quinta-feira, 9 de setembro de 2010

Monumentos ao "Segundo Sexo" de Simone de Beauvoir


Monumentos ao "Segundo Sexo" de Simone de Beauvoir

Joana Maria Pedro
Professora do Departamento de História da Universidade Federal de Santa Catarina. joanamaria.pedro@gmail.com



Os dois livros aqui resenhados situam-se dentro das comemorações do cinqüentenário da publicação da obra de Simone de Beauvoir – O Segundo Sexo –, o primeiro, uma coletânea de artigos de diversas autoras discutindo os capítulos que compõem a obra de Simone de Beauvoir e o segundo uma coletânea de documentos da época da publicação da primeira edição do livro de Beauvoir. As obras foram publicadas em 2004 por duas editoras de Paris e dirigidas por Ingrid Galster, professora de literatura francesa, espanhola e hispano-americana da Univertität Poderborn, na Alemanha, e especializada no impacto da obra de Simone de Beauvoir no contexto alemão; autora, também, de inúmeros textos sobre Jean-Paul Sartre.

Estes livros não são os únicos que focalizam o cinqüentenário do Le Deuxième Sexe. Desde 1999, passaram a ser publicadas edições comemorativas, algumas delas, resultados de colóquios. No Brasil, em 1999, a revista Cadernos Pagu, em seu número 12, publicou um dossiê intitulado "Simone de Beauvoir & os feminismos do século XX" (Corrêa, 1999). Em 2000, o Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre a Mulher, da Bahia, publicou a coletânea Um diálogo com Simone de Beauvoir e outras falas (Motta et alii, 2000). Na França, Sylvie Chaperon (2000) publicava Les années Beauvoir (1945-1970) e, em colaboração com Christine Delphy (2000), a coletânea Le Cinquantenaire du Deuxiéme Sexe. No Canadá, Cécile Coderre e Marie-Blanche Tahon (2001) publicaram Le Deuxième sexe. Une relecture en trois temps, 1949-1971-1999.

O primeiro livro desta resenha foi resultado do colóquio "Pour une édition critique du Deuxième Sexe" – realizado entre 10 e 13 de novembro de 1999, na Université Catholique d'Eichstätt, na Baviera – é composto de trinta e dois capítulos, um anexo e um prefácio, escritos por diversas analistas, de diferentes países; algumas são conhecidas internacionalmente no campo do feminismo. As autoras1 tomam como base de análise o manuscrito de O Segundo Sexo, depositado na Biblioteca Nacional da França, para discutir cada capítulo desta obra de Beauvoir. As analistas são especialistas em biologia, história, psicanálise, antropologia, sociologia, psicologia, literatura, criminologia, filosofia e medicina. A tarefa solicitada pela coordenadora, e exposta na "Apresentação", era a de inserir o texto em análise no contexto da época, tendo como abordagem a hermenêutica de Gadamer. Deveriam, também, reconstruir as questões às quais o livro tentava responder; perceber qual a posição do texto diante do conhecimento da época; avaliar se era ou não avançado para o seu tempo; observar, entre outras questões, quais as fontes que foram usadas.

As analistas foram convidadas a conhecer o manuscrito e compará-lo com o livro e, em alguns casos, com o que foi publicado em Les Temps Modernes.2 Nem todas, entretanto, fazem essa comparação, mesmo porque os manuscritos estão incompletos, conforme aponta Catherine Viollet. Esta analista apresenta, no anexo, uma descrição do manuscrito, mostrando as diferenças em relação ao livro e ao que foi publicado na revista citada, assim como as palavras que foram modificadas por quem datilografou os originais.

Os capítulos são desiguais, e nem todas as analistas seguiram, fielmente, os parâmetros definidos pela diretora da obra. Ao colocar o capítulo em análise no contexto da época, algumas mostraram qual era a discussão, quais os jogos de poder, quais disputas havia na época. Várias delas lembram, por exemplo, a importância da leitura realizada por Beauvoir da obra de Lévi-Strauss, destacando que esta leu os originais na própria casa do autor, e ainda fez uma resenha do livro.3 Fazem este destaque analistas como Michele Le Doeuff, Nicole-Claude Mathieu, Françoise Héritier, Annette Lavers, Claudia Opitz.

