“OS DIABOS CÔMICOS”
AS CRIATURAS DO MAL NA LEGENDA ÁUREA (SÉCULO XIII)
Tereza Renata Silva Rocha1
AS CRIATURAS DO MAL NA LEGENDA ÁUREA (SÉCULO XIII)
Tereza Renata Silva Rocha1
Resumo: Análise das formas e funções pedagógicas das figuras do Mal – o Diabo e os demônios - na Legenda Áurea, um dos mais importantes exemplares da hagiografia medieval, escrita pelo dominicano Jacopo de Varazze na segunda metade do século XIII. Parte-se do pressuposto de que a hagiografia constituiu um recurso retoricamente elaborado e utilizado em larga escala pela Igreja para transmitir seus ensinamentos e atuar sobre as condutas dos fiéis. Para facilitar a recepção desta mensagem, os dominicanos utilizaram-se do exemplum, uma modalidade de discurso didático, cuja característica mais notável é a de conter duas artes distintas: a arte de ensinar e a arte de narrar. Nesse sentido, espera-se encontrar a representação das criaturas do Mal tida como a mais didática e comovente pelo autor, além da que reflete a cultura popular da qual este não está imune – “os diabos cômicos”.
Palavras-chave: Idade Média; Legenda Áurea; Demônios; Ordem Dominicana; Comicidade.
Durante o século XIII, a Igreja enfrentou inúmeros problemas, entre eles, o desenvolvimento de uma espiritualidade laica, o crescimento dos grupos heréticos e a persistência das práticas simoníacas e do nicolaísmo em meio aos clérigos. Estes problemas não eram novos: desde o século XI, a Igreja vinha tentando resolvê-los, buscando fundamentar a unidade da fé cristã e assegurar seu espaço no conflito de poderes que vigorava na Baixa Idade Média.
Integradas a este projeto surgem as ordens mendicantes, que defendem um apostolado mais ativo, caracterizado por um forte trabalho assistencial e pela pregação calcada no estudo das escrituras. Os mendicantes instalam-se no coração das cidades: lugares de valores, comportamentos e pecados novos. A cidade muitas vezes também é herética, local das contestações heterodoxas, das quais as dos cátaros são as mais visíveis e as que mais conquistaram adeptos. Os mendicantes conseguem penetrar nas cidades principalmente através da palavra. Diante dos hereges que discutem nas praças públicas e da sociedade urbana que tem necessidade de que lhe falem diretamente de Deus e de sua salvação, uma nova forma de pregação se estabelece. (LE GOFF, 2008, p.178).
Para facilitar a transmissão deste discurso, principalmente nos meios urbanos – ou seja, em locais onde a predominância dos interesses econômicos e a convivência de pessoas de diversas procedências estimulavam a contestação religiosa – os mendicantes desenvolveram novas técnicas de pregação. No sermão introduzem-se pequenas narrativas destinadas a ilustrar aspectos diversos da doutrina, os exempla.
Efetivamente, o pregador recorre ao exemplum não só para combater a ignorância, mas também o tédio, seu principal inimigo. O exemplum também serve para captar a atenção de um auditório, despertar seu interesse, seduzi-lo, conquistá-lo e, finalmente, persuadi-lo. Esta nova retórica também visa fazer seu público atuar. (LE GOFF, 1994).
É neste contexto que se produz a Legenda Áurea,2 uma compilação de vidas de santos escrita pelo frei dominicano Jacopo de Varazze, na segunda metade do século XIII. Ela se configura numa importante fonte para análise, pois é testemunho das estratégias político-religiosas da Igreja, sendo uma delas a de converter os pagãos e conter os heréticos utilizando-se da receptividade do culto dos santos. Além disso, a obra representa a necessidade de compilar, armazenar por escrito, refletindo a tentativa do clero de recuperar o controle sobre as mudanças da sociedade deste século XIII. (SOUZA, 2002).
Jacopo de Varazze, como um bom pregador, produz a Legenda Áurea como uma obra de instrução básica. Nas pequenas narrativas que integram cada capítulo – os exempla - vê-se esse grande potencial pedagógico, por serem breves, notáveis e facilmente destacáveis de seus contextos.
O Diabo e os demônios aparecem em grande parte das narrativas e estão inseridos na pedagogia dominicana contida na obra de Jacopo. Suas formas e ações na obra têm como um dos objetivos pressionar o público para que reaja ao pecado. As cidades, alvo maior da pregação dos mendicantes em geral e dos dominicanos em particular, são locais onde o pecado vigora e as manifestações heréticas têm espaço para se expandir. As figuras do Mal punem os pecadores de forma cruel e com a autorização de Deus.
