Elemento dos deuses
O fogo nos acompanha há milhares de anos, ora como um benfeitor imprescindível, ora como um algoz implacável. Ao mesmo tempo sedutor e perigoso, ele aquece mas também destrói
Maria Fernanda Vomero
Conta a mitologia grega que o fogo, símbolo da inteligência e do conhecimento, era propriedade exclusiva dos deuses. Sem ele, os homens sobreviviam com dificuldades, pois não tinham as aptidões necessárias para levar a cabo uma série de tarefas. Na tentativa de ajudar a humanidade, o titã Prometeu decidiu roubar o fogo do Olimpo e dá-lo aos mortais. Ensinou os homens a lidar com as labaredas para cozinhar os alimentos e enfrentar o frio. O castigo para tamanha ousadia não tardou. Furioso, Zeus, o deus dos deuses, acorrentou Prometeu ao topo do monte Cáucaso, onde, diariamente, uma águia ia lhe devorar o fígado, que se regenerava durante a noite.
O mito de Prometeu e narrativas similares presentes em outras culturas enfatizam que os homens se distinguiram do restante da criação e se tornaram verdadeiramente humanos quando conquistaram o domínio sobre o fogo. Passaram, então, a possuir uma parcela do poder divino – e, por causa disso, na história grega, Prometeu foi punido. Olhe e constate como o fogo está presente na vida cotidiana, na indústria, nas práticas agrícolas e até nos rituais religiosos.
"O fogo nos tornou tecnologicamente poderosos", diz o biólogo Stephen Pyne, da Universidade do Estado do Arizona, Estados Unidos. "Tudo o que os homens tocaram, o fogo também tocou. Juntos, cruzaram desertos e geleiras, atravessaram florestas e colonizaram a Terra." Apaixonado pelo assunto, Pyne já escreveu 11 livros sobre o assunto. No último deles, Fire: A Brief History (Fogo: uma breve história, inédito em português), faz uma espécie de biografia desse que se revelou um companheiro inseparável do homem.
Esse relacionamento ancestral pode ter começado há aproximadamente 400 000 anos, segundo os vestígios de fogueira mais antigos encontrados em sítios arqueológicos na Hungria e no norte da China. Os hominídeos da espécie Homo heidelbergensis – intermediária entre o Homo erectus e o Homo sapiens – provavelmente vagaram milhares de anos pelo deserto sem ter visto o fogo. Imagine quão surpresos devem ter ficado quando se depararam pela primeira vez com um vulcão em erupção ou com uma floresta em chamas. Se buscaram imediatamente aconchego junto às labaredas ou se fugiram amedrontados, como os outros animais faziam por instinto, não se sabe. Mas, em algum momento, aqueles hominídeos perceberam que podiam conservar brasas dos incêndios que destruíam as árvores atingidas por raios. Aprenderam também que determinados materiais secos, como a madeira, queimavam e produziam luz e calor.
A domesticação do fogo mudou completamente o ritmo de vida dos hominídeos. Eles, que antes viviam em árvores ou refúgios terrestres fugindo dos bichos ferozes, começaram a usar as fogueiras na entrada dos abrigos, como fonte de calor e como proteção contra as feras. Assim, conseguiam dormir tranqüilos. "O fogo trouxe segurança psicológica", afirma o arqueólogo André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Os hominídeos passaram a ter períodos mais longos de sono. E, graças ao sono profundo, é provável que tenham começado a sonhar, o que levou a uma sofisticação gradativa da psique humana."
O fogo teve igualmente um papel agregador, favorecendo a sociabilidade e a convivência. Os membros do grupo sentavam-se ao redor da fogueira para suas primeiras atividades tecnológicas, como a produção de pontas de madeira endurecidas com a ajuda das chamas. "Por ficarem cara a cara durante um tempo maior, os hominídeos possivelmente acabaram desenvolvendo uma comunicação mais intensa entre eles", diz André. A dieta dos homens primitivos também se modificou. Com o cozimento, os alimentos ganharam em sabor e digestibilidade, uma vez que o fogo destrói parte das toxinas presentes tanto na carne crua quanto em alguns vegetais.
