Judaísmo e heresia
Eber Cimas Ribeiro Bullé das Chagas*
Eber Cimas Ribeiro Bullé das Chagas*
No início do século XIII, vemos na Europa Ocidental um desenvolvimento visível através da urbanização, da expansão do comércio e da manufatura, a afirmação das línguas romances, o nascimento das Universidades e o fortalecimento das monarquias.
Nesta época, a Igreja sofria críticas em relação às contradições de sua instituição, além de concorrer com os outros poderes estabelecidos na Europa. Entre os inúmeros problemas enfrentados pela Igreja nessa época, podemos destacar: a simonia, o nicolaísmo, o desenvolvimento da piedade laica, a transformação da Cruzada em um veículo de afirmação e conflitos políticos e principalmente o crescimento dos grupos heréticos.1
Com a ascensão ao papado de Inocêncio III, vemos uma mudança gradativa da antiga política agostiniana de preservação física dos judeus e por conseguinte a tentativa de equiparar o judaísmo à heresia. Foi Inocêncio III, quem decretou, no Concílio Lateranense de 1215, a introdução de uma marca distintiva para os judeus, para que pudessem ser reconhecidos e separados dos cristãos. Entre outras queixas de Inocêncio III contra os judeus estavam: a acusação de usura, o de possuir criados cristãos e o temor dos teólogos cristãos que viam no judaísmo uma ameaça, pois os cristãos medievais podiam achar o judaísmo atraente.
Essa tentativa de equiparar o judaísmo em heresia é incentivado e conta com a participação das Ordens Mendicantes, pois começam a empreender estudos das literaturas judaicas, tentando extrair dos ensinamentos um teor herético do Talmude (não se trata de um livro, mas uma biblioteca, abrangendo muitos séculos de ininterrupta experiência religiosa judaica, toda centrada nas Escrituras, porém interpretando-as à luz das mudanças das condições históricas). Destacamos que com o investimento de tempo das Ordens Mendicantes ao estudo do Talmude, o
judaísmo passa de uma religião fossilizada do Antigo Testamento, para uma religião herética, começando a tendência de conscientizar os cristãos para a discrepância entre a religião dos judeus do século XIII e os judeus do Antigo Testamento.
Um dos instrumentos usados pelas Ordens Mendicantes para vincular o judaísmo à heresia eram os Debates Judaico-Cristãos realizados na Idade Média, no qual nós temos registros de três: o Debate de Paris em 1240, o Debate de Barcelona em 1263 e o Debate de Tortosa em 1413-1414. Desses três debates, privilegiarei nessa comunicação o Debate de Barcelona devido a alguns fatores:2 o Debate de Barcelona foi um verdadeiro debate, diferente do Debate de Paris, que foi mais um Interrogatório e o que estava em julgamento não era o judaísmo, mas sim o Talmude. O Debate de Tortosa poderia ser considerado um debate, pois abordaram os mesmos assuntos do Debate de Barcelona, mas o que distingue do Debate de Barcelona, era a intimidação sobre os debatedores judeus, pois estes temiam pela segurança de suas famílias e eram submetidos a longos sermões exortatórios e ouvidos com pouca consideração.
O Debate de Barcelona pode ser considerado como o maior confronto intelectual entre o Cristianismo e o Judaísmo ocorrido na Idade Média. Houve, neste debate, liberdade de expressão, devido à personalidade do Rei Jaime de Aragão, que presidiu o evento, dando garantia de liberdade de expressão ao participante judeu Moises Nahmânides, este por sinal, herdeiro das academias da Babilônia, possuindo a percepção filosófica da escola de Maimônides e a sutileza da escola francesa de Rash. Nahmânides, também foi responsável pelo relato posterior ao debate, diferente dos outros debates, que foram relatados por pessoas de capacidade intelectual menor.
Esse embate entre cristãos e judeus em Barcelona, realizou-se num momento decisivo da história judaica, pois o movimento dominicano havia sido fundado há pouco e a Inquisição começava a mostrar sua força. Foi quando os dominicanos convocaram o mais famoso rabino, Nahmânides, para um debate, e o fizeram na mais pura cortesia e persuasão.
O objetivo do Debate de Barcelona, diferente do Debate de Paris, não era condenar e sim converter, ou seja, em vez de destruir o Talmude, o oponente de Nahmânides, Pablo Christiane, um judeu convertido ao Cristianismo, queria provar a partir do Talmude, a verdade do Cristianismo. Notemos aqui, que esse objetivo de converter os judeus, obrigando-os a aceitar a "Verdade do Cristianismo", já denota a mudança da política agostiniana de preservação física dos judeus, para uma intensificação das atividades conversoras.