Neste trabalho, procura-se analisar as figuras do Diabo e dos demônios na Legenda Áurea. Será enfocado, principalmente, um aspecto interessante que estas figuras tomam na obra, a comicidade. O século XIII é uma época de grande importância para a história do Diabo.
Tomás de Aquino e seus contemporâneos mostram um Diabo mais respeitado. A doutrina da Igreja sobre Satanás torna-se mais complexa, como explicita Carlos Roberto Nogueira (2000, p.56):
Os demônios são anjos malignos que tinham a capacidade de animar corpos e comunicar seus conhecimentos e mandamentos aos homens. Compunham um exército hierarquicamente organizado sob o comando de Satã, trabalhando para a perdição da humanidade.
Contudo, esta não era a única representação das criaturas do Mal. O fato de têlas cada vez mais presente, proporcionou a assimilação em níveis mais domésticos.
Devemos, então, lembrar que não era só a orientação canônica a responsável pelo desenvolvimento das imagens demoníacas, mas que estas refletiam, em parte, a vivência das pessoas. Coexistirão, desta forma, duas imagens do Diabo: a popular, na qual o demônio não será tão pavoroso quanto o fazia crer a Igreja, e a erudita, a visão da Igreja.
A primeira demonstra a forma como a cultura popular3 se defendeu da assustadora teologia erudita. Em resposta, aparecia a Igreja, com sermões, catecismos, obras demonológicas e processos de bruxaria.
É no século XIII que as afirmações teológicas sobre o Maligno começam a ser melhor propagadas para a população. Jacques Le Goff ainda lembra que, apesar da doutrina da Igreja sobre o Diabo, todo o pensamento e o comportamento dos homens da Idade Média eram dominados “por um maniqueísmo mais ou menos consciente, mais ou menos sumário.” (LE GOFF, 2005, p.154). Para essas pessoas, de um lado estava Deus, de outro, estava o Diabo.
O Diabo e os demônios podem se manifestar em qualquer coisa ou em qualquer pessoa. Eles são os mestres do disfarce. Aparecem na obra assumindo a forma de outros seres, compostos de ar, vapor, fumaça ou emanações de sangue fresco.
Os demônios são negros: por diversas vezes eles são descritos como sendo “negros como etíopes”.4 Identificada com o vazio, com a noite e as trevas, assim como com o mundo subterrâneo, e em última instância com a morte, a cor negra de forma muito incisiva aparece como uma das características dos demônios – em oposição à brancura e à luz, um dos signos mais relevantes das divindades positivas e, claramente, do próprio Deus. Além disto, o demônio possui uma aparência assustadora:
...etíope negro como fuligem, rosto anguloso, barba farta, cabelos longos até aos pés, olhos inflamados que soltavam faíscas como ferro incandescente, enquanto da boca e dos olhos saíam espirais de chamas sulfúreas.5
Estes seres horríveis só aparecem assim para os santos, nunca para uma pessoa comum, o que fugiria de seu objetivo. Já Satanás tem a forma de “um etíope de grande estatura”. (LA, p.421). Possui “olhos e boca que pareciam lançar chamas”. (LA, p.300). Na história de Santo Antônio, é representado como um gigante que captura as almas que se dirigem ao Céu. (LA, p.174). Crisóstomo fala do Diabo como uma figura que engole os pecadores. (LA, p.522). Então, a imagem que prevalece é a de um gigante negro assustador, aparecendo assim com o claro intuito de provocar medo por seu tamanho e sua força.
Entretanto, nem sempre o Diabo e seu séquito provocam medo nas pessoas, ao contrário, em algumas narrativas da Legenda Áurea, essas criaturas promovem o riso, estão ligadas ao humor.
Em certos momentos, Jacopo deixa entrever algo do mundo popular, cômico, na hora de mostrar as criaturas do Mal. O Diabo popular não era tão pavoroso quanto o fazia crer a Igreja, mas, sim, um ser patético e divertido. Na história da Santa Margarida vê-se um demônio sendo toscamente vencido por uma mulher.
Mas ela agarrou-o pela cabeça, jogou-o ao chão, pôs o pé sobre seu pescoço e disse: “Demônio soberbo, seja esmagado pelos pés de uma mulher”. O demônio gritava: “Ó bem-aventurada Margarida, você me superou! Se um rapaz tivesse me vencido, eu não me incomodaria, mas dói-me muito ser superado por uma mocinha cujo pai e cuja mãe foram meus amigos”. (LA, p.537).