"O fogo trouxe uma capacidade adaptativa muito grande para a espécie humana", diz o antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP). "Possibilitou que os hominídeos deixassem as zonas tropicais e partissem para a ocupação de territórios inóspitos, onde não havia outros grandes primatas que pudessem competir com eles." Adaptados ao calor, os primatas geralmente se restringem à região dos trópicos – chegam, no máximo, às áreas subtropicais. Sem o fogo, terras geladas como a Escandinávia e o Alasca não teriam sido povoadas. "O Homo heidelbergensis já estava presente no norte da Europa, o que, no inverno, só foi possível devido ao fogo", diz Walter.
A grande preocupação do homem primitivo era manter as labaredas sempre acesas. Perder o fogo poderia ser uma verdadeira catástrofe, conforme retratou o cineasta canadense Jean Jacques Annaud em seu filme A Guerra do Fogo, de 1981, uma espécie de história romanceada da domesticação do fogo. Os hominídeos eram nômades e carregavam suas tochas em chamas ou brasas quando se deslocavam. Assim foi até aprenderem a produzir as primeiras faíscas, por meio do atrito entre varetas de madeira ou entre alguns tipos de pedra. Ao mesmo tempo em que conquistavam a independência, tornavam-se mais dependentes das labaredas. "Para a humanidade, cuja identidade biológica deriva do objetivo inicial de manter a chama acesa, não houve mais maneiras de fugir do fogo", diz Stephen Pyne.
O fogo surgiu no planeta provavelmente entre 400 e 350 milhões de anos atrás, simultaneamente à formação de descargas elétricas na atmosfera terrestre e ao desenvolvimento das primeiras espécies vegetais. A vida, portanto, criou condições propícias para o fogo. "Fósseis do período carbonífero já apresentam evidências de incêndios, mas não é possível afirmar que esse período geológico marque o surgimento do fogo. Ele pode ter aparecido muito antes", afirma o engenheiro florestal Ronaldo Viana Soares, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). "Os raios originaram o fogo naquele período e ainda hoje continuam a provocar incêndios em diversas partes da Terra."
Para que haja fogo, é preciso que aconteça a combustão – em outras palavras, a combinação entre oxigênio e uma substância combustível, induzida por uma fonte de calor, como os raios ou a chama de um palito de fósforo. Os produtos dessa reação química são chamas, luz e energia calorífera. Qualquer tipo de matéria orgânica pode funcionar como combustível, mas existem também combustíveis não-orgânicos, em geral gases. O fósforo é um exemplo – combina-se tão facilmente com o oxigênio que pode produzir chamas simplesmente se exposto ao ar. É a chamada combustão espontânea. "Em geral, em lugares onde há acúmulo de ossos, como um cemitério, é comum haver uma grande quantidade de fósforo sob a terra", diz o engenheiro florestal Antonio Carlos Batista, da UFPR. "Se uma rocha desliza até o local e provoca uma faísca, pode desencadear uma combustão."
O fogo apronta outras peças. Estamos acostumados a chamas azuladas, resultado de uma combustão completa, ou seja, da combinação equilibrada entre combustível e oxigênio. Num incêndio urbano, as chamas costumam ser amareladas, o que pode ser conseqüência tanto de uma combustão incompleta – já que a quantidade de oxigênio é insuficiente –, quanto da queima de sódio, que libera luz amarela. Mas às vezes a chama pode ser invisível, como no caso da combustão do metanol. Existe fogo, contudo você não o vê e pode se queimar de maneira "inexplicável". Isso acontece com pilotos de algumas provas de automobilismo que usam o metanol como combustível.
Travessuras à parte, o fogo tem um papel ecológico importantíssimo. "Existem muitos ecossistemas que têm o fogo como elemento fundamental. Dependem dele para não desaparecer", diz Antonio Carlos. As florestas de coníferas – também conhecidas como florestas de pinheiros – são um exemplo. Espécies "dinossauras", bem antigas na escala evolutiva, somente sobrevivem até os dias de hoje graças à ação das chamas. As coníferas são resistentes aos incêndios de média intensidade. Precisam do fogo para quebrar as pinhas e espalhar as sementes e também para eliminar as espécies mais agressivas e mais desenvolvidas (as árvores folhosas), que as suprimiriam caso não houvesse chamas.