Algumas autoras enfatizam o debate no interior do qual o livro pode ser inserido, como é o caso de Doris Ruhe que, ao analisar o capítulo XII, "A Mística", relaciona a forma como a autora apresenta a personagem nesta parte do livro e a que se observa no capítulo sobre a história, mostrando a diferença de tratamento. Focaliza os debates entre religião e ciência dos anos vinte, que creditavam aos progressos da ciência as possibilidades de fortalecimento do estado laico. O texto de Cécile Coderre e Colette Parent, "Prostitutas e Hetaíras", destaca os debates sobre a prostituição na França nos anos quarenta, época dos confrontos entre abolicionistas e regulamentaristas.

Ao destacar o estado do conhecimento da época, as autoras enfatizam aquilo que consideram que faltou na obra: o que a autora deveria ter lido; o que estava disponível e não foi lido. Algumas delas questionam a leitura realizada. Este é o caso, principalmente, das referências feitas a Freud e seus herdeiros. Várias analistas mostram que havia, em Beauvoir e em Sartre, um certo "anti-freudismo", e afirmam que a autora não teria lido as últimas obras de Freud, na qual este reviu vários de seus conceitos. Esses questionamentos são muito fortes em Marie-Andrée Charbonneau, Doris Ruhe, Marie-Christine Hamon, Annik Houel. Esta última autora enfatiza suas críticas dizendo que Beauvoir apropriou-se do que havia de pior em Freud, não acompanhando as revisões do autor motivadas pelas críticas de suas discípulas. Questiona, inclusive, o fato de Beauvoir não ter lido e citado estas discípulas (283).

Há, nos textos, muitas referências a uma escrita misógina, como faz Annik Houel, e de demonstração de desprezo pelo que representa o "feminino", como em Anne-Marie Sohn. São pinçadas, pelas analistas, frases e trechos do texto, onde o que é relacionado aos homens é mais valorizado do que o que é atribuído às mulheres. Por outro lado, algumas autoras se posicionam em defesa do texto de Beauvoir, discutindo com as críticas. Hazel E. Barnes, no capítulo "A Lésbica", faz um levantamento das críticas existentes sobre a forma como Beauvoir representou-as, argumentando que algumas dessas críticas são equivocadas, outras se justificam. Entretanto, reforça o contexto do livro, mostrando que esta não era uma discussão da época. Conclui que a autora antecipou, em meio século, as discussões sobre este assunto.

A autora que faz um dos capítulos mais elogiosos é Kate Millet. Ela atribui ao O Segundo Sexo a trajetória de sua vida e afirma que o livro é uma obra de arte. Duas analistas, Elisabeth Badinter e Doris Ruhe, afirmam que a obra não tem cunho científico – é um ensaio. Esse argumento é usado na tentativa de justificar aquilo que as autoras consideram como equívocos, falta de informações, enfim, erros do livro. Mas, como mostra Françoise Héritier, a autora não pretendeu fazer uma obra de erudição em todos os domínios. Elisabeth Badinter, afirma que aí se encontram "intuições fulgurantes habilmente exploradas" (363). Convém destacar, entretanto, que a linguagem de Beauvoir era acadêmica. Os testemunhos da época, constantes do outro livro desta resenha, tinham clareza disto, fosse pra criticar ou para enaltecer.

Outra crítica séria vem de duas autoras – Margarete Mitscherlich e Hazel E. Barnes – que abordam a discussão da negação de Beauvoir, em entrevista a Alice Schwarzer, de que tenha tido alguma relação lésbica em sua vida, desmentida, posteriormente, pelas cartas e pelos diários de Beauvoir. As analistas tentam entender os motivos que a levaram a negar.

