14 de março de 2010
A Filosofia é o reconhecimento de uma margem e, tanto quanto o tempo, excede o calendário e está sempre presente
Falar de um começo da Filosofia não é outra coisa que delimitar suas margens. A primeira com que nos deparamos, quando nosso pensamento segue a regra da causalidade, é a do tempo histórico. Tudo há de ter um começo, um início e um efeito que lhe suceda. Os críticos desta noção dirão que os fatos transcendem o tempo linear da história, que esta é como uma teia visivelmente esburacada. Eles têm razão, pois o tempo é maior e mais complexo do que nosso modo de explicá-lo, assim como as experiências nele agregadas e não catalogáveis pelo esquema cronogramático de passado-presente-futuro. A Filosofia, tanto quanto o tempo, excede o calendário e se diz como uma potência sempre presente.
Porém, ainda que o pensar a que chamamos Filosofia esteja em muitos aspectos para além do calendário – em nossa experiência cotidiana e individual, quando nos exercitamos na reflexão sobre as coisas, deixando que memórias, sensibilidades, e fatos não-colecionáveis, redijam narrativas internas ou compartilháveis – este pensar é também obra do/no tempo, e chamamos história o que nele se fez e se faz aparecer. É certo que sempre muito se perde. A história é apenas uma marca, uma escrita, um recorte. Do mesmo modo o começo da Filosofia é apenas o reconhecimento de uma margem.
É preciso compreender o estatuto desta demarcação para evitar o fastio do proselitismo. Perguntamo-nos neste gesto pela Filosofia Oriental, pela Filosofia Africana, pela Filosofia Latino-americana. O que precisamos questionar aqui é o que estamos a chamar Filosofia que permanece dita nestas determinações geográficas citadas. Nelas o F maiúsculo permanece a notar uma dimensão substantiva. A pergunta que deve nascer desta última decidirá sobre o valor e a importância desta nomeação: de que nos serve, afinal, chamar Filosofia a uma forma específica do pensamento nascido na Grécia antiga em cerca de 6 a.C. e negar tal definição a outras culturas ou elaborações culturais? Será preciosismo antidemocrático, será reserva de mercado?
Todavia, se pensamos este começo como uma determinação da margem tudo se torna diferente. Avançamos na análise genealógica da nomeação Filosofia e descobrimos a herança cultural nela inaugurada. A margem não é um muro, nem uma cerca de fios elétricos que impede a passagem dos indesejados, sejam eles espiões ou assaltantes, incautos ou curiosos. Margem não é fronteira; é limite maleável onde podemos penetrar. Lugar aberto no qual podemos avançar para passeios, refúgio ou para construir morada.
A margem nos faz saber tanto da água quanto do solo. Na margem de um rio podemos sempre nos banhar na água, molhar os pés, e só podemos fazê-lo porque há o solo ao qual voltar para firmar os pés. Se não entramos na água não sabemos dela. Se nela ficamos somos afogados. A Filosofia tomada como margem define que a natureza da racionalidade com que ela realiza sua experiência é a do limiar entre mundos que avançam para além da geografia e do tempo: a segunda margem é a que há entre certeza e dúvida, entre razão e sensibilidade, entre individualidade e política. Para fazer valer a metáfora: a Filosofia não é nem o de dentro nem o de fora, mas o exercício do Estado de Limiar que é próprio ao pensamento, misto de corpo e espírito, de experiência e transcendência.
Os gregos sabiam dessa margem. Metafísica era o nome ainda não pronunciado até Andrônico de Rhodes. Ela reunia o Bem, o Belo e o Verdadeiro, depois separados em disciplinas como Ética, Estética e Lógica. Mas a Filosofia, em seu começo, era uma unidade só. Unidade das disciplinas ainda não nomeadas que refletia a unidade da Pólis, a Cidade grega, na Unidade do Cosmos, a ordem além do humano, ou o que chamaram Physis e que também traduzimos por natureza, na unidade do Ser, o que existia, o que era e não podia ser negado. Este pensar da integração das coisas, das semelhanças e diferenças (que em Pitágoras teve o nome técnico de vida contemplativa e em Platão renovou-se como Diá-logo) que podiam ser compreendidas, era a característica inicial do pensamento inaugurado como Filosofia.
A Filosofia nascida com os gregos permanece até hoje como o campo específico onde a racionalidade encontrou uma ou várias formas que se desfazem e refazem ao longo do tempo. Os gregos foram os que primeiro se deram conta do potencial humano para a razão decidindo-se a enfrentá-lo. O nome do elemento que permitiu que existisse a Filosofia entre eles era Logos que, como perigoso veneno contra as convenções, levou Sócrates à morte. Sua atitude era a da dúvida que sempre acompanha a Filosofia. A dúvida quanto à explicação do mito, à influência da tragédia, ao poder dos deuses: o nome próprio da crítica que desajusta as crenças. Dúvida que sempre elimina todo fundamentalismo ao retirar-lhe o chão de sob os pés, a instaurar em seu lugar as pontes entre o que vemos e o que nos é mostrado. Chamar de Filosofia o saber em torno do Logos e o saber produzido por ele foi o modo de chamar a atenção para esse potencial crítico que, à época, foi instrumento de uma revolução.
Os filósofos se negavam a ser simplesmente sábios. Negavam o saber que se dava ares de dádiva. A Filosofia não era mito, não era poesia, não era tragédia, não era religião, não era retórica. Nem era iluminação, nem inspiração. Era a negação nascente de todo dogma e de toda resposta aceita, de toda ilusão, de toda encenação que acobertasse o fio cortante do Logos. A capacidade de linguagem e razão do humano que se realizava como dever saber, tal era o que significava sua busca, já era o trabalho da compreensão que exige a palavra autocrítica para alcançar a verdade. O amor ao saber era compromisso. A verdade seria o magma encontrado após a retirada de todos os véus, o que equivalia a negar com veemência a explicação já dada e avançar na pergunta.
O exercício do Logos ligava-se a Eros como desejo de saber, e, muito mais, ao compromisso com o saber, o sentido mais acurado da Philia grega, a amizade como implicação de vidas. Filósofos eram aqueles que buscavam o saber no ato conjunto do Diá-logo. A Filosofia primeiro foi especulação sobre o sentido último das coisas (Metafísica), foi descoberta da reflexão sobre a ação (Ética), mas foi, sobretudo, diálogo, ou seja, experiência de encontro de diferenças em torno da linguagem (o nome mais próprio do Logos), de suas possibilidades, da atitude crítica e luminosa que ela fazia nascer. A experiência da Filosofia era devedora da Democracia como partilha no campo do saber. Só a Filosofia seria capaz de manter o seu sentido.
O que nasceu Filosofia permanece como algo originário na Filosofia de hoje que nos obriga sempre a uma retomada genealógica. Ela é diálogo como ação crítica e reconstrutiva do sentido do estar junto do outro: a experiência política genuína.
Marcia Tiburi é filósofa, autora e organizadora de livros sobre o tema, entre eles As mulheres e a filosofia (Editora Unisinos, 2002) e O corpo torturado (Escritos, 2004) e também do romance Magnólia (Bertrand Brasil, 2005). É apresentadora do programa de debates Saia Justa, do canal de TV pago GNT
Revista CULT
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