É interessante notar a comicidade da cena e a fala do demônio reconhecendo sua patética derrota para uma jovem, o que também ocorre quando é derrotado por Santa Juliana.
Minha senhora Juliana, não me torne ainda mais ridículo, pois de hoje em diante não poderei mais dominar quem quer que seja. Dizem que os cristãos são misericordiosos, mas você não tem piedade de mim. (LA, p.67).
O Diabo também sofre com seus escravos que decidem voltar para Deus. Como foi o caso de São Cristóvão: andando com o Diabo, Cristóvão percebe que este muda de caminho quando encontra uma cruz elevada na estrada. Curioso, o homem pergunta porque o Diabo teve tanto medo da cruz a ponto de deixar uma via plana para seguir um desvio tão acidentado. O Diabo, depois de muito hesitar, respondeu:
Um homem que se chama Cristo foi pregado em uma cruz, e quando vejo a imagem desta cruz tenho grande medo e fujo assustado”. Cristóvão: “Então este Cristo, cujo signo você tanto receia, é maior e mais poderoso? Então tenho trabalhado em vão, pois ainda não encontrei o maior príncipe do mundo. Adeus, quero ir embora para procurar este Cristo. (LA, p.572).
Esta mescla do sério com o cômico tem uma intenção didática e moralizante. A Legenda Áurea foi composta visando, além dos pregadores, um público maior: os fiéis que não tinham acesso à leitura. Os clérigos seriam os consumidores imediatos da obra, leriam ou ouviriam a compilação e a utilizariam, remodelando-a a parir de suas próprias prerrogativas, para compor os seus sermões. Os leigos ouviriam os sermões compostos pelo material compilado e adaptado pelo frade dominicano.
Os “diabos cômicos” aparecem na narrativa para “fazer rir”, tornar a história agradável aos leitores/ouvintes. Aliás, Jacopo realiza este procedimento em muitas histórias de santos que compila, conferindo-lhes uma emoção que talvez não existisse nas suas fontes, dramatizando melhor as narrativas visando um público que precisa se emocionar, se comover com as histórias. Esta é uma característica, como já foi dito aqui, do exemplum: não só pretende deleitar o público, mas também mover os ânimos dos ouvintes, fazendo-os atuar. Para tanto, as histórias precisam ser atraentes.
Deste modo, aqui está uma consideração relevante sobre a representação demoníaca na Legenda Áurea: além de mostrar o que não se deve fazer, de reforçar o poder dos santos, o Diabo e seu séquito também funcionam como um elemento retórico que ajuda a dramatizar as histórias. Isso ocorre através da comicidade, de seus múltiplos
nomes, das lutas que travam com os santos e a Virgem, dentre outros.
Para concluir, convém lembrar que Jacopo de Varazze, apesar de ter tido uma formação eclesiástica - portanto erudita -, não estava alheio à cultura popular. Ele também estava preso às antigas e heterogêneas heranças culturais, expressando convicções religiosas nascidas dessa confluência, que faz parte das bases do cristianismo.6 Assim, esses “diabos cômicos” encontrados nas narrativas de Jacopo não foram somente um esforço para atrair os fiéis, mas também faziam parte da experiência religiosa e cultural do dominicano.
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História – UFF. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico: tereza_rocha@ymail.com.
2 Neste trabalho, utilizo a seguinte edição: VARAZZE, 2003.
3 Aqui tomo a definição de Jacques Le Goff sobre a cultura popular ou folclórica: “Por cultura folclórica entendo sobretudo a camada profunda da cultura (ou da civilização) tradicional... subjacente em toda a sociedade histórica e, parece-me aflorando ou prestes a aflorar na desorganização que reinou entre a Antiguidade e a Idade Média.” (LE GOFF, 1993, p.212).
4 Como, por exemplo, em VARAZZE, 2003, p.218.
5 A partir de agora usarei para me referir à Legenda a sigla L.A.(p.699).
6 Como nos lembra Néri de Almeida Souza em seu artigo (2002, p.75).
Palavras-chave: Idade Média; Legenda Áurea; Demônios; Ordem Dominicana; Comicidade.