As mais fortes críticas ao texto são em relação às fontes. As analistas citam: 1) a sua pobreza, ou seja, haveria muito mais informações disponíveis na época e que não foram usadas. É o que sugerem Hazel E. Barnes e Elisabeth Badinter; 2) não cita e nem critica a historiografia que usa, como informa Claudia Opitz; 3) quando cita, não faz a crítica da fonte devidamente, reproduzindo mitos, como argumentam Pauline Schmitt Pantel e Beate Wagner-Hasel; 4) cita frases de autores famosos, sem mencionar a fonte, com o agravante de que se desconhece a existência dessas frases nas publicações desses autores. Esta é a crítica de Margarete Zimmermann em relação a uma citação atribuída a Pitágoras; uma outra, apontada por Margarete Mitscherlich, é atribuída a Nietsche; 5) não apresenta informações corretas sobre as obras citadas, constatam Anne-Marie Sohn e Françoise Collin; 6) comete equívocos ao colocar o título das obras que cita, afirma Marie-Andrée Charbonneau. Ou seja, as analistas constatam a despreocupação com o rigor das fontes. Entretanto, concordo com Françoise Héritier: não era comum, na década de 40, o rigor exigido hoje nas citações em trabalho científico. Entretanto, esta parece ser uma questão que incomodou muito as autoras da coletânea.

Através do recurso às cartas, ao diário e às obras autobiográficas, algumas autoras tentam explicar a escrita de Beauvoir por fatos de sua vida, uma espécie de projeção no texto das relações vividas. Assim, Pauline Schmitt Pantel e Beate Wagner-Hasel argumentam que a representação das hetaíras é anacrônica, e talvez uma representação de si mesma; Claudia Opitz vê, em O Segundo Sexo, uma espécie de auto-biografia; Cristof Weiand acredita que o elogio que ela faz ao escritor Stendhal é uma espécie de homenagem a Sartre; Annik Houel sugere que, se a mãe de Beauvoir já tivesse falecido por ocasião da escrita do livro, a autora não teria escrito de forma tão dura sobre a relação entre mãe e filha.

Convém, ainda, salientar o que as autoras dizem sobre o caráter inovador do livro. Para as historiadoras Pauline Schmitt Pantel e Beate Wagner-Hasel, a obra é inspiração e não fonte historiográfica para se conhecer a história da mulher na antiguidade. Outra historiadora, Claudia Opitz, afirma que a noção de história de Beauvoir é a-histórica e, por isso, as historiadoras resistiram tanto ao livro. Personagens importantes para a História das Mulheres, como Michelle Perrot, por exemplo, não a citava. Entretanto, Elizabeth Fallaize e Annette Lavers referem-se ao método de análise literária de Beauvoir como inovador, e que a autora não tem sido devidamente reconhecida como tal; a segunda analista aponta, inclusive, que O Segundo Sexo antecedeu e influenciou a metodologia de Barthes. Ainda, Susan Rubin Suleiman afirma que criou um método crítico – uma hermenêutica literária totalmente nova, nem sempre reconhecida pelas herdeiras de Beauvoir. Pergunta o porquê dessa "ingratidão". Conclui que a força de uma idéia é atestada pelo fato de que se costuma esquecer a origem dela. Crê que foi isto que ocorreu.

Essa coletânea de textos escritos por renomadas feministas de diversos países é um livro "monumento" e se completa com a outra obra desta resenha, também organizada por Ingrid Galster, Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Neste livro, em 365 páginas, é apresentada uma coletânea de documentos que contam a história do impacto da publicação do artigo "A iniciação sexual da mulher", em maio de 1949, na revista Les Temps Modernes, e da obra O Segundo Sexo. São, aí, reproduzidos os debates – sobre este artigo –, promovidos pelo escritor François Mauriac no jornal Le Figaro entre 30 de maio e 6 de junho de 1949. O escritor perguntava às pessoas envolvidas com literatura, na época, se elas acreditavam que o recurso sistemático nas Letras, às forças instintivas, à demência e à exploração do erotismo, constitui um perigo para o indivíduo, para a nação e para a própria literatura; e que certos homens, certas doutrinas são responsáveis por isso?

