quinta-feira, 9 de dezembro de 2010

Ode ao humor


Ode ao humor

Em toda a Europa medieval, nem o controle do poder feudal sobre o corpo, nem o da Igreja sobre o espírito impediram a realização das celebrações coletivas. Carnavais, “xarivaris”, ritos drolático nas antigas cerimônias satúrnicas romanas e procissões paródicas de culto católico mobilizavam as multidões

por Pierre Rimbert

No fim de 1999 Günter Grass recebeu Pierre Bourdieu em sua residência de Lübeck. O escritor e o sociólogo passam em revista a situação intelectual do mundo, fazendo caretas e, por vezes, mudando de ânimo.
Bourdieu: – “eles nos dizem: “vocês não são engraçados”. Mas o momento realmente não é para se rir! Na verdade não há nada do que se rir.”

Grass: – “eu não fingi que estávamos vivendo uma época engraçada. O riso infernal, solto pelos meios literários, também é uma forma de protesto contra as condições sociais.”

Familiarizado com as aventuras de Gargantua e com a verve de François Rabelais, Grass não invoca por acaso a virtude protestatória do espírito sardônico. Esse “riso infernal” não tem nada em comum com a diversão veiculada pelos comerciais, nem com o riso cínico ou mesmo com o humor crítico. Trata-se do riso desenfreado, de uma tradição milenar.

Em quais condições o riso oferece aos oprimidos um instrumento de resistência? Se ele tiver base popular; se liberar uma visão global de mundo e se mantiver com a ordem social uma relação de desordem. Esses três temas desenvolvidos pelo historiador de literatura Mikhail Bakhtine em um ensaio famoso sobre A obra François Rabelais 1, publicado em meados dos anos 1960. Nele, o sábio russo analisa a cultura cômica popular na Idade Média e no Renascimento.

Em toda a Europa medieval essa cultura passou por um desenvolvimento profundo. Nem o controle do poder feudal sobre o corpo, nem o da Igreja sobre o espírito impediram a realização das celebrações coletivas. Carnavais, “xarivaris”, banquetes festivos, ritos droláticos envolvendo antigas cerimônias satúrnicas romanas e procissões paródicas de culto católico mobilizam as multidões. O aparecimento em praça pública de gigantes e anões, monstros e palhaços, marcam o ritmo da vida agrícola, a renovação das estações do ano, o antes e o depois da Quaresma.

Outros festejos humorísticos mais ou menos associados à Igreja, como a Festa dos Loucos, Festa do Asno e o Riso Pascal (celebrados na Páscoa), implicam na participação do clero. Nesse caso, elege-se um “papa dos tolos” enquanto pessoas travestidas de eclesiásticos cantam obscenidades, e ‘diáconos’ devoram chouriço no altar. Noutra ocasião, o padre celebra a “missa do asno” na presença do quadrúpede, concluindo o ofício com um triplo “Urra”, enquanto os fiéis, no lugar de responder com o tradicional “amém”, respondem com berros. Em outros locais o prelado conta piadas e histórias obscenas para revigorar o rebanho já enfraquecido pelo jejum.

De maneira geral essas manifestações extraoficiais, mas toleradas, ocupavam várias semanas do ano, até três meses em grandes cidades. Uma válvula de escape? Certamente. Mas não podemos ser reducionistas, já que “tais festividades parecem ter edificado, em paralelo ao mundo oficial, um segundo mundo e uma segunda vida na qual todos os homens da Idade Média podiam se misturar numa escala mais ou menos extensa. Isso criou uma dualidade de mundo”, como explica Bakhtine. Não mais uma subversão interna de poder, mas a encenação efêmera de uma utopia dentro de um quadro histórico onde o desenvolvimento de forças econômicas e sociais não deixava entrever a reversão do sistema.

Esse outro mundo nunca é tão tangível como o do carnaval, centro da cultura cômica medieval. A praça pública é seu local de atuação. Ao contrário da rua moderna, há a todo momento uma plateia em potencial, “um mundo já pronto” 2. Sábios e ignorantes, camponeses e burgueses, membros de corporações, jovens e velhos, homens e mulheres, todos participam dessa festa. O carnaval “ignora toda distinção entre atores e espectadores”. Ele não é assistido, é vivenciado. E, “ao longo da festa só se pode viver conforme suas leis, ou seja, segundo as leis da liberdade”.

AO CONTRÁRIO
Ao mesmo tempo em que ele ridiculariza as instituições e zomba dos líderes, o humor carnavalesco inventa novas ligações sociais. Durante a festa, as barreiras sociais e hierárquicas entre participantes de todos os níveis e de todas condições se confundem em prol de um contato mais igualitário e livre. A essas ligações inéditas corresponde uma nova linguagem familiar formada por palavrões e xingamentos. O conjunto produz um sistema de representações exageradas do corpo, da comida, da bebida e da sexualidade. Tendo em vista que nas festas oficiais celebram o passado para consagrar a ordem presente, no carnaval se ri do presente e prefigura um futuro de fertilidade e abundância.