"Os regimes de fogo exercem influência marcante na dinâmica da vegetação, isto é, nos processos de sucessão e predominância de espécies", afirma Ronaldo Soares. (Por regime de fogo, entenda a freqüência, a época de ocorrência e a intensidade dos incêndios.) Veja o caso do cerrado brasileiro e da savana africana, cuja "fisionomia" se deve aos incêndios intermitentes nessas regiões. As espécies mais adaptadas se regeneram com facilidade depois do fogaréu. Nos primórdios da Terra, a distribuição da maioria dos ecossistemas vegetais no planeta foi influenciada pelas chamas. "Mas a ação humana, por meio da derrubada de florestas, alterou a harmonia entre fogo e vegetação", diz Ronaldo. Os produtos da devastação, como tocos de árvores e pedaços de galhos, incrementaram a quantidade de combustível existente. Os incêndios naturais, antes periódicos, passaram a ser mais freqüentes e intensos, destruindo até espécies mais resistentes.
Sob forma prescrita e controlada, as queimadas podem substituir o fogo natural, contribuindo para a continuidade de ecossistemas dependentes das chamas. No entanto, boa parte dos incêndios provocados pelo homem fogem do controle – eis a face perversa do fogo. No Brasil, os produtores rurais usam as queimadas com freqüência para limpar o solo e deixá-lo fertilizado para a agricultura ou para a pastagem. Se são feitas sem cuidados básicos, como a preparação de aceiros (valas sem vegetação que impedem o avanço do fogo), destroem tudo o que está por perto – o próprio pasto, plantações vizinhas, mata nativa.
No mundo inteiro, os números do fogo sem controle são impressionantes. Segundo dados do Centro de Monitoramento do Fogo Global (GFMC, na sigla em inglês), anualmente de 20 000 a 100 000 quilômetros quadrados de florestas de coníferas queimam na Rússia. Nos Estados Unidos, o fogo consome 20 000 quilômetros quadrados anuais de vegetação nativa, o equivalente a um Estado de Sergipe. E cerca de 3 milhões de quilômetros quadrados de savanas tropicais e subtropicais são destruídas por incêndios a cada ano – um pouco mais que a área da região norte do Brasil inteira. É muita coisa.
"O fogo é bom servo, mas um mau senhor", diz um ditado. Ele pode ser o melhor dos amigos, mas é também o pior dos inimigos. Um exemplo? O trágico incêndio que consumiu um longo trecho de Floresta Amazônica no Estado de Roraima, em 1998. O fogaréu acabou com cerca de 40 000 quilômetros quadrados de vegetação – uma Suíça inteira. No final de 2001, duas tragédias. A explosão de uma loja de fogos de artifício em Lima, capital do Peru, cobriu de chamas o centro histórico da cidade e matou quase 300 pessoas. Na Austrália, uma brincadeira de garotos deu início a um incêndio de grandes proporções, destruindo 150 casas e 3 000 quilômetros quadrados de floresta, quase duas vezes a área de Londres (aliás, um dos lugares do planeta onde, ironicamente, seria difícil viver sem o fogo).
Essa dualidade do fogo está presente na cultura humana desde as origens. "Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura", escreveu o francês Gaston Bachelard, em A Psicanálise do Fogo, um ensaio instigante sobre as razões psicológicas da nossa estreita ligação com o fogo. "O fogo sugere o desejo de mudar, de apressar o tempo, de levar a vida a seu termo, a seu além." Une o instinto de viver e o instinto de morrer, o ganhar e o perder, segundo Bachelard. Daí o assombro que um incêndio, mesmo destruidor, provoca.
Não há como negar que a contemplação das chamas gera um encantamento ímpar. Conforme Bachelard, o fogo encerrado na lareira – reproduzindo a imagem da fogueira, a companheira de evolução – foi certamente o primeiro tema de devaneio para o homem, um convite ao repouso. Não se entregar a esse devaneio é perder o sentido verdadeiramente primeiro e humano do fogo: o símbolo natural, comovente e incessante, que descreve o destino dos homens. "Uma fagulha que se desprende na fumaça é suficiente para nos impelir ao nosso destino", afirma. "O ser fascinado ouve o apelo da fogueira. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação."