Pablo Christiane,3 discípulo do rabi Eliézer de Tarascon, converteu-se ao cristianismo e entrou para a Ordem dos Dominicanos, passando a pregar sermões com objetivos de conversão. Encarregado por Raymundo de Peñaforte para ensinar hebraico aos dominicanos que se dedicavam a atividades missionárias junto aos judeus. Foi também protegido de Luis IX da França e através de sua sugestão que o Rei da França instituiu o "emblema judaico" (sinal segregativo, estabelecido como mecanismo físico de diferenciação judaica) em 1269.
Entre os assuntos debatidos em Barcelona estão: a importância do Messias no judaísmo, sobre a natureza Messiânica, a atitude dos judeus em relação aos outros povos, a atitude dos judeus com relação ao "pecado original", o lugar da Razão na Religião e a relação entre a Agadá (material narrativo e homilético) e Halahá (material legal), inserindo aqui a questão da Trindade.
Após o Debate de Barcelona, existiram dois relatos do evento: um judaico de autoria de Nahmânides e outro cristão. O relato cristão dá a versão da vitória esmagadora dos cristãos e a derrota humilhante dos judeus. Sobre o relato de Nahmânides temos algumas análises de alguns
estudiosos: Ytzhak Baer, faz críticas ao relato de Nahmânides, duvidando das respostas dada por este aos cristãos, levando em consideração o clima de violência no ar; o de Cecil Roth, no qual afirma que o relato tenta evitar o clima de contenda e de controvérsias judaicas e que no debate não existiu batalha entre o judaísmo e o cristianismo; e o de Martin A. Cohen, no qual afirma que não confiava no relato de Nahmânides, pois para ele, o Debate de Barcelona foi planejado pelos Dominicanos, então os assuntos debatidos seriam somente aqueles que os cristãos levassem vantagens.
As tentativas de Baer, Roth e Cohen, de diminuir a estatura de Nahmânides, no Debate de Barcelona e posteriormente o seu relato, no nosso entender devem ser consideradas frustradas, pois diferente de outros relatos, o relato de Nahmânides foi feito por solicitação do bispo de Gerona, Pedro de Castellnou. Portanto é altamente improvável que Nahmânides, tivesse escrito algo que exaltasse a sua pessoa ou ao judaísmo, pelo contrário, tentou escrever o mais imparcialmente possível, pois seu relato logo seria lido pelos dirigentes dominicanos.
Outro fato que corrobora ao relato de Nahmânides, quando os dominicanos se queixaram do relato ao rei Jaime de Aragão, de que o relato continha blasfêmias que haviam sido proferidas no curso do debate e não reclamaram de novas blasfêmias acrescentadas no relato.
Esses debates, de acordo com Jeremy Cohen,4 era parte de um vasto padrão de atividade conversora, que se inicia no século XIII, que tem a influência do apocalipsismo, característica desse século, e que a política agostiniana, era encarada como solução provisória, que poderia ser revogada se algum dia se suspeitasse que o Fim dos Tempos estivesse próxima.
Importante destacarmos, que a partir do século XIII, houve a intensificação dos estudos ao Talmude pelas Ordens Mendicantes, porém de acordo com a historiadora Renata Rozental Sancovsky, em sua dissertação de mestrado,5 o Talmude já era objeto de condenação desde o século VI d.C.
A imputação de heresia sobre o judaísmo, trouxe aos judeus para o raio de ação da Inquisição. Esta não tinha jurisdição sobre os judeus, mas teve sobre aqueles judeus que promoviam idéias heréticas, principalmente após a intensificação ao estudo do Talmude. Aqueles que repudiavam o Talmude, o velho compromisso agostiniano continuaria válido.
Essa nova visão dos cristãos em relação aos judeus, teve dois efeitos práticos para os judeus: ou se convertiam ou eram expulsos, pois estes, não tinham lugar na sociedade cristã.
* Graduando do curso de História da Universidade Gama Filho.
1 LE GOFF, Jacques. O Maravilhoso e o Quotidiano no Ocidente Medieval. Lisboa: Edições 70, 1985.
2 MACCOBY, Hyam.O Judaísmo em Julgamento: Os Debates Judaico-Cristãos na Idade Média. Rio de Janeiro: Imago, 1996.
3 Ibid. p. 86.
4 COHEN, Jeremy. The Friars and the Jews: The Evolution of Medieval Anti-Judaism. Ithaca-Londres: Cornell University Press, 1982.
5SANCOVSKY, Renata Rozental. De Discretione Iudaeorum: Relações entre Episcopado e Cultura Rabínico-Talmúdica na Península Ibérica Visigoda. Século VII. Rio de Janeiro, RJ, 2000.
Dissertação (Mestrado em História Social). Programa de Pós-graduação em História Social do Instituto de Filosofia e Ciências Sociais, UFRJ.
Atas da V Semana de Estudos Medievais UFRJ
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