A visão de mundo embutida nas festividades populares obedece à lógica da reversão. Cantamos a epopeia de heróis burlescos cujas características físicas e morais se situam no exato oposto dos cânones oficiais, vemos travestis e fantasias malucas. Tudo aquilo que na ordem dominante tem a conotação de alto ou superior (intelecto, céu, disciplina, oficial, rigor) se encontra, durante o carnaval, misturado e invertido, reduzido ao que Bakhtine chamou de “extrato inferior do corpo material”. O inferior aqui se entende por entranhas, sexo e terra: funções de excreção, reprodução e crescimento. Rebaixar o superior e elevado mental ao nível do ventre e da terra nos remete ao enterro das classes dominantes e, seguindo esse mesmo movimento, ao alvorecer de um novo nascimento. Na verdade, o humor carnavalesco “é ambivalente: é divertido e muito alegre, mas ao mesmo tempo é zombeteiro e sarcástico, ele nega e afirma, enterra e ressuscita”.

A reversão carnavalesca visa especialmente o espírito do homem sério, aquele que, na Idade Média, se confunde com a cultura oficial. Predominava então uma ideologia que impõe (para o povo) o ascetismo, a redenção, o sofrimento e o medo da punição divina. Uma ideologia que se exprimia com gravidade. “O tom sério é a única forma que se permitia colocar a verdade, o bem e, de maneira geral, tudo o que havia de importante e considerável.” Se esse ainda for o caso de hoje, o fenômeno não tem nada de natural. Na Grécia antiga, poetas e filósofos eram vaiados. Do riso, Sócrates fez uma ferramenta pedagógica e Aristófanes, uma arma política. Já na Idade Média as autoridades proibiram o riso de todas as manifestações “elevadas” de espírito. Essa dinâmica aparece em O Nome da Rosa, romance de Umberto Eco, cuja intriga se articula em torno de uma questão teológica clássica: Jesus Cristo também ri?3

Traduzindo o sério “elevado” para o idioma do “baixo”, a visão carnavalesca de mundo supera o terror divino e o medo dos cataclismas cósmicos. “O sério oprimia, aterrorizava e acorrentava; ele mentia e distorcia; era avaro e magro. Nas praças públicas, durantes as festas, diante de uma mesa bem guarnecida, eles derrubavam o tom sério como uma máscara, e ouviam então uma outra verdade.” Essa verdade era burlesca e livre, de um “mundo ao contrário”.

Essa vitória sobre o medo é acompanhada da libertação do espírito. Afrouxando o nó que enforcava os sérios, as formas cômicas populares “refrescam a consciência, o pensamento e a imaginação humanos que se tornam abertos para novas possibilidades”. Abertos para novas tendências que não mais acontecem como efêmera inversão dos símbolos de poder, mas como a reversão real da ordem social, com a greve substituindo o carnaval como um workshop utópico e capaz de materializar a perspectiva “de um mundo totalmente diferente, de outra ordem social, de outra estrutura de vida”.

Em meados do século XVII a cultura cômica popular some da Europa e é relegada à esfera privada, sufocada com a praça pública. Ela perde assim seu papel positivo. Some sua ambivalência, o carnaval se reduz ao divertimento, ao exagero das caricaturas, ao rebaixamento da negação simples. Ainda assim, antes de desaparecer por completo o realismo grotesco deu origem a formas literárias clássicas, como Rabelais, William Shakespeare e Miguel de Cervantes que se “carnavalizaram”.

“Todo o campo da literatura realista dos três últimos séculos está literalmente coberta pelo que sobrou do realismo grotesco”, afirma Bakhtine. Como podemos ver na Festa dos Loucos descrita por Victor Hugo nas primeiras páginas de Notre-Dame de Paris, na Ópera dos Três Vinténs de Bertolt Brecht ou no Tambor de Grass. O riso como protesto contra as condições sociais. A manifestação onde o povo ganha o espaço público e xinga o poder carrega também sua parcela carnavalesca. Quem disse que o humor sardônico, por vezes destruidor e renovador, não alardearia o anúncio de uma nova era?

Pierre Rimbert é jornalista, autor de Libération, de Sartre à Rothschild (Paris, Raisons d'Agir Édition, 2005).

1 Mikhail Bakhtine, L’Oeuvre de François Rabelais et la culture populaire au Moyen Age et sous la Renaissance, Gallimard, “Tel”, Paris, 1982. Salvo mencionado em contrário, todas as citações que se seguem são extraídas desta obra.
2 André Belleau, “Carnavalesque pás mort?”, Etudes françaises, vol. 20, nº 1, 1984, p. 40.
3 Ler Jacques Lê Goff, “Rire au Moyen Age”, Les Cahiers du Centre de Recherches historiques, nº 3, 1989.

Le Monde Diplomatique Brasil

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