Para a psiquiatra Maria Zélia de Alvarenga, da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, figuras míticas, como as divindades gregas, também podem explicar a relação ambígua do homem com as chamas. De um lado, temos Héstia, a deusa grega do fogo, presente nos lares e nos templos, por meio dos rituais celebrados ao redor da fogueira. Ela representa aconchego, calor, criatividade e sensualidade – o aspecto fascinante e envolvente do fogo. Do outro lado, encontramos Dioniso, o deus abrasador da embriaguez e da loucura. Semeia sexualidade, volúpia e insanidade – o caráter "perigoso" e descontrolado do fogo. "Essas imagens míticas traduzem realidades do nosso inconsciente", diz Maria Zélia. Quer dizer, também nós somos dúbios. Por isso, nos deixamos seduzir pelo fogo.
Desde os filósofos gregos pré-socráticos, o homem tenta compreender os mistérios das chamas. Heráclito de Éfeso, filósofo que viveu em torno do ano 500 a.C., afirmava que tudo procedia do fogo eternamente vivo e voltava ao mesmo fogo para dele surgir novamente, num processo circular de nascimento e destruição. "Heráclito concebia o fogo como divino porque ele é capaz de criar, destruir e transformar", afirma o especialista em religiões Antonio Gouvêa Machado, da Universidade Metodista de São Paulo. As mesmas chamas que fazem germinar as sementes transformam a matéria e permitem que ela volte à natureza sob a forma de cinzas que fertilizam a terra. Com o fogo, os mortais partilham do poder divino. "Nas sociedades primitivas, por exemplo, o ferreiro era respeitado como xamã porque tinha domínio sobre o fogo", diz Antonio.
Graças a essa essência arcaica e divina, que o homem antigo valorizava, o fogo está presente em praticamente todas as crenças. "É um dos símbolos religiosos mais constantes", afirma. Independente da religião, representa o sagrado. No judaísmo e em diversas outras religiões, o fogo tinha função primordial nos rituais de sacrifício e purificação. Na Bíblia, no Antigo Testamento, Deus se apresenta a Moisés como uma sarça – um tipo de arbusto – ardente. No Novo Testamento, as línguas de fogo sobre os apóstolos e Maria representam o Espírito Santo, uma extensão do poder divino para os homens propagarem o Evangelho. As chamas do inferno são sinal de punição aos ímpios. "O sagrado, que o fogo representa, tanto premia quanto castiga", afirma Antonio.
E assim segue nossa eterna relação de amor e ódio, de conforto e medo, com o fogo. Ao mesmo tempo em que ele é um presente dos deuses aos homens, no fim de junho, enquanto esta reportagem estava sendo finalizada, o Estado americano do Arizona ardia em chamas. O incêndio já havia destruído 375 casas nas montanhas do leste do Estado. Seis cidades tinham sido desocupadas e 30 000 pessoas precisaram abandonar seus lares. A região mais parecia uma zona de guerra.
A domesticação do fogo mudou a trajetória da espécie humana
O fogo representa o sagrado. E ele tanto premia quanto castiga
Na livraria
Fire: A Brief History, Stephen Pyne, University of Washington Press, Estados Unidos, 2001
A Psicanálise do Fogo, Gaston Bacherlard, Martins Fontes, São Paulo, 1999
Na internet
www.public.asu.edu/~spyne
Revista Superinteressante
O fogo nos acompanha há milhares de anos, ora como um benfeitor imprescindível, ora como um algoz implacável. Ao mesmo tempo sedutor e perigoso, ele aquece mas também destrói
Maria Fernanda Vomero
Conta a mitologia grega que o fogo, símbolo da inteligência e do conhecimento, era propriedade exclusiva dos deuses. Sem ele, os homens sobreviviam com dificuldades, pois não tinham as aptidões necessárias para levar a cabo uma série de tarefas. Na tentativa de ajudar a humanidade, o titã Prometeu decidiu roubar o fogo do Olimpo e dá-lo aos mortais. Ensinou os homens a lidar com as labaredas para cozinhar os alimentos e enfrentar o frio. O castigo para tamanha ousadia não tardou. Furioso, Zeus, o deus dos deuses, acorrentou Prometeu ao topo do monte Cáucaso, onde, diariamente, uma águia ia lhe devorar o fígado, que se regenerava durante a noite.
O mito de Prometeu e narrativas similares presentes em outras culturas enfatizam que os homens se distinguiram do restante da criação e se tornaram verdadeiramente humanos quando conquistaram o domínio sobre o fogo. Passaram, então, a possuir uma parcela do poder divino – e, por causa disso, na história grega, Prometeu foi punido. Olhe e constate como o fogo está presente na vida cotidiana, na indústria, nas práticas agrícolas e até nos rituais religiosos.
"O fogo nos tornou tecnologicamente poderosos", diz o biólogo Stephen Pyne, da Universidade do Estado do Arizona, Estados Unidos. "Tudo o que os homens tocaram, o fogo também tocou. Juntos, cruzaram desertos e geleiras, atravessaram florestas e colonizaram a Terra." Apaixonado pelo assunto, Pyne já escreveu 11 livros sobre o assunto. No último deles, Fire: A Brief History (Fogo: uma breve história, inédito em português), faz uma espécie de biografia desse que se revelou um companheiro inseparável do homem.
Esse relacionamento ancestral pode ter começado há aproximadamente 400 000 anos, segundo os vestígios de fogueira mais antigos encontrados em sítios arqueológicos na Hungria e no norte da China. Os hominídeos da espécie Homo heidelbergensis – intermediária entre o Homo erectus e o Homo sapiens – provavelmente vagaram milhares de anos pelo deserto sem ter visto o fogo. Imagine quão surpresos devem ter ficado quando se depararam pela primeira vez com um vulcão em erupção ou com uma floresta em chamas. Se buscaram imediatamente aconchego junto às labaredas ou se fugiram amedrontados, como os outros animais faziam por instinto, não se sabe. Mas, em algum momento, aqueles hominídeos perceberam que podiam conservar brasas dos incêndios que destruíam as árvores atingidas por raios. Aprenderam também que determinados materiais secos, como a madeira, queimavam e produziam luz e calor.
A domesticação do fogo mudou completamente o ritmo de vida dos hominídeos. Eles, que antes viviam em árvores ou refúgios terrestres fugindo dos bichos ferozes, começaram a usar as fogueiras na entrada dos abrigos, como fonte de calor e como proteção contra as feras. Assim, conseguiam dormir tranqüilos. "O fogo trouxe segurança psicológica", afirma o arqueólogo André Prous, da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). "Os hominídeos passaram a ter períodos mais longos de sono. E, graças ao sono profundo, é provável que tenham começado a sonhar, o que levou a uma sofisticação gradativa da psique humana."
O fogo teve igualmente um papel agregador, favorecendo a sociabilidade e a convivência. Os membros do grupo sentavam-se ao redor da fogueira para suas primeiras atividades tecnológicas, como a produção de pontas de madeira endurecidas com a ajuda das chamas. "Por ficarem cara a cara durante um tempo maior, os hominídeos possivelmente acabaram desenvolvendo uma comunicação mais intensa entre eles", diz André. A dieta dos homens primitivos também se modificou. Com o cozimento, os alimentos ganharam em sabor e digestibilidade, uma vez que o fogo destrói parte das toxinas presentes tanto na carne crua quanto em alguns vegetais.
"O fogo trouxe uma capacidade adaptativa muito grande para a espécie humana", diz o antropólogo Walter Neves, da Universidade de São Paulo (USP). "Possibilitou que os hominídeos deixassem as zonas tropicais e partissem para a ocupação de territórios inóspitos, onde não havia outros grandes primatas que pudessem competir com eles." Adaptados ao calor, os primatas geralmente se restringem à região dos trópicos – chegam, no máximo, às áreas subtropicais. Sem o fogo, terras geladas como a Escandinávia e o Alasca não teriam sido povoadas. "O Homo heidelbergensis já estava presente no norte da Europa, o que, no inverno, só foi possível devido ao fogo", diz Walter.
A grande preocupação do homem primitivo era manter as labaredas sempre acesas. Perder o fogo poderia ser uma verdadeira catástrofe, conforme retratou o cineasta canadense Jean Jacques Annaud em seu filme A Guerra do Fogo, de 1981, uma espécie de história romanceada da domesticação do fogo. Os hominídeos eram nômades e carregavam suas tochas em chamas ou brasas quando se deslocavam. Assim foi até aprenderem a produzir as primeiras faíscas, por meio do atrito entre varetas de madeira ou entre alguns tipos de pedra. Ao mesmo tempo em que conquistavam a independência, tornavam-se mais dependentes das labaredas. "Para a humanidade, cuja identidade biológica deriva do objetivo inicial de manter a chama acesa, não houve mais maneiras de fugir do fogo", diz Stephen Pyne.
O fogo surgiu no planeta provavelmente entre 400 e 350 milhões de anos atrás, simultaneamente à formação de descargas elétricas na atmosfera terrestre e ao desenvolvimento das primeiras espécies vegetais. A vida, portanto, criou condições propícias para o fogo. "Fósseis do período carbonífero já apresentam evidências de incêndios, mas não é possível afirmar que esse período geológico marque o surgimento do fogo. Ele pode ter aparecido muito antes", afirma o engenheiro florestal Ronaldo Viana Soares, da Universidade Federal do Paraná (UFPR). "Os raios originaram o fogo naquele período e ainda hoje continuam a provocar incêndios em diversas partes da Terra."
Para que haja fogo, é preciso que aconteça a combustão – em outras palavras, a combinação entre oxigênio e uma substância combustível, induzida por uma fonte de calor, como os raios ou a chama de um palito de fósforo. Os produtos dessa reação química são chamas, luz e energia calorífera. Qualquer tipo de matéria orgânica pode funcionar como combustível, mas existem também combustíveis não-orgânicos, em geral gases. O fósforo é um exemplo – combina-se tão facilmente com o oxigênio que pode produzir chamas simplesmente se exposto ao ar. É a chamada combustão espontânea. "Em geral, em lugares onde há acúmulo de ossos, como um cemitério, é comum haver uma grande quantidade de fósforo sob a terra", diz o engenheiro florestal Antonio Carlos Batista, da UFPR. "Se uma rocha desliza até o local e provoca uma faísca, pode desencadear uma combustão."
O fogo apronta outras peças. Estamos acostumados a chamas azuladas, resultado de uma combustão completa, ou seja, da combinação equilibrada entre combustível e oxigênio. Num incêndio urbano, as chamas costumam ser amareladas, o que pode ser conseqüência tanto de uma combustão incompleta – já que a quantidade de oxigênio é insuficiente –, quanto da queima de sódio, que libera luz amarela. Mas às vezes a chama pode ser invisível, como no caso da combustão do metanol. Existe fogo, contudo você não o vê e pode se queimar de maneira "inexplicável". Isso acontece com pilotos de algumas provas de automobilismo que usam o metanol como combustível.
Travessuras à parte, o fogo tem um papel ecológico importantíssimo. "Existem muitos ecossistemas que têm o fogo como elemento fundamental. Dependem dele para não desaparecer", diz Antonio Carlos. As florestas de coníferas – também conhecidas como florestas de pinheiros – são um exemplo. Espécies "dinossauras", bem antigas na escala evolutiva, somente sobrevivem até os dias de hoje graças à ação das chamas. As coníferas são resistentes aos incêndios de média intensidade. Precisam do fogo para quebrar as pinhas e espalhar as sementes e também para eliminar as espécies mais agressivas e mais desenvolvidas (as árvores folhosas), que as suprimiriam caso não houvesse chamas.
"Os regimes de fogo exercem influência marcante na dinâmica da vegetação, isto é, nos processos de sucessão e predominância de espécies", afirma Ronaldo Soares. (Por regime de fogo, entenda a freqüência, a época de ocorrência e a intensidade dos incêndios.) Veja o caso do cerrado brasileiro e da savana africana, cuja "fisionomia" se deve aos incêndios intermitentes nessas regiões. As espécies mais adaptadas se regeneram com facilidade depois do fogaréu. Nos primórdios da Terra, a distribuição da maioria dos ecossistemas vegetais no planeta foi influenciada pelas chamas. "Mas a ação humana, por meio da derrubada de florestas, alterou a harmonia entre fogo e vegetação", diz Ronaldo. Os produtos da devastação, como tocos de árvores e pedaços de galhos, incrementaram a quantidade de combustível existente. Os incêndios naturais, antes periódicos, passaram a ser mais freqüentes e intensos, destruindo até espécies mais resistentes.
Sob forma prescrita e controlada, as queimadas podem substituir o fogo natural, contribuindo para a continuidade de ecossistemas dependentes das chamas. No entanto, boa parte dos incêndios provocados pelo homem fogem do controle – eis a face perversa do fogo. No Brasil, os produtores rurais usam as queimadas com freqüência para limpar o solo e deixá-lo fertilizado para a agricultura ou para a pastagem. Se são feitas sem cuidados básicos, como a preparação de aceiros (valas sem vegetação que impedem o avanço do fogo), destroem tudo o que está por perto – o próprio pasto, plantações vizinhas, mata nativa.
No mundo inteiro, os números do fogo sem controle são impressionantes. Segundo dados do Centro de Monitoramento do Fogo Global (GFMC, na sigla em inglês), anualmente de 20 000 a 100 000 quilômetros quadrados de florestas de coníferas queimam na Rússia. Nos Estados Unidos, o fogo consome 20 000 quilômetros quadrados anuais de vegetação nativa, o equivalente a um Estado de Sergipe. E cerca de 3 milhões de quilômetros quadrados de savanas tropicais e subtropicais são destruídas por incêndios a cada ano – um pouco mais que a área da região norte do Brasil inteira. É muita coisa.
"O fogo é bom servo, mas um mau senhor", diz um ditado. Ele pode ser o melhor dos amigos, mas é também o pior dos inimigos. Um exemplo? O trágico incêndio que consumiu um longo trecho de Floresta Amazônica no Estado de Roraima, em 1998. O fogaréu acabou com cerca de 40 000 quilômetros quadrados de vegetação – uma Suíça inteira. No final de 2001, duas tragédias. A explosão de uma loja de fogos de artifício em Lima, capital do Peru, cobriu de chamas o centro histórico da cidade e matou quase 300 pessoas. Na Austrália, uma brincadeira de garotos deu início a um incêndio de grandes proporções, destruindo 150 casas e 3 000 quilômetros quadrados de floresta, quase duas vezes a área de Londres (aliás, um dos lugares do planeta onde, ironicamente, seria difícil viver sem o fogo).
Essa dualidade do fogo está presente na cultura humana desde as origens. "Ele brilha no Paraíso, abrasa no Inferno. É doçura e tortura", escreveu o francês Gaston Bachelard, em A Psicanálise do Fogo, um ensaio instigante sobre as razões psicológicas da nossa estreita ligação com o fogo. "O fogo sugere o desejo de mudar, de apressar o tempo, de levar a vida a seu termo, a seu além." Une o instinto de viver e o instinto de morrer, o ganhar e o perder, segundo Bachelard. Daí o assombro que um incêndio, mesmo destruidor, provoca.
Não há como negar que a contemplação das chamas gera um encantamento ímpar. Conforme Bachelard, o fogo encerrado na lareira – reproduzindo a imagem da fogueira, a companheira de evolução – foi certamente o primeiro tema de devaneio para o homem, um convite ao repouso. Não se entregar a esse devaneio é perder o sentido verdadeiramente primeiro e humano do fogo: o símbolo natural, comovente e incessante, que descreve o destino dos homens. "Uma fagulha que se desprende na fumaça é suficiente para nos impelir ao nosso destino", afirma. "O ser fascinado ouve o apelo da fogueira. Para ele, a destruição é mais do que uma mudança, é uma renovação."
Para a psiquiatra Maria Zélia de Alvarenga, da Sociedade Brasileira de Psicologia Analítica, figuras míticas, como as divindades gregas, também podem explicar a relação ambígua do homem com as chamas. De um lado, temos Héstia, a deusa grega do fogo, presente nos lares e nos templos, por meio dos rituais celebrados ao redor da fogueira. Ela representa aconchego, calor, criatividade e sensualidade – o aspecto fascinante e envolvente do fogo. Do outro lado, encontramos Dioniso, o deus abrasador da embriaguez e da loucura. Semeia sexualidade, volúpia e insanidade – o caráter "perigoso" e descontrolado do fogo. "Essas imagens míticas traduzem realidades do nosso inconsciente", diz Maria Zélia. Quer dizer, também nós somos dúbios. Por isso, nos deixamos seduzir pelo fogo.