Durante o século XIII, a Igreja enfrentou inúmeros problemas, entre eles, o desenvolvimento de uma espiritualidade laica, o crescimento dos grupos heréticos e a persistência das práticas simoníacas e do nicolaísmo em meio aos clérigos. Estes problemas não eram novos: desde o século XI, a Igreja vinha tentando resolvê-los, buscando fundamentar a unidade da fé cristã e assegurar seu espaço no conflito de poderes que vigorava na Baixa Idade Média.
Integradas a este projeto surgem as ordens mendicantes, que defendem um apostolado mais ativo, caracterizado por um forte trabalho assistencial e pela pregação calcada no estudo das escrituras. Os mendicantes instalam-se no coração das cidades: lugares de valores, comportamentos e pecados novos. A cidade muitas vezes também é herética, local das contestações heterodoxas, das quais as dos cátaros são as mais visíveis e as que mais conquistaram adeptos. Os mendicantes conseguem penetrar nas cidades principalmente através da palavra. Diante dos hereges que discutem nas praças públicas e da sociedade urbana que tem necessidade de que lhe falem diretamente de Deus e de sua salvação, uma nova forma de pregação se estabelece. (LE GOFF, 2008, p.178).
Para facilitar a transmissão deste discurso, principalmente nos meios urbanos – ou seja, em locais onde a predominância dos interesses econômicos e a convivência de pessoas de diversas procedências estimulavam a contestação religiosa – os mendicantes desenvolveram novas técnicas de pregação. No sermão introduzem-se pequenas narrativas destinadas a ilustrar aspectos diversos da doutrina, os exempla.
Efetivamente, o pregador recorre ao exemplum não só para combater a ignorância, mas também o tédio, seu principal inimigo. O exemplum também serve para captar a atenção de um auditório, despertar seu interesse, seduzi-lo, conquistá-lo e, finalmente, persuadi-lo. Esta nova retórica também visa fazer seu público atuar. (LE GOFF, 1994).
É neste contexto que se produz a Legenda Áurea,2 uma compilação de vidas de santos escrita pelo frei dominicano Jacopo de Varazze, na segunda metade do século XIII. Ela se configura numa importante fonte para análise, pois é testemunho das estratégias político-religiosas da Igreja, sendo uma delas a de converter os pagãos e conter os heréticos utilizando-se da receptividade do culto dos santos. Além disso, a obra representa a necessidade de compilar, armazenar por escrito, refletindo a tentativa do clero de recuperar o controle sobre as mudanças da sociedade deste século XIII. (SOUZA, 2002).
Jacopo de Varazze, como um bom pregador, produz a Legenda Áurea como uma obra de instrução básica. Nas pequenas narrativas que integram cada capítulo – os exempla - vê-se esse grande potencial pedagógico, por serem breves, notáveis e facilmente destacáveis de seus contextos.
O Diabo e os demônios aparecem em grande parte das narrativas e estão inseridos na pedagogia dominicana contida na obra de Jacopo. Suas formas e ações na obra têm como um dos objetivos pressionar o público para que reaja ao pecado. As cidades, alvo maior da pregação dos mendicantes em geral e dos dominicanos em particular, são locais onde o pecado vigora e as manifestações heréticas têm espaço para se expandir. As figuras do Mal punem os pecadores de forma cruel e com a autorização de Deus.
Neste trabalho, procura-se analisar as figuras do Diabo e dos demônios na Legenda Áurea. Será enfocado, principalmente, um aspecto interessante que estas figuras tomam na obra, a comicidade. O século XIII é uma época de grande importância para a história do Diabo.
Tomás de Aquino e seus contemporâneos mostram um Diabo mais respeitado. A doutrina da Igreja sobre Satanás torna-se mais complexa, como explicita Carlos Roberto Nogueira (2000, p.56):
Os demônios são anjos malignos que tinham a capacidade de animar corpos e comunicar seus conhecimentos e mandamentos aos homens. Compunham um exército hierarquicamente organizado sob o comando de Satã, trabalhando para a perdição da humanidade.
Contudo, esta não era a única representação das criaturas do Mal. O fato de têlas cada vez mais presente, proporcionou a assimilação em níveis mais domésticos.
Devemos, então, lembrar que não era só a orientação canônica a responsável pelo desenvolvimento das imagens demoníacas, mas que estas refletiam, em parte, a vivência das pessoas. Coexistirão, desta forma, duas imagens do Diabo: a popular, na qual o demônio não será tão pavoroso quanto o fazia crer a Igreja, e a erudita, a visão da Igreja.
A primeira demonstra a forma como a cultura popular3 se defendeu da assustadora teologia erudita. Em resposta, aparecia a Igreja, com sermões, catecismos, obras demonológicas e processos de bruxaria.
É no século XIII que as afirmações teológicas sobre o Maligno começam a ser melhor propagadas para a população. Jacques Le Goff ainda lembra que, apesar da doutrina da Igreja sobre o Diabo, todo o pensamento e o comportamento dos homens da Idade Média eram dominados “por um maniqueísmo mais ou menos consciente, mais ou menos sumário.” (LE GOFF, 2005, p.154). Para essas pessoas, de um lado estava Deus, de outro, estava o Diabo.
O Diabo e os demônios podem se manifestar em qualquer coisa ou em qualquer pessoa. Eles são os mestres do disfarce. Aparecem na obra assumindo a forma de outros seres, compostos de ar, vapor, fumaça ou emanações de sangue fresco.
Os demônios são negros: por diversas vezes eles são descritos como sendo “negros como etíopes”.4 Identificada com o vazio, com a noite e as trevas, assim como com o mundo subterrâneo, e em última instância com a morte, a cor negra de forma muito incisiva aparece como uma das características dos demônios – em oposição à brancura e à luz, um dos signos mais relevantes das divindades positivas e, claramente, do próprio Deus. Além disto, o demônio possui uma aparência assustadora:
...etíope negro como fuligem, rosto anguloso, barba farta, cabelos longos até aos pés, olhos inflamados que soltavam faíscas como ferro incandescente, enquanto da boca e dos olhos saíam espirais de chamas sulfúreas.5
Estes seres horríveis só aparecem assim para os santos, nunca para uma pessoa comum, o que fugiria de seu objetivo. Já Satanás tem a forma de “um etíope de grande estatura”. (LA, p.421). Possui “olhos e boca que pareciam lançar chamas”. (LA, p.300). Na história de Santo Antônio, é representado como um gigante que captura as almas que se dirigem ao Céu. (LA, p.174). Crisóstomo fala do Diabo como uma figura que engole os pecadores. (LA, p.522). Então, a imagem que prevalece é a de um gigante negro assustador, aparecendo assim com o claro intuito de provocar medo por seu tamanho e sua força.
Entretanto, nem sempre o Diabo e seu séquito provocam medo nas pessoas, ao contrário, em algumas narrativas da Legenda Áurea, essas criaturas promovem o riso, estão ligadas ao humor.
Em certos momentos, Jacopo deixa entrever algo do mundo popular, cômico, na hora de mostrar as criaturas do Mal. O Diabo popular não era tão pavoroso quanto o fazia crer a Igreja, mas, sim, um ser patético e divertido. Na história da Santa Margarida vê-se um demônio sendo toscamente vencido por uma mulher.
Mas ela agarrou-o pela cabeça, jogou-o ao chão, pôs o pé sobre seu pescoço e disse: “Demônio soberbo, seja esmagado pelos pés de uma mulher”. O demônio gritava: “Ó bem-aventurada Margarida, você me superou! Se um rapaz tivesse me vencido, eu não me incomodaria, mas dói-me muito ser superado por uma mocinha cujo pai e cuja mãe foram meus amigos”. (LA, p.537).
É interessante notar a comicidade da cena e a fala do demônio reconhecendo sua patética derrota para uma jovem, o que também ocorre quando é derrotado por Santa Juliana.
Minha senhora Juliana, não me torne ainda mais ridículo, pois de hoje em diante não poderei mais dominar quem quer que seja. Dizem que os cristãos são misericordiosos, mas você não tem piedade de mim. (LA, p.67).
O Diabo também sofre com seus escravos que decidem voltar para Deus. Como foi o caso de São Cristóvão: andando com o Diabo, Cristóvão percebe que este muda de caminho quando encontra uma cruz elevada na estrada. Curioso, o homem pergunta porque o Diabo teve tanto medo da cruz a ponto de deixar uma via plana para seguir um desvio tão acidentado. O Diabo, depois de muito hesitar, respondeu:
Um homem que se chama Cristo foi pregado em uma cruz, e quando vejo a imagem desta cruz tenho grande medo e fujo assustado”. Cristóvão: “Então este Cristo, cujo signo você tanto receia, é maior e mais poderoso? Então tenho trabalhado em vão, pois ainda não encontrei o maior príncipe do mundo. Adeus, quero ir embora para procurar este Cristo. (LA, p.572).
Esta mescla do sério com o cômico tem uma intenção didática e moralizante. A Legenda Áurea foi composta visando, além dos pregadores, um público maior: os fiéis que não tinham acesso à leitura. Os clérigos seriam os consumidores imediatos da obra, leriam ou ouviriam a compilação e a utilizariam, remodelando-a a parir de suas próprias prerrogativas, para compor os seus sermões. Os leigos ouviriam os sermões compostos pelo material compilado e adaptado pelo frade dominicano.
Os “diabos cômicos” aparecem na narrativa para “fazer rir”, tornar a história agradável aos leitores/ouvintes. Aliás, Jacopo realiza este procedimento em muitas histórias de santos que compila, conferindo-lhes uma emoção que talvez não existisse nas suas fontes, dramatizando melhor as narrativas visando um público que precisa se emocionar, se comover com as histórias. Esta é uma característica, como já foi dito aqui, do exemplum: não só pretende deleitar o público, mas também mover os ânimos dos ouvintes, fazendo-os atuar. Para tanto, as histórias precisam ser atraentes.
Deste modo, aqui está uma consideração relevante sobre a representação demoníaca na Legenda Áurea: além de mostrar o que não se deve fazer, de reforçar o poder dos santos, o Diabo e seu séquito também funcionam como um elemento retórico que ajuda a dramatizar as histórias. Isso ocorre através da comicidade, de seus múltiplos
nomes, das lutas que travam com os santos e a Virgem, dentre outros.
Para concluir, convém lembrar que Jacopo de Varazze, apesar de ter tido uma formação eclesiástica - portanto erudita -, não estava alheio à cultura popular. Ele também estava preso às antigas e heterogêneas heranças culturais, expressando convicções religiosas nascidas dessa confluência, que faz parte das bases do cristianismo.6 Assim, esses “diabos cômicos” encontrados nas narrativas de Jacopo não foram somente um esforço para atrair os fiéis, mas também faziam parte da experiência religiosa e cultural do dominicano.
1 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em História – UFF. Bolsista CAPES. Endereço eletrônico: tereza_rocha@ymail.com.
2 Neste trabalho, utilizo a seguinte edição: VARAZZE, 2003.
3 Aqui tomo a definição de Jacques Le Goff sobre a cultura popular ou folclórica: “Por cultura folclórica entendo sobretudo a camada profunda da cultura (ou da civilização) tradicional... subjacente em toda a sociedade histórica e, parece-me aflorando ou prestes a aflorar na desorganização que reinou entre a Antiguidade e a Idade Média.” (LE GOFF, 1993, p.212).
4 Como, por exemplo, em VARAZZE, 2003, p.218.
5 A partir de agora usarei para me referir à Legenda a sigla L.A.(p.699).
6 Como nos lembra Néri de Almeida Souza em seu artigo (2002, p.75).
Referências:
LE GOFF, Jacques. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia.
In: ______. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no
Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
______. O tempo do exemplum (século XIII). In:______. O imaginário medieval.
Lisboa: Editorial Estampa, 1994. pp.123-126.
______. A civilização do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2005.
______. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc, 2000.
SOUZA, Néri de Almeida. Palavra de púlpito e erudição no século XIII: A Legenda
Aurea de Jacopo de Varazze. Revista Brasileira de História, São Paulo, ano/vol. 22,
número 43, 2002. p.67-84.
VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea : vidas de santos. (Tradução, introdução e notas de
Hilário Franco Jr.) São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
LE GOFF, Jacques. Cultura clerical e tradições folclóricas na civilização merovíngia.
In: ______. Para um novo conceito de Idade Média. Tempo, trabalho e cultura no
Ocidente. Lisboa: Editorial Estampa, 1993.
______. O tempo do exemplum (século XIII). In:______. O imaginário medieval.
Lisboa: Editorial Estampa, 1994. pp.123-126.
______. A civilização do Ocidente medieval. São Paulo: EDUSC, 2005.
______. Uma longa Idade Média. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
NOGUEIRA, Carlos Roberto F. O Diabo no imaginário cristão. Bauru: Edusc, 2000.
SOUZA, Néri de Almeida. Palavra de púlpito e erudição no século XIII: A Legenda
Aurea de Jacopo de Varazze. Revista Brasileira de História, São Paulo, ano/vol. 22,
número 43, 2002. p.67-84.
VARAZZE, Jacopo. Legenda Áurea : vidas de santos. (Tradução, introdução e notas de
Hilário Franco Jr.) São Paulo: Companhia das Letras, 2003.
Revista AEDOS - UFRGS
Nenhum comentário:
Postar um comentário