Ana Paula Tavares de Magalhães
Pós-graduanda Depto. de História-FFLCH/USP
BRAET, Herman e VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. tradução Heitor Megale, Yara Frateschi, Maria Clara Cescato. São Paulo, EDUSP, 1996.
(Ensaios de Cultura 8)
Quando, entre o pasmo e o encanto, admiramos uma daquelas obras de Hieronymus Bosch, como O Juízo Final ou O Jardim das Delícias, em pleno ocaso do século XV e da própria Idade Média, adentramos um mundo regido pelas leis de um poderoso inconsciente, repleto de símbolos que ameaçam adquirir existência e estatuto independentes; são imagens que transbordam sua condição de representação para reivindicar um logus específico no mundo real. De res-to, Bosch foi considerado um surrealista avant la lettre, trazendo à tona, pelos meios da pintura, todo um inconsciente, manifesto através de ícones tão maravilhosos quanto aterrorizantes. Na verdade, tal ponto de vista não pode deixar de ser, senão anacrônico, ao menos inexato. Bosch é um pintor de seu tempo; um homem medieval (existem linhas de estudo que sustentam sua ligação a uma heresia, a dos Irmãos do Livre Espírito, e isso reforçaria ainda sua pertença àquele meio). Seus temas religiosos evidenciavam a imanência do desconhecido, daquilo que está por vir ou que está por se fazer conhecer. Suas telas traduziam um inconsciente coletivo marcado pelo desespero, pelo terror diante da morte que se avizinhava, seja pela finitude inerente ao ser humano, seja pelo topos medieval da proximidade do Apocalipse.
O tema da morte, enquanto parte da estrutura das mentalidades da Idade Média, vem atraindo cada vez mais estudiosos, seja pela riqueza do tema em si, seja pela possibilidade de, a partir dele, desvendar-se toda uma realidade material e mental subjacente. Segundo Pierre Chaunu, o momento do transitus viabiliza o desenvolvimento de toda uma rede que articula as diversas esferas da sociedade humana, o que privilegia um tratamento interdisciplinar1. Dessa forma, a morte pode ser tomada em seus aspectos mais concretos, procurando-se alinhá-la às flutuações de conjuntura processadas ao longo de um período; em seus aspectos de sociabilidade, compreendendo as relações inter-humanas que têm lugar no momento dos ritos; em seus aspectos semióticos, analisando os registros sobre a morte legados pela sociedade.
Com esse propósito, o Instituut voor Middeleeuwse Studies da Katholieke Universiteit Leuven organizou, entre 21 e 23 de maio de 1979, o Colóquio Internacional em torno do tema "A Morte na Idade Média". A Leuven University Press editou em 1982 o volume relativo às conferências, sob o título Death in the Middle Ages, organizado por Herman Braet e Werner Verbeke. A edição brasileira apareceu somente em 1996, pela Edusp, traduzida por Heitor Megale, Yara Frateschi Vieira e Maria Clara Cescato, sob o título A Morte na Idade Média. Tratase de um volume com 320 páginas, distribuídas entre um Prefácio, quatorze artigos, um índice onomástico e um índice referindo as fontes manuscritas.
Michel Vovelle lança as primeiras reflexões a respeito da história da morte, em texto intitulado "A história dos homens no espelho da morte". Título de efeito, ao cabo do qual seguem-se algumas linhas sustentando a posição segundo a qual a morte funcionaria como um termômetro da sociedade, e a maneira como os homens se comportam em relação a esse dado "refletiria" a história de suas próprias vidas (e daí a pertinência da metáfora do título). A seguir, estabelece algumas considerações, que fornecem subsídios para a compreensão da problemática da morte através de todo o livro. Seu pressuposto é aquele segundo o qual a morte admite três modalidades de exposição, que diferem quanto à perspectiva, porém são complementares entre si. São elas: a morte sofrida, à qual corresponderia o fato concreto da morte, avaliado mediante curvas de gráfico e consoante a realidade histórica do período em questão; a morte vivida, compreendendo as práticas rituais do homem frente à morte, o que nos remeteria a sistemas sociológicos e psicológicos; o discurso da morte, manifestando testemunhos tanto inconscientes quanto organizados sobre a morte. A morte é essa constante no universo humano, porém sempre filtrada pelas sociedades através dos tempos e locais. O problema opera em três níveis: o individual - já que vivê-la é apanágio de cada um, intimamente -, o social - visto que o fato de o indivíduo viver a morte de uma dada maneira implica a existência de determinados cânones que norteiam o comportamento do grupo - e o das representações de vez que esses cânones são veiculados através de certos discursos. Reconhece-se, portanto, a existência de uma morte psicológica inscrita numa dada consciência coletiva, que é necessariamente histórica e que é dada a conhecer sob a forma semiológica.
A mim, parece-me portanto possível identificar o conceito de morte sofrida a uma concepção histórica da morte; aquele de morte vivida a uma concepção psicológica (inscrita numa consciência coletiva); e finalmente, o discurso da morte a uma concepção semiológica. A ênfase situa-se nesta última, que integra e amplia as outras duas operando a sua transposição para o código escrito, e é tomada, no Prefácio, como um "criador de cultura"2. Observamos a retomada dessa classificação, muito embora segundo outras perspectivas, em texto de Gerhild Scholz Williams, intitulado "A Morte como texto e signo na literatura da Idade Média". Resgatando a temática amor-morte, temos a construção de um vínculo ambivalente: ele comporta os pólos destrutivo e construtivo onipresentes no indivíduo e no mundo. A temática manifesta-se na literatura conforme quatro perspectivas (aqui, ao que parece, à segunda perspectiva de Vovelle, equivaleriam - mas, note-se, não corresponderiam -a segunda e a terceira). Aqui nos é apresentada em primeiro plano uma perspectiva histórica da morte, aquela do cronista, que opera uma narratio objetiva e impessoal dos fatos; acrescentese a isso o topos comum da Baixa Idade Média da fusão da história do mundo com a história da salvação, resultando numa História que adquire um caráter escatológico. Uma perspectiva sócio-cultural desvenda-se na medida em que descobrimos que o herói literário espelha a sociedade à qual a narrativa se dirige. Uma perspectiva psicológica da morte, situase no choque e no desespero causado pela separação e pela ausência. Por fim, uma perspectiva semiológica integra as três primeiras para traduzi-la para seus próprios signos.
Em conformidade com aquilo que já enfatizava o Prefácio, os signos lingüísticos, conversores de uma realidade concreta noutra, não menos real, porém escrita, consistiram como que na linha mestra do Colóquio; haja vista os vários trabalhos presentes versando sobre aspectos literários, por meio da articulação do tema da morte a determinados autores: tal é o caso de Joël Saugnieux, tratando da obra do espanhol Berceo, na Espanha do século XIII; de Philippa Tristam, envolvida com o Conto do Echacorvos (The Pardoner's Tale); de Daniel Poirion, em relação a Maria de França; de Jean Charles Payen, e seu estudo a respeito do homo viator (ou seja, o cruzado) na poesia de Hélinand de Froidmont; de Jean Dufournet, analisando Commynes. Em todos os casos, afigurase como indelével uma semântica aportando elementos para a história das mentalidades, delimitando determinados conceitos inerentes ao cotidiano medieval, bem como a maneira de se pensá-los e de se utilizá-los; revelando toda uma concepção perpassada pela ética e pela moral cavaleirescas, inclinadas a visualizar a morte como passagem, a exemplo das cerimônias de iniciação, o que resulta na idéia do contemptus mundi, ou o desprezo do mundo fundamentado na idéia de que o fim último do destino humano é a preparação para a salvação; ou, como no caso de Commynes, pertencente à última geração de escritores medievais, marcados não somente por uma cronicidade da presença da morte em seus escritos, senão também por toques agudos e incisivos, compondo uma obra sutil e elegante. Uma fonte literária bastante profícua da Idade Média é aquela das lamentações fúnebres. Ao tratar das lamentações na langue d'oïl, Claude Thiry nos define o luto como uma ocasião a um tempo repetida e única, que se traduz numa reflexão sobre a natureza da morte, e busca abrir portas tanto àquele que se vai quanto àqueles que restam3.
Com base nos registros, os pronunciamentos bus-cam resgatar as condições da presença constante da morte a rondar o mundo do homem da Idade Média. Otto Gerhard Oexle, com seu escrito "A presença dos mortos", questiona-se sobre a origem dessa tradição, para contrapor duas hipóteses: conforme a primeira, a gênese estaria situada numa tradição germânico-pagã, na qual uma grande profusão de rituais por ocasião e continuamente após a passagem da morte teria por objetivo manter o morto afastado das circunvizinhanças dos vivos: essa forma de pensamento teria dado origem à concepção da figura do morto-vivo; a outra hipótese defende para a presença da morte uma herança dos cultos pagãos romanos, feitos em nome dos ancestrais como forma de veneração e de zelo pela sua boa manutenção. Philippe Ariès tratará do post mortem numa viagem através dos textos litúrgicos ao longo de toda a Idade Média, trabalhando o tema da morte-descanso. As considerações incidem sobre um "tempo de espera", presente na literatura da Alta Idade Média, que paulatinamente evolui para o conceito de Purgatório, que ganharia força e se cristalizaria definitivamente. Joseph Avril desenvolve estudo acerca das pastorais destinadas a auxiliar doentes e a cuidar dos preparativos para um bem-morrer. É um traço marcante da sociabilidade medieval a composição de sociedades alicerçadas em fortes laços de solidariedade mútua, num tempo em que o desespero frente a face da morte faz com que os homens queiram cercarse de cuidados visando à salvação da alma; nesse sentido, eram encomendadas preces a amigos e a clérigos -em especial monges - que não só por ocasião da morte, mas também de forma contínua após esta, encarregavam-se de assegurar, por meio dos obséquios, o quinhão de bem-estar da alma partida.
Uma profusão irrefreável de cuidados de que se buscava cercar a morte colocava-a como fato pontual, urgente, situado na ordem do dia. A morte era vista como uma realidade concreta sempre imanente. A convivência com essa realidade tornava-se tanto mais intensa quanto mais avançava a idade, e então sentiase a premonição do fatum que se tornava latente. Rolf Sprandel escreve sobre a dualidade de interpretação da velhice, circunscrevendo o tema à exegese bíblica da Baixa Idade Média. A velhice, aprioristicamente relacionada ao medo da morte, carrega em si toda a carga de um indesejável, de uma contingência contra a qual nada se tem a fazer; por outro lado, justamente em virtude desse caráter inevitável e inexorável da proximidade do ocaso, em função de uma tomada de consciência da finitude, a velhice passa a ser encarada como uma conquista de poucos, aqueles que souberam reger suas vidas nos melhores moldes; a tarefa que se impõe, a partir de então, está carregada de um conteúdo moral: cabe preparar-se para a morte, despojar-se da vida antes mesmo de deixá-la, pautandose por um comportamento exemplar, prelúdio da salvação. Lamentavelmente, devemos assinalar nesta oportunidade um certo equívoco na tradução, que pode resultar no comprometimento da leitura do texto. O engano diz respeito à tradução para o português do termo alemão spätmitterlalterlichen como Alta Idade Média. A tradução correta é Baixa Idade Média, tal como se pode deduzir do conteúdo do artigo, que tem por referências espaço-temporais a Universidade de Paris e a metade do século XII. Advertimos, portanto, para que, em lugar de "A velhice e o medo da morte de acordo com a exegese bíblica na Alta Idade Média", leia-se como título do aludido texto "A velhice e o medo da morte de acordo com a exegese bíblica na Baixa Idade Média"4. A mesma advertência vigora para o procedimento de leitura do texto, na qual recomenda-se, na medida em que ela apareça, substituir a expressão Alta Idade Média por Baixa Idade Média.
Com base em gráficos e tabelas estatísticas, Jacques Chiffoleau pretende detectar as mudanças ocorridas na noção de morte dos avinhoneses no fim da Idade Média. Através de argumentos extremamente pertinentes, o autor tece sua resposta a partir das curvas populacionais: o aumento demográfico, subproduto do desenvolvimento urbano e mercantil, introduziria novos padrões de vida e de comportamento, que estariam na base das mudanças.
O último texto faz jus à sua posição em função de aspectos cronológicos. Com efeito, Claude Blum palmilha os caminhos da evolução de um pensamento entre os séculos XIII e XVI. No interior desse processo, localiza o momento em que a inquietude da morte cede lugar à inquietude da loucura, numa etapa em que se observa a emergência de um humanismo buscando dissolver a noção de pecado - de resto, indissociável da noção de morte medieval - para substituíla por princípios que referem aquilo que é natural ou instintivo. Estamos no limiar do Renascimento.
Para o homem medieval, a morte não é um conceito abstrato; ela apresenta-se concretamente em seu dia-a-dia, e em suas representações está sempre dotada de uma face. Na Idade Média, a morte possui um estatuto jurídico, uma personalidade, traços marcados e bem definidos. À sua proximidade, sobrevêm o me-do e o desespero. Creio que isto se deva justamente ao fato de ela não significar propriamente um fim. Ritual de passagem, como quer a literatura cavaleiresca, ou prêmio de redenção para aqueles que chegaram ao termo de uma jornada dignamente cumprida, a morte encerra uma busca, uma quête. E, para a obtenção do êxito, faz-se necessário que se esteja preparado. Pois é preciso vigiar. E é dessa longa vigília que se faz a vida uma alegria que aportará o alívio para as preocupações na Idade Média. A concepção de morte no homem mundanas, mas que, por outro lado, não sobrevirá caso medieval é ambígua: ela compreende, por um lado, não se passe pelos horrores da travessia.
1 Cf. BRAET, Herman e VERBEKE, Werner (eds.). A Morte na Idade Média. tradução Heitor Megale, Yara Frateschi, Maria Clara Cescato. São Paulo, EDUSP, 1996. (Ensaios de Cultura; 8) Prefácio, p. 9.
2 Cf. Ibidem, p. 10.
3 Cf. THIRY, Claude - "Da morte madrasta à morte vencida" in A Morte na Idade Média ..., p. 251.
4 Título original em alemão: "Alter und Todesfurcht nach der spätmittelalterlichen Bibelexegese", tradução de Maria Clara Cescato.
Revista de História - USP
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