Amélio Robles, andar de soldado velho: fotografia e masculinidade na Revolução Mexicana*
Gabriela Cano
Universidad Autónoma Metropolitana-Iztapalapa, México. gabcano@yahoo.com
RESUMO
O artigo apresenta a história da masculinização radical e permanente de uma jovem de origem rural a partir de sua incorporação na Revolução Mexicana. A análise, de um lado, aborda o processo de transgeneração de Robles, cuja identidade social e subjetiva, e aspecto físico, se masculinizam mediante o hábil manejo dos recursos culturais disponíveis em uma longínqua região rural mexicana no início do século XX: a performance de gênero – postura, gesto e vestuário –, a fotografia de estúdio e a imprensa sensacionalista. De outro, foram estudadas distintas percepções sobre Amélio Robles, confrontando retóricas de gênero vigentes no México pós-revolucionário, permeadas por discursos homofóbicos e transfóbicos.
Palavras-chave: Revolução Mexicana, Transgênero, Masculinidade, Performance de Gênero.
1. Janota do interior
Podemos imaginá-lo: um sorriso de satisfação desenhou-se no rosto de Amélio Robles ao observar o retrato de estúdio para o qual posara como um perfeito janota: terno escuro, camisa branca, gravata, chapéu preto de aba larga, sapatos de pelica e nesga de lenço branco no bolso do casaco. De pé e com um charuto numa mão, a outra posta sobre o revólver como para fazer ressaltar a arma que levava dependurada no coldre da cintura. Os elementos formais da fotografia – enquadramento, iluminação uniforme, entorno e, sobretudo, a pose contida e serena do sujeito colocado no centro da cenografia – se ajustam às convenções do retrato burguês, em que a pessoa fotografada usa seu melhor traje e posa com decoro.
Os retratos de estúdio procuravam estabelecer a identidade social do indivíduo fotografado segundo um código visual de elegância. Posar com um charuto aceso sugere um toque cosmopolita, enquanto que a exibição do revólver, moderno substituto do sabre e arma preferida nos duelos de cavalheiros de princípio do século, simboliza a virilidade do sujeito. A masculinidade da pose, o gesto e o vestuário do jovem são perfeitamente críveis. Nenhum observador dessa época ou de qualquer outra imaginaria que o janota do retrato foi antes uma dama.
Este artigo trata da história da masculinização radical e permanente de uma jovem de origem rural a partir de sua incorporação à Revolução Mexicana. Por razões mais vitais do que ideológicas Amélio Robles, que antes se chamou Amélia Robles, uniu-se às forças levantadas no sul do país sob a bandeira zapatista e, em meio às durezas da guerra, forjou-se uma identidade social e subjetiva masculina. Ao fim da luta armada, Amélio Robles continuou a ostentar-se varonil e manteve sua identidade masculina ao longo da vida, em sua atividade pública e na esfera privada, durante a velhice e a doença.
A masculinização eficaz e permanente de Amélio Robles deve ser distinguida do travestismo estratégico – adoção de traje masculino para fazer-se passar por homem – a que algumas mulheres recorrem em períodos de guerra, seja para proteger-se da violência sexual que costuma acentuar-se durante conflitos armados, seja para alcançar postos militares, seja simplesmente para lutar como soldados, sem as restrições sociais de gênero que pesavam sobre as soldaderas, mulheres do campo que desde as guerras do século XIX marchavam na retaguarda dos exércitos encarregando-se do suprimento das tropas e da atenção aos feridos e ocasionalmente de mensagens e contrabando de armas e mantimentos, e só excepcionalmente pegavam em armas. É possível que considerações de natureza prática como essas estivessem presentes em Robles, mas sua mudança radical de identidade de gênero e sexual não obedeceu apenas a um afã de desfrutar das vantagens sociais dos homens, mas parece ter sido fruto de um desejo vital profundo. Um desejo, realizado, de negar sua anatomia sexual de nascimento e masculinizar-se de maneira radical em todos os aspectos de sua vida.
A terminologia atual classificaria Amélio Robles como uma pessoa transgênero, forma de identificação subjetiva que leva à adoção da aparência corporal e do papel social de gênero atribuído ao sexo oposto. As identificações transgênero supõem uma rejeição radical à imagem corporal socialmente recebida e à anatomia sexual de nascença. A palavra transgênero alude a mudanças de grau e duração variadas de identidade e corpo, enquanto que a transexualidade se refere à mudança de sexo, alcançada através de intervenções cirúrgicas e terapias hormonais que transformam definitivamente as características sexuais do corpo. A demanda por esse tipo de alteração corporal se manifestou ao longo do século XX, mas a tecnologia médica só esteve disponível em algumas instituições hospitalares européias e norte-americanas a partir dos anos da guerra fria.1 No caso de que tratamos, não houve tratamento médico. Amélio Robles masculinizou-se mediante um uso eficaz de pose, gesto, vestuário e fotografias, recursos culturais a seu alcance numa afastada região rural na Serra de Guerrero. A masculinidade encarnada por Amélio Robles e aceita por seus contemporâneos foi uma performance orquestrada mediante poses e movimentos corporais, gestos faciais, um vestuário bem escolhido e um manejo hábil da cultura visual do corpo inaugurada pela fotografia de estúdio, que, na primeira década do século XX, pôs ao alcance de quase qualquer pessoa a possibilidade de causar uma impressão duradoura da imagem corporal desejada.
A historiografia da etapa armada da Revolução Mexicana interessou-se principalmente pelos aspectos ideológicos, políticos e militares da luta, mas o cotidiano nas trincheiras e o dia a dia dos exércitos foram escassamente estudados. A transgressão de Amélio Robles às normas de gênero aconteceu em meio aos deslocamentos forçados e à desordem social da guerra. No combate foram abandonados pudores e reservas ancestrais e surgiram espaços de tolerância como aquele que permitiu que Amélio Robles se construísse como um homem e gozasse de uma relativa aceitação de seus companheiros de armas, que admiravam sua valentia e sua capacidade como guerrilheiro. Nos campos de batalha, na presença constante da morte e em meio ao impulso destrutivo da guerra, também se fortaleceu uma ideologia de gênero, que deitava raízes na narrativa nacionalista do século XIX, e que identificava a masculinidade com as qualidades de valentia e arrojo pessoal, com atitudes patrióticas e ideologias revolucionárias. Com o passar do tempo, o estereótipo do revolucionário valente se convertia numa imagem ícone do discurso nacionalista do estado pós-revolucionário.2
De um ponto de vista teórico, interessado na historicização das categorias de homem e mulher, o estudo de Amélio Robles e das identidades transgênero tem relevância porque põe em dificuldades as classificações normativas de gênero e propõe novos modelos de identificação fundados no reconhecimento de desejos marginais mais do que em pactos culturais convencionais.3 Pose e gestos são, nos termos de Sylvia Molloy, uma declaração cultural do corpo e um ato político que, ao dar uma visibilidade exagerada a um desejo silenciado, como faz Robles, questiona a naturalidade atribuída às classificações sociais de gênero e à heterossexualidade normativa.4 A radical masculinização de Amélio Robles problematiza as categorias de homem e mulher e subverte a arraigada idéia de que a identidade de gênero é uma conseqüência imediata e inescapável da anatomia das pessoas e de que homens e mulheres são grupos sociais nitidamente definidos e com qualidades estáveis.
O coronel Robles encarna o ideal do soldado revolucionário macho: é valente e arrojado; tem capacidade de responder de maneira imediata e violenta às agressões; maneja com maestria as armas e os cavalos, e suas relações sentimentais com mulheres reproduzem a polaridade de gênero dos papéis feminino e masculino. O que é paradoxal no caso é que a masculinidade transgênero de Amélio Robles cria problemas para a naturalidade atribuída às classificações sociais de gênero e questiona em particular os ideais machistas que Amélio Robles precisou emular a todo custo para sustentar sua masculinidade. Assim, a história de Robles ao mesmo tempo subverte e fortalece as normas culturais de gênero.
Se questionarmos os diferentes olhares sobre a peculiar configuração da identidade de Amélio Robles veremos que sua história tem um interesse que vai além do caso particular: sua figura pode ser vista como o lugar de um debate cultural onde se enfrentam diferentes retóricas de gênero vigentes no México revolucionário. Nas páginas que seguem, destaco três olhares diferentes e, em certos momentos, contrapostos: 1. a de seus companheiros no exército, que admiravam a cabal emulