A IDEALIZAÇÃO DA MULHER EM TEXTOS DA LÍRICA PROFANA MEDIEVAL E RENASCENTISTA
Airto Ceolin Montagner
UNIGRANRIO
Focalizaremos, neste trabalho, a questão da idealização da mulher na Idade Média e no Renascimento, observada em textos líricos em língua latina. Como a matéria abrange um período extenso da história, vamos nos fixar num dos momentos mais sublimes do cancioneiro amoroso, tendo em conta que as características ali presentes são recorrentes e se projetaram para épocas posteriores.
Primeiramente, devemos ressaltar que a Idade Média apresenta um lapso de dez séculos. Por isso, os historiadores costumam dividi-lo em dois períodos: Alta Idade Média (séc. V-X) e a Baixa Idade Média (séc. XI-XV).
O primeiro se caracteriza pelas sucessivas migrações e invasões, pela influência permanente da Igreja juntamente com uma vigorosa política feudal. Segundo SPINA (1997, p.16), a Alta Idade Média encontra-se dominada por uma literatura do tipo monástico, com suas hagiografias, poemas litúrgicos, hinos. Prevalecia a literatura em sua forma oral, já que a expressão escrita era privilégio dos mosteiros. Na forma escrita, registram-se textos trágicos, cômicos, satíricos e elegíacos. Certas subformas eram cultivadas, tais como a égloga alegórica, o enigma, a consolação, o epitáfio, a dedicatória e o planctus (lamento pela morte de um chefe). As formas mais duradouras da Alta Idade Média são o panegírico, a epístola e o itinerário. Na forma oral, sempre condenada pela Igreja, comparecem as fabulae (contos), os cantica amatoria (canções amorosas), os cantos blasfematórios, os supermortuos (de luto), além dos spctacula, ioca e scenica (histriônicos).
A Baixa Idade Média, todavia, apresenta, por um lado, textos empenhados, de predominância religiosa, como hinos, hagiografias, poemas sacros, o drama litúrgico, milagres, moralidades, bestiários, lapidários e, por outro lado, textos de moral profana, como o lirismo goliardesco, a poesia alegórica e os fabliaux. Não se pode deixar de citar também o teatro cômico, cujas formas mais frequentes eram a pastorela, a farsa, o monólogo. Por certo, este quadro é muito incompleto, uma vez que não nos referimos à poesia épica nem às gestas e a outras formas, pois nosso objetivo aqui é situar a lírica erótica latina no contexto medieval.
Focalizaremos, dentro de variado contexto, como a figura feminina comparece, tendo em conta a poética de temática amorosa.
Segundo alguns autores, a origem da temática amorosa na poesia medieval teria seu primeiro impulso através da influência moçárabe, advinda da Espanha. Outros preferem situála na tradição da Antiguidade Clássica, de modo especial na literatura latina clássica, mantida pela tradição escolar. Não se deve deixar de lado ainda que outra grande auctoritas está a influenciar os letrados medievais: a autoridade da Bíblia, a Vulgata latina, fato que se pode observar no Cancioneiro de Ripoll, no século XI.
A partir do século X, mutações de caráter político, econômico e social deixam perceber uma relativa secularização da vida cultural. É então que nas escolas catedrais francesas abre-se caminho para as leituras das obras de Ovídio. Com ela, aparece uma literatura que denuncia uma visão do mundo e da vida menos transcendente e mais sensível aos apelos do saeculum. Com ela renasce, na Europa, uma verdadeira lírica profana, dando forma a um latim amoroso, seguindo as páginas ovidianas. Daí brota uma língua de grande florescimento poético que perpassa os séculos XI, XII e XIII, em cujo seio nascem quatro grandes cancioneiros: O Cancioneiro de Ripoll, o Cancioneiro de Arundel, o Cancioneiro de Cabridge e os Carmina Burana.
Vou referir-me aqui, entre os medievais, somente ao Cancioneiro de Ripoll, porque é bastante representativo no que diz respeito ao que desejamos apresentar sobre a idealização da mulher. MORALEJO (1986, p. 86) situa o Cancioneiro de Ripoll dentro da lírica mediolatina como um episódio do lento processo de assimilação das belas letras pagãs pela nova sociedade cristã. Trata-se de uma coletânea com vinte poemas escritos em latim, de autoria anônima, encontrada no mosteiro de Santa Maria de Ripoll, na Catalunha, encontrada em 1923, e que hoje se encontra no Arquivo da Coroa de Aragão de Barcelona com o número 74, fólios 97v, 98r e 102r.
A autoria é anônima, mas acredita-se que se trate de ensaios poéticos ou de um florilégio das predileções de um jovem scholar. Era muito frequente que os scholares ou os clérigos, ao escreverem textos eróticos, considerados não edificantes, conservassem o anonimato. É curioso como, no Cancioneiro, encontram-se títulos ou palavras propositalmente invertidas, como se pode observar no poema 5(24) onde MACIMADA é a grafia inversa de AD AMICAM.
A questão do anonimato de muitas obras medievais é sempre discutida, por força do clima de repressão ou de severa vigilância exercidas pela autoridade eclesiástica. Exemplifica isto, segundo CURTIUS (1996, p.171), a introdução do celibato sacerdotal por Gregório XII, em 1085, causando muitos conflitos na ordem clerical. Um clérigo inglês, conhecido como “Anônimo de York”, por volta do ano 1100, advoga o casamento sacerdotal porque corresponde à ordem natural estabelecida por Deus. Em ambos os casos, pode-se dizer que o anonimato é um silêncio que fala e significa.
Faremos uma breve exposição do conteúdo co Cancioneiro de Ripoll a fim de mostrar como se dá a idealização da mulher, nos textos literários. Entenda-se por idealização a criação de normas imaginárias de ação, tidas como perfeitas. Neste caso, a mulher idealizada vem divinizada através da fantasia. Os autores concordam tal idealização era um procedimento retórico adotado nas escolas da Europa, ara exercitar os escolares no aprendizado dessa arte.
Trata-se, pois, de uma concepção poética da mulher, opondo-se à mulher real. A mulher medieval era vista como objeto de desejo e de posse para o homem. DUBY (1997, p. 61) ressalta as diferenças de tratamento de uma mulher campônia em relação à mulher da corte, no século XII. A mulher da corte é a dama, a donzela, a virgem, a qual não deve ceder senão ao cavalheiro que obedece aos rituais da corte. Os homens medievais faziam do feminino uma imagem segundo a qual a mulher era fraca por natureza. Por isso, necessitavam ser protegidas e viverem em paz. Quando saem de casa, é preciso que o homem as acompanhe senão se pode livremente se apoderar delas. Transcreverei as palavras de AUBY (1997, p.63) para que se tenha uma idéia do pensamento masculino em relação á mulher:
Como a moça violentada pelo monteador: "Naquele bosque sozinha, o que fazia?". Era uma puta? Uma fada? Fatal, em todo caso. Pois sozinhas, sem tutor masculino, a dama, a donzela, a virgem não apenas se encontram em perigo de ser tomadas, elas estão entregues a si mesmas, portanto, a más inclinações, abandonam-se inevitavelmente à luxúria, dado o fraco que têm pelo jogo do amor. Emboscada no canto do bosque, a fada, para dele tirar gozo, espreitava a passagem de um macho. As mulheres são presas, e muito fáceis, facilmente engodadas por um palavreado, então se entregando por inteiro ("ninguém, nada a protegia"), mas por esse motivo são armadilhas em que os homens, seduzidos por seus encantos, seus enfeites, pelo irresistível atrativo de seus cabelos descobertos, tropeçam. Para todos, de qualquer estado que sejam, a mulher, tentadora e perigosa, é fonte de prazer e causa de perdição.
No Cancioneiro, se o apaixonado permanece anônimo, a mulher, todavia, vem representada por Judit. O poema de abertura leva o título de QVOMODO PRIMVM AMAVI, o qual revela o despertar do Anônimo Enamorado para o amor. É primavera, o bosque está repleto de copas e os prados de róseas flores, os pássaros cantam docemente e a juventude ferve de amores. No final da tarde, enquanto procurava seus cães perdidos, eis que surge Cupido junto com sua mãe Vênus. O deus do amor interpela-o para que não mais siga os jogos de Diana, mas passe a servir na corte de sua mãe Vênus. Prostrado por terra, sente seu coração arder com novos os novos fogos.
O segundo poema, cujo título é ‘Quando vi pela primeira vez a minha amiga’, revela que, num passeio casual pelo prado adornado de flores, tem a visão da Citereia, deusa do amor, acompanhada do coro das donzelas. Junto estava Cupido, que gritava “Io!”, que é o grito dos amantes. A deusa colhia flores e enchia os cestos ao mesmo tempo que as donzelas entoavam mil melodias. Enquanto estava emocionado com o que via, encontrou uma donzela, de boa linhagem e honesta, e a amou. Trata-se de Judit. Em dois tercetos, realiza a descriptio puellae, a descrição da donzela, apresentado seus dotes físicos excepcionais. Ela tem os olhos brilhantes, os dentes níveos, os seios intumescidos, candentes como a neve, e o rosto, cândido como a lua, não apresenta nenhuma ruga.
Percebemos nesses dois poemas, duas situações de idealização. Primeiro a natureza em todo seu esplendor primaveril. Ela é o locus amoenus, o lugar ameno, cenário ideal para o amor. As seguir a descrição da donzela, ressaltando traços que tipificam um ideal da beleza feminina reinante na época medieval. É esse mesmo tipo idealizado que, muitos séculos após, ressurge na visão idealista do Romantismo.
Todo tema amoroso medieval apresenta como justificativa um encontro com Vênus ou com Cupido. É a presença do mito, visto pelos autores como mais um ornamento retórico ou um lugar comum que se estende até o Renascimento.
O terceiro poema intitula-se ‘Louvores à amiga’. É onde o poeta, através de uma série de metáforas, exalta a beleza da amada, superior a de todas as donzelas. Ela vem designada como estrela clara, flor e ornamento das donzelas, mais reluzente que o lírio. O olhar e o sorriso fazem com que ele se submeta de bom grado a Vênus e permita seu coração leve flechas do filho alado. O ardor da paixão arde em sua mente e ferve e queima e ela a denomina deusa. A frente e o colo sem rugas e o rosto angélico assinalam para o homem que ela é celeste, não terrestre. Na parte final do poema, retoma a descrição da donzela ressaltando a alvura dos dentes, a formosura dos lábios que, se tocados, dão beijos de mel, os seios pequenos e alvos, as mãos, o ventre e a figura grácil, as pernas reluzentes. Por esses atributos e pela linhagem, sua amiga supera as deusas – celestes e terrenas. Ou seja, pela idealização, a mulher é a deusa. Diante dela o amante roga para que ela seja causa não de dor, mas de amor, em seu peito.
De modo semelhante aos poetas românticos, a evasão através do sonho é um motivo para a descriptio puellae, sempre idealizando-a, mas enfatizando um amor carnal, de fruição e gozo, em que a mulher toma a iniciativa na situação idílica. Há dois sonhos na coletânea. O primeiro deles retrata o enamorado na estação das flores, adormecido num verde prado, quando dele se aproxima uma donzela formosíssima, com rosto de estrela e de linhagem advinda de sangue de reis. Com cuidado ela o abana com seu manto, enquanto lhe proporciona doces beijos. Como ele desperta, ela então diz que está ali por conselho de Vênus e, inflamada, oferece-lhe o amor. Temendo que o jovem a desdenhe, oferece-lhe presentes, casacos de pele, roupas de púrpura. Mostra sua beleza, oferece-a. Comovido, ele a abraça e ante a beleza e a linhagem da formosa amiga “logo aquele mais doce segredo torno realidade”, afirma.
O segundo sonho é mais breve, porém a situação é similar. Surge, à noite, formosa donzela que se dirige ao seu leito. Após uma noite no leito das delícias, a donzela desaparece, sem proferir palavra.
Sem dúvida, já no século XI, portanto antes da publicação do Tratado do amor Cortês, de André Capelão (entre 1185 e 1187), a poesia cortês estava difundida na Europa, para além das fronteiras da França, onde surgiu. No cancioneiro o poema 9(28), AD AMICAM, é um belíssimo exemplo de poesia cortesã, no seio da qual a conquista da mulher se dá pelo diálogo, numa espécie de luta verbal, em que o cavalheiro se empenha em convencer a amiga a ceder-lhe os favores. Razões masculinas e femininas se confrontam e manifestam um modo de conceber o amor.
Também no Renascimento encontramos textos em que a idealização da mulher se manifesta de acordo com o modelo medieval. A donzela, porém, assume um comportamento mais altivo, tiranizando os dons da relação. Darei apenas dois exemplos tirados do livro Beijos, de Ioannis Secundus Hagiensis, de publicação póstuma, em 1541. Este autor desenvolveu a temática dos beijos em dezenove poemas que focalizam o amor em torno da figura de Neera, do mesmo modo com já o fizera Catulo com Lésbia. Todo o amor e a idealização da amada se dá através da ação dos beijos, pelos quais os amantes se comunicam.
Assim, no poema IV,
Neera não dá beijos, dá néctar,
Dá o orvalho do seu alento perfumado,
Dá nardo, tomilho e canela,
E dá o mel que as abelhas libam no alto do Himeto
E em seguida o encerram na cera virgem de uma colméia de vime.
Se muitos me fossem dados para devorar
Eu logo me tornaria imortal
E gozaria dos festins dos grandes deuses.
Mas tu, sê parca dos teus dons, sê parca,
Ou torna-te comigo deusa, Neera.
Sem ti, não quero as mesas dos deuses,
Nem queria governar os brilhantes reinos
Se, destronado Júpiter, os deuses e as deusas me obrigassem.
O endeusamento da figura feminina pode ser observado no poema XIII, mas também a
explicação mítica para o sofrimento que colhe o amante e a dureza da amada, que não cede ao pleito amoroso do poeta.
Quando viu os lábios da minha amiga,
Incrustados na forma oval do seu rosto,
Como contas de coral que um artesão engastara num selo de marfim,
Dizem que Vênus começou a chorar
E entre gemidos chamou os amores lascivos e lhes disse:
“De que me serve que meus lábios de púrpura tenham vencido,
Por julgamento de um pastor, no monte Ida, a Palas
E a deusa que amadrinha as bodas, irmã do grande Júpiter,
Quando Neera me vence a juízo de um poeta?
Ide furiosos contra ele com as aljavas repletas,
Apontai vossas terríveis flechas no mais terno de suas medulas
E transpassai com força o peito e o coração festivo,
Fazendo ressoar vossos arcos. E quanto a ela,
Que não a inflame fogo algum, a menos que,
Com o peito ferido por uma flecha de chumbo,
Se gele o sangue nas veias.
Conforme podemos observar acima, a literatura medieval desenvolve uma vasta
temática, todavia a temática amorosa alcança seu apogeu entre os séculos XI a XIII, período em que a cultura descamba para uma secularização cada vez mais ascendente. Surgem então os cancioneiros, principais fontes para o conhecimento da poesia erótica mediolatina. Neles se pode observar a idealização da mulher, sobremaneira sob o ponto de vista físico. Ela é alva como a neve, belíssima, deusa. Se na lírica medieval ela cede aos amores como um objeto de deleite ao poeta enamorado, no Renascimento, contrariamente, a tirania da amada gera a vassalagem amorosa.
Essa idealização da mulher amada, através da descriptio puellae, passa às épocas posteriores, notadamente entre os poetas do Romantismo. Também a idealização da natureza e do ambiente primaveril, sucedâneo poético da idade de ouro, perpetua-se e jamais vem dissociada do memento amoris, presente até mesmo entre os cancioneiros dos nossos dias.
BIBLIOGRAFIA.
ANÔNIMO: Cacionero de Ripoll. Texto, tradução, introdução e notas de José-Luis Moralejo. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1979.
DUBY, Georges. Damas do século XII: a lembrança das ancestrais. Traqd. Maria Lúcia Machado. São Paulo: Companhia das Letras, 1997.
CAPELÃO, André. Tratado do amor Cortês. Trad de Ivone Castilho Benedetti. São Paulo: Martins Fontes, 2000.
CURTIUS, Ernst Robert. Literatura europeia e Idade Média latina. São Paulo: EDUSP, 1996.
SEGUNDO, Juan. Basia, et alia quaedam. Barcelona: Bosch, Casa Editorial, 1979.
SPINA, Segismundo. A cultura literária medieval. São Caetano do Sul, SP: Ateliê Editorial, 1997.
Airto Ceolin Montagner
UNIGRANRIO
Focalizaremos, neste trabalho, a questão da idealização da mulher na Idade Média e no Renascimento, observada em textos líricos em língua latina. Como a matéria abrange um período extenso da história, vamos nos fixar num dos momentos mais sublimes do cancioneiro amoroso, tendo em conta que as características ali presentes são recorrentes e se projetaram para épocas posteriores.
Primeiramente, devemos ressaltar que a Idade Média apresenta um lapso de dez séculos. Por isso, os historiadores costumam dividi-lo em dois períodos: Alta Idade Média (séc. V-X) e a Baixa Idade Média (séc. XI-XV).
O primeiro se caracteriza pelas sucessivas migrações e invasões, pela influência permanente da Igreja juntamente com uma vigorosa política feudal. Segundo SPINA (1997, p.16), a Alta Idade Média encontra-se dominada por uma literatura do tipo monástico, com suas hagiografias, poemas litúrgicos, hinos. Prevalecia a literatura em sua forma oral, já que a expressão escrita era privilégio dos mosteiros. Na forma escrita, registram-se textos trágicos, cômicos, satíricos e elegíacos. Certas subformas eram cultivadas, tais como a égloga alegórica, o enigma, a consolação, o epitáfio, a dedicatória e o planctus (lamento pela morte de um chefe). As formas mais duradouras da Alta Idade Média são o panegírico, a epístola e o itinerário. Na forma oral, sempre condenada pela Igreja, comparecem as fabulae (contos), os cantica amatoria (canções amorosas), os cantos blasfematórios, os supermortuos (de luto), além dos spctacula, ioca e scenica (histriônicos).
A Baixa Idade Média, todavia, apresenta, por um lado, textos empenhados, de predominância religiosa, como hinos, hagiografias, poemas sacros, o drama litúrgico, milagres, moralidades, bestiários, lapidários e, por outro lado, textos de moral profana, como o lirismo goliardesco, a poesia alegórica e os fabliaux. Não se pode deixar de citar também o teatro cômico, cujas formas mais frequentes eram a pastorela, a farsa, o monólogo. Por certo, este quadro é muito incompleto, uma vez que não nos referimos à poesia épica nem às gestas e a outras formas, pois nosso objetivo aqui é situar a lírica erótica latina no contexto medieval.
Focalizaremos, dentro de variado contexto, como a figura feminina comparece, tendo em conta a poética de temática amorosa.
Segundo alguns autores, a origem da temática amorosa na poesia medieval teria seu primeiro impulso através da influência moçárabe, advinda da Espanha. Outros preferem situála na tradição da Antiguidade Clássica, de modo especial na literatura latina clássica, mantida pela tradição escolar. Não se deve deixar de lado ainda que outra grande auctoritas está a influenciar os letrados medievais: a autoridade da Bíblia, a Vulgata latina, fato que se pode observar no Cancioneiro de Ripoll, no século XI.
A partir do século X, mutações de caráter político, econômico e social deixam perceber uma relativa secularização da vida cultural. É então que nas escolas catedrais francesas abre-se caminho para as leituras das obras de Ovídio. Com ela, aparece uma literatura que denuncia uma visão do mundo e da vida menos transcendente e mais sensível aos apelos do saeculum. Com ela renasce, na Europa, uma verdadeira lírica profana, dando forma a um latim amoroso, seguindo as páginas ovidianas. Daí brota uma língua de grande florescimento poético que perpassa os séculos XI, XII e XIII, em cujo seio nascem quatro grandes cancioneiros: O Cancioneiro de Ripoll, o Cancioneiro de Arundel, o Cancioneiro de Cabridge e os Carmina Burana.
Vou referir-me aqui, entre os medievais, somente ao Cancioneiro de Ripoll, porque é bastante representativo no que diz respeito ao que desejamos apresentar sobre a idealização da mulher. MORALEJO (1986, p. 86) situa o Cancioneiro de Ripoll dentro da lírica mediolatina como um episódio do lento processo de assimilação das belas letras pagãs pela nova sociedade cristã. Trata-se de uma coletânea com vinte poemas escritos em latim, de autoria anônima, encontrada no mosteiro de Santa Maria de Ripoll, na Catalunha, encontrada em 1923, e que hoje se encontra no Arquivo da Coroa de Aragão de Barcelona com o número 74, fólios 97v, 98r e 102r.
A autoria é anônima, mas acredita-se que se trate de ensaios poéticos ou de um florilégio das predileções de um jovem scholar. Era muito frequente que os scholares ou os clérigos, ao escreverem textos eróticos, considerados não edificantes, conservassem o anonimato. É curioso como, no Cancioneiro, encontram-se títulos ou palavras propositalmente invertidas, como se pode observar no poema 5(24) onde MACIMADA é a grafia inversa de AD AMICAM.
A questão do anonimato de muitas obras medievais é sempre discutida, por força do clima de repressão ou de severa vigilância exercidas pela autoridade eclesiástica. Exemplifica isto, segundo CURTIUS (1996, p.171), a introdução do celibato sacerdotal por Gregório XII, em 1085, causando muitos conflitos na ordem clerical. Um clérigo inglês, conhecido como “Anônimo de York”, por volta do ano 1100, advoga o casamento sacerdotal porque corresponde à ordem natural estabelecida por Deus. Em ambos os casos, pode-se dizer que o anonimato é um silêncio que fala e significa.
Faremos uma breve exposição do conteúdo co Cancioneiro de Ripoll a fim de mostrar como se dá a idealização da mulher, nos textos literários. Entenda-se por idealização a criação de normas imaginárias de ação, tidas como perfeitas. Neste caso, a mulher idealizada vem divinizada através da fantasia. Os autores concordam tal idealização era um procedimento retórico adotado nas escolas da Europa, ara exercitar os escolares no aprendizado dessa arte.
Trata-se, pois, de uma concepção poética da mulher, opondo-se à mulher real. A mulher medieval era vista como objeto de desejo e de posse para o homem. DUBY (1997, p. 61) ressalta as diferenças de tratamento de uma mulher campônia em relação à mulher da corte, no século XII. A mulher da corte é a dama, a donzela, a virgem, a qual não deve ceder senão ao cavalheiro que obedece aos rituais da corte. Os homens medievais faziam do feminino uma imagem segundo a qual a mulher era fraca por natureza. Por isso, necessitavam ser protegidas e viverem em paz. Quando saem de casa, é preciso que o homem as acompanhe senão se pode livremente se apoderar delas. Transcreverei as palavras de AUBY (1997, p.63) para que se tenha uma idéia do pensamento masculino em relação á mulher:
Como a moça violentada pelo monteador: "Naquele bosque sozinha, o que fazia?". Era uma puta? Uma fada? Fatal, em todo caso. Pois sozinhas, sem tutor masculino, a dama, a donzela, a virgem não apenas se encontram em perigo de ser tomadas, elas estão entregues a si mesmas, portanto, a más inclinações, abandonam-se inevitavelmente à luxúria, dado o fraco que têm pelo jogo do amor. Emboscada no canto do bosque, a fada, para dele tirar gozo, espreitava a passagem de um macho. As mulheres são presas, e muito fáceis, facilmente engodadas por um palavreado, então se entregando por inteiro ("ninguém, nada a protegia"), mas por esse motivo são armadilhas em que os homens, seduzidos por seus encantos, seus enfeites, pelo irresistível atrativo de seus cabelos descobertos, tropeçam. Para todos, de qualquer estado que sejam, a mulher, tentadora e perigosa, é fonte de prazer e causa de perdição.
No Cancioneiro, se o apaixonado permanece anônimo, a mulher, todavia, vem representada por Judit. O poema de abertura leva o título de QVOMODO PRIMVM AMAVI, o qual revela o despertar do Anônimo Enamorado para o amor. É primavera, o bosque está repleto de copas e os prados de róseas flores, os pássaros cantam docemente e a juventude ferve de amores. No final da tarde, enquanto procurava seus cães perdidos, eis que surge Cupido junto com sua mãe Vênus. O deus do amor interpela-o para que não mais siga os jogos de Diana, mas passe a servir na corte de sua mãe Vênus. Prostrado por terra, sente seu coração arder com novos os novos fogos.
O segundo poema, cujo título é ‘Quando vi pela primeira vez a minha amiga’, revela que, num passeio casual pelo prado adornado de flores, tem a visão da Citereia, deusa do amor, acompanhada do coro das donzelas. Junto estava Cupido, que gritava “Io!”, que é o grito dos amantes. A deusa colhia flores e enchia os cestos ao mesmo tempo que as donzelas entoavam mil melodias. Enquanto estava emocionado com o que via, encontrou uma donzela, de boa linhagem e honesta, e a amou. Trata-se de Judit. Em dois tercetos, realiza a descriptio puellae, a descrição da donzela, apresentado seus dotes físicos excepcionais. Ela tem os olhos brilhantes, os dentes níveos, os seios intumescidos, candentes como a neve, e o rosto, cândido como a lua, não apresenta nenhuma ruga.
Percebemos nesses dois poemas, duas situações de idealização. Primeiro a natureza em todo seu esplendor primaveril. Ela é o locus amoenus, o lugar ameno, cenário ideal para o amor. As seguir a descrição da donzela, ressaltando traços que tipificam um ideal da beleza feminina reinante na época medieval. É esse mesmo tipo idealizado que, muitos séculos após, ressurge na visão idealista do Romantismo.
Todo tema amoroso medieval apresenta como justificativa um encontro com Vênus ou com Cupido. É a presença do mito, visto pelos autores como mais um ornamento retórico ou um lugar comum que se estende até o Renascimento.
O terceiro poema intitula-se ‘Louvores à amiga’. É onde o poeta, através de uma série de metáforas, exalta a beleza da amada, superior a de todas as donzelas. Ela vem designada como estrela clara, flor e ornamento das donzelas, mais reluzente que o lírio. O olhar e o sorriso fazem com que ele se submeta de bom grado a Vênus e permita seu coração leve flechas do filho alado. O ardor da paixão arde em sua mente e ferve e queima e ela a denomina deusa. A frente e o colo sem rugas e o rosto angélico assinalam para o homem que ela é celeste, não terrestre. Na parte final do poema, retoma a descrição da donzela ressaltando a alvura dos dentes, a formosura dos lábios que, se tocados, dão beijos de mel, os seios pequenos e alvos, as mãos, o ventre e a figura grácil, as pernas reluzentes. Por esses atributos e pela linhagem, sua amiga supera as deusas – celestes e terrenas. Ou seja, pela idealização, a mulher é a deusa. Diante dela o amante roga para que ela seja causa não de dor, mas de amor, em seu peito.
De modo semelhante aos poetas românticos, a evasão através do sonho é um motivo para a descriptio puellae, sempre idealizando-a, mas enfatizando um amor carnal, de fruição e gozo, em que a mulher toma a iniciativa na situação idílica. Há dois sonhos na coletânea. O primeiro deles retrata o enamorado na estação das flores, adormecido num verde prado, quando dele se aproxima uma donzela formosíssima, com rosto de estrela e de linhagem advinda de sangue de reis. Com cuidado ela o abana com seu manto, enquanto lhe proporciona doces beijos. Como ele desperta, ela então diz que está ali por conselho de Vênus e, inflamada, oferece-lhe o amor. Temendo que o jovem a desdenhe, oferece-lhe presentes, casacos de pele, roupas de púrpura. Mostra sua beleza, oferece-a. Comovido, ele a abraça e ante a beleza e a linhagem da formosa amiga “logo aquele mais doce segredo torno realidade”, afirma.
O segundo sonho é mais breve, porém a situação é similar. Surge, à noite, formosa donzela que se dirige ao seu leito. Após uma noite no leito das delícias, a donzela desaparece, sem proferir palavra.
Sem dúvida, já no século XI, portanto antes da publicação do Tratado do amor Cortês, de André Capelão (entre 1185 e 1187), a poesia cortês estava difundida na Europa, para além das fronteiras da França, onde surgiu. No cancioneiro o poema 9(28), AD AMICAM, é um belíssimo exemplo de poesia cortesã, no seio da qual a conquista da mulher se dá pelo diálogo, numa espécie de luta verbal, em que o cavalheiro se empenha em convencer a amiga a ceder-lhe os favores. Razões masculinas e femininas se confrontam e manifestam um modo de conceber o amor.
Também no Renascimento encontramos textos em que a idealização da mulher se manifesta de acordo com o modelo medieval. A donzela, porém, assume um comportamento mais altivo, tiranizando os dons da relação. Darei apenas dois exemplos tirados do livro Beijos, de Ioannis Secundus Hagiensis, de publicação póstuma, em 1541. Este autor desenvolveu a temática dos beijos em dezenove poemas que focalizam o amor em torno da figura de Neera, do mesmo modo com já o fizera Catulo com Lésbia. Todo o amor e a idealização da amada se dá através da ação dos beijos, pelos quais os amantes se comunicam.
Assim, no poema IV,
Neera não dá beijos, dá néctar,
Dá o orvalho do seu alento perfumado,
Dá nardo, tomilho e canela,
E dá o mel que as abelhas libam no alto do Himeto
E em seguida o encerram na cera virgem de uma colméia de vime.
Se muitos me fossem dados para devorar
Eu logo me tornaria imortal
E gozaria dos festins dos grandes deuses.
Mas tu, sê parca dos teus dons, sê parca,
Ou torna-te comigo deusa, Neera.
Sem ti, não quero as mesas dos deuses,
Nem queria governar os brilhantes reinos
Se, destronado Júpiter, os deuses e as deusas me obrigassem.
O endeusamento da figura feminina pode ser observado no poema XIII, mas também a
explicação mítica para o sofrimento que colhe o amante e a dureza da amada, que não cede ao pleito amoroso do poeta.
Quando viu os lábios da minha amiga,
Incrustados na forma oval do seu rosto,
Como contas de coral que um artesão engastara num selo de marfim,
Dizem que Vênus começou a chorar
E entre gemidos chamou os amores lascivos e lhes disse:
“De que me serve que meus lábios de púrpura tenham vencido,
Por julgamento de um pastor, no monte Ida, a Palas
E a deusa que amadrinha as bodas, irmã do grande Júpiter,
Quando Neera me vence a juízo de um poeta?
Ide furiosos contra ele com as aljavas repletas,
Apontai vossas terríveis flechas no mais terno de suas medulas
E transpassai com força o peito e o coração festivo,
Fazendo ressoar vossos arcos. E quanto a ela,
Que não a inflame fogo algum, a menos que,
Com o peito ferido por uma flecha de chumbo,
Se gele o sangue nas veias.
Conforme podemos observar acima, a literatura medieval desenvolve uma vasta
temática, todavia a temática amorosa alcança seu apogeu entre os séculos XI a XIII, período em que a cultura descamba para uma secularização cada vez mais ascendente. Surgem então os cancioneiros, principais fontes para o conhecimento da poesia erótica mediolatina. Neles se pode observar a idealização da mulher, sobremaneira sob o ponto de vista físico. Ela é alva como a neve, belíssima, deusa. Se na lírica medieval ela cede aos amores como um objeto de deleite ao poeta enamorado, no Renascimento, contrariamente, a tirania da amada gera a vassalagem amorosa.
Essa idealização da mulher amada, através da descriptio puellae, passa às épocas posteriores, notadamente entre os poetas do Romantismo. Também a idealização da natureza e do ambiente primaveril, sucedâneo poético da idade de ouro, perpetua-se e jamais vem dissociada do memento amoris, presente até mesmo entre os cancioneiros dos nossos dias.
BIBLIOGRAFIA.
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SPINA, Segismundo. A cultura literária medieval. São Caetano do Sul, SP: Ateliê Editorial, 1997.
II Seminário Nacional - Gênero e Práticas Cuturais
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