Desde os filósofos gregos pré-socráticos, o homem tenta compreender os mistérios das chamas. Heráclito de Éfeso, filósofo que viveu em torno do ano 500 a.C., afirmava que tudo procedia do fogo eternamente vivo e voltava ao mesmo fogo para dele surgir novamente, num processo circular de nascimento e destruição. "Heráclito concebia o fogo como divino porque ele é capaz de criar, destruir e transformar", afirma o especialista em religiões Antonio Gouvêa Machado, da Universidade Metodista de São Paulo. As mesmas chamas que fazem germinar as sementes transformam a matéria e permitem que ela volte à natureza sob a forma de cinzas que fertilizam a terra. Com o fogo, os mortais partilham do poder divino. "Nas sociedades primitivas, por exemplo, o ferreiro era respeitado como xamã porque tinha domínio sobre o fogo", diz Antonio.
Graças a essa essência arcaica e divina, que o homem antigo valorizava, o fogo está presente em praticamente todas as crenças. "É um dos símbolos religiosos mais constantes", afirma. Independente da religião, representa o sagrado. No judaísmo e em diversas outras religiões, o fogo tinha função primordial nos rituais de sacrifício e purificação. Na Bíblia, no Antigo Testamento, Deus se apresenta a Moisés como uma sarça – um tipo de arbusto – ardente. No Novo Testamento, as línguas de fogo sobre os apóstolos e Maria representam o Espírito Santo, uma extensão do poder divino para os homens propagarem o Evangelho. As chamas do inferno são sinal de punição aos ímpios. "O sagrado, que o fogo representa, tanto premia quanto castiga", afirma Antonio.
E assim segue nossa eterna relação de amor e ódio, de conforto e medo, com o fogo. Ao mesmo tempo em que ele é um presente dos deuses aos homens, no fim de junho, enquanto esta reportagem estava sendo finalizada, o Estado americano do Arizona ardia em chamas. O incêndio já havia destruído 375 casas nas montanhas do leste do Estado. Seis cidades tinham sido desocupadas e 30 000 pessoas precisaram abandonar seus lares. A região mais parecia uma zona de guerra.
A domesticação do fogo mudou a trajetória da espécie humana
O fogo representa o sagrado. E ele tanto premia quanto castiga
Na livraria
Fire: A Brief History, Stephen Pyne, University of Washington Press, Estados Unidos, 2001
A Psicanálise do Fogo, Gaston Bacherlard, Martins Fontes, São Paulo, 1999
Na internet
www.public.asu.edu/~spyne
Revista Superinteressante
2 comentários:
Eduaro!
Excelente postagem!
Amo o fogo e por ele sou atraída. Por acaso ontem, vi uma cene que fugia ao meu conhecimento: estava indo para Paulo de Frontin. quando na altura de Seropédica, um caminhão bateu que carregava combustível, bateu em um poste e tombou. As chamas se avolumaram, e saí do carro, pois a fumaça era sufocante. Debrucei sobre o viaduto e fiquei olhando o rio, e as chamas atingiram a água e, claro "a visão" era de um rio em chamas.
Fiquei fascinada, achava que qualquer tipo de combustão seria aplacada pelas águas.
Voltando ao texto, deve ter sido muito intrigante a manipulação do fogo e suas consequências. Poder, medo, curiosidade deve ter surgido daí com a preparação dos alimentos, a descoberta do sal. Como eles saberiam que o sal, se bem dosado, acentuaria o sabor?
O fogo místico ou simbólico, é sempre uma obra, no meu entender quase divina, no sentido de dar ao homem o conhecimento do uso.
Parabéns!
Abraços!
Mirze
Parabéns pelo post, Eduardo!
Está afim de fazer uma parceria?...
Uma grande abraço!!!
Valter Pitta
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