O livro traz, então, quarenta respostas para essa enquete publicada pela imprensa. Acompanham, ainda, 34 resenhas e artigos tratando de O Segundo Sexo, publicados entre abril de 1949 e abril de 1951. Constam, também, lembranças, testemunhos e reações diversas. No final da coletânea, há informações sobre cada autor que se envolveu nas discussões sobre O Segundo Sexo à época, seja no debate com François Mauriac, seja escrevendo resenhas ou dando testemunhos. São fornecidas também informações sobre os periódicos que publicaram resenhas e comentários ao livro.

As coletâneas focalizam dois períodos de recepção da obra: 1949 – quando foi publicada pela primeira vez –, e cinqüenta nos depois. As diferenças são definidas pela história e diversidade do campo feminista. Estas duas obras permitirão, certamente, comparações preciosas para a história desse movimento. Por isso, podem ser pensadas como "monumentos", configuradas pelas relações de força de sua época. Ajudam-nos a lembrar e nos surpreender com o escândalo que o livro provocou, e das exigências que, muitas vezes de forma anacrônica, fazemos à principal personagem dessa história. Atualmente, o que Simone de Beauvoir escreveu já não nos escandaliza da mesma maneira, sendo, até, alvo de críticas, dentro do próprio campo onde foi mais lida. Certamente, como lembra Ingrid Galster no seu prefácio (15), aprendemos à lição. Vivemos num tempo que transformou o livro O Segundo Sexo em "outro".

Referências bibliográficas

CHAPERON, Sylvie. Les années Beauvoir (1945-1970). Paris, Fayard, 2000.

CODERRE Cécile et TAHON Marie-Blanche. Le Deuxième sexe. Une relecture en trois temps, 1949-1971-1999. Montréal, Les Éditions du Remue-Ménage, 2001.

CORRÊA, Mariza. (org.) cadernos pagu (12) – Simone de Beauvoir & os feminismos do século XX –, Campinas, Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, 1999.

DELPHY, Christine e CHAPERON, Sylvie. Le cinquantenaire du Deuxième Sexe. Paris, Syllepse, 2000.

GALSTER, Ingrid. (org.) Simone de Beauvoir: Le Deuxième Sexe. Le livre fondateur du féminisme moderne en situation. Paris, Éditions Champion, 2004.

_________. (org.) Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Paris, Presses de l'Université Paris-Sorbonne, 2004.

MOTTA, Alda Britto da, SARDENBERG, Cecília e GOMES, Márcia. (orgs.) Um diálogo com Simone de Beauvoir e outras falas. Salvador, NEIM, 2000.

Resenha dos livros organizados por Ingrid Galster Simone de Beauvoir: Le Deuxième Sexe. Le livre fondateur du féminisme moderne en situation e Le Deuxième Sexe de Simone de Beauvoir. Esta resenha, em francês, está no prelo da revista Clio – Histoire, Femmes et Sociétés
1 Há apenas um homem entre as pessoas que publicam artigos na coletânea. Trata-se de Cristof Weiand (241-255). Diante disto, optei por usar o feminino na referência a pessoas envolvidas nesta coletânea.
2 Esta revista foi publicada a partir de outubro de 1945 pela editora Gallimard, de Paris. Tinha como diretor fundador, Jean-Paul Sartre. Esta revista foi publicada em outras editoras, como a Julliard (jan 1949-set 1965) e a Presses d'Aujourd'hui (oct 1965-mars 1985). A partir de abril de 1985, a Editora Gallimard retomou a publicação, mantendo-a até hoje.
3 Simone de Beauvoir fez uma resenha do Structures Élémentaires de la Parenté, para a revista Les Temps Modernes (ver p.91).
Cadernos Pagú

Um comentário:

disse...

Meio feminista do jeito que eu sou provavelmente vou procurar o livro para ler rs
http://apcanal1.blogspot.com/2010/09/melhor-lugar-para-fazer-sexo.html