do mosteiro-abadia.
O fato de o Monte Saint-Michel permanecer boa parte do tempo ilhado (durante as marés altas) e rodeado de perigosos bancos de areia movediça (durante as marés baixas) era uma excelente proteção, que, como no caso da Guerra dos cem Anos, o tornava inexpugnável. Mas, por outro lado, esse isolamento apresentava grandes riscos para os peregrinos: para chegar ao mosteiro eles tinham de atravessar a pé longas extensões de areias molhadas. Os bancos de areia movediça e as marés que subiam rapidamente e podiam chegar a 13 metros de altura tornavam o trajeto muito perigoso. Na época, costumava-se dizer, com um certo humor negro: “Antes de ir a Saint-Michel, não esqueça de fazer seu testamento.” Foi preciso esperar a chegada do século 19 para que o monte fosse ligado ao continente por um dique. Sua construção, por um lado, resolveu o problema dos visitantes e dos moradores. Por outro lado, o dique provocou o assoreamento da baía. Hoje, apenas duas vezes por mês – nos dias de Lua nova e de Lua cheia – o monte se transforma com certeza numa ilha.
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Um claustro divino: O claustro medievalé um dos pontos altos do complexo arquitetônico. Inteiramente cercado por colunas e arcos góticos, esse magnífico jardim suspenso representa o céu na terra. Era nele que os monges passavam horas de intermináveis deambulações e orações. Muitos visitantes de hoje fazem o mesmo. A meditação e oração silenciosas são permitidas |
O dique é também um fator fundamental do grande afluxo de turistas ao local: mais de dois milhões de visitantes por ano se deixam seduzir pela magia do rochedo. Em todas as estações do ano, a rua principal da aldeia está cheia de gente.
Quem deseja um pouco mais de recolhimento deve aguardar a chegada da noite, quando apenas os moradores e os turistas que se hospedam nos hotéis locais saem para passear.
Para se chegar ao mosteiro, a partir da aldeia, é preciso subir várias escadarias. O ponto culminante é a abadia gótica, situada sobre o mosteiro, cujo pórtico principal se abre para um terraço panorâmico.
Lamberto Scipioni |
Templo vivo: Acima, a nave principal da abadia de Saint-Michel. O templo recuperou hoje suas funções religiosas, graças à presença, desde 2001, de uma pequena comunidade de monges e monjas que obtiveram permissão das autoridaes civis para nele residir e atuar. No Monte Saint-Michel mantém-se viva a chama da fé católica |
Durante quase um século e meio – entre o início do século 19 e a segunda metade do século 20 –, o Monte Saint-Michel permaneceu destituído de suas funções religiosas. Os beneditinos foram expulsos do lugar durante a Revolução Francesa. O complexo tornou-se então prisão de Estado. Em 1874, ele foi declarado monumento histórico nacional da França. Após a Segunda Guerra Mundial, começou a atrair turistas e, finalmente, entre 1965 e 1966, uma nova, embora muito reduzida comunidade de monges beneditinos se instalou no monte, dando início à renovação da sua dimensão espiritual.
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Alta gastronomia: O restaurante Mère Poulard é um dos mais antigos. Alta gastronomia (cozinha normanda e bretã) faz parte das muitas atrações do lugar |
Até 2001, essa comunidade monástica vivia num pequeno mosteiro situado na aldeia que circunda o complexo do grande mosteiro e abadia do Monte Saint-Michel. No dia 24 de junho de 2001, depois de longos meses de negociações com as autoridades que cuidam dos monumentos nacionais franceses, cinco monjas e quatro monges da ordem católica Fraternidades de Jerusalém foram autorizados a se instalar e residir no grande mosteiro.
Praticamente todas as seções do complexo de Saint-Michel podem ser visitadas pelo turista. O lugar é palco também de um espetáculo de som e luz noturno. A característica principal desse espetáculo é que, durante o seu transcorrer, o visitante não precisa seguir um roteiro preciso.
Ao contrário, ele pode parar o tempo que quiser para contemplar a arquitetura e as obras de arte expostas nos salões do complexo; pode sentar, meditar, voltar atrás, permanecer lá dentro o tempo que quiser. O Monte Saint-Michel não é apenas um esplêndido sítio de turismo cultural selecionado pela Unesco para integrar a lista do Patrimônio Cultural Material da Humanidade. Ele também é, ainda, uma cidadela da fé cristã, e como tal pode e deve ser aproveitado.
A maravilha |
O setor do complexo arquitetônico do Monte Saint-Michel conhecido como “A Maravilha”, é o coração da abadia. Dele faz parte o refeitório, dotado de excelente qualidade acústica, onde os leitores liam os textos sagrados em voz alta. A estrutura de vigas é de madeira. Acima do refeitório situam-se as salas de hóspedes e o salão nobre, onde eram acolhidos os peregrinos de alto nível social. Na parte esquerda de “A Maravilha” estão os ateliês monásticos e a biblioteca onde os monges desenhavam, escreviam e pintavam. A biblioteca, banhada pela luz difusa filtrada através de grandes vitrais, atraía eruditos e estudiosos de toda a Europa. A obra-prima de todo o complexo é, no entanto, o claustro, localizado 77 metros acima do nível do mar. Suspenso entre o céu e a terra, circundado por extraordinários arcos góticos, ele era e ainda é um lugar privilegiado para a meditação. |
Iluminuras | ||
Alguns manuscritos do Monte Saint-Michel, O Museu municipal de Abranches, por seu lado, exibe ao público uma coleção única de utensílios e instrumentos usados pelos iluministas medievais. |
Mais informações e visitas virtuais |
www.abbayedumontsaintmichel.net |
REVISTA PLANETA EDIÇÃO 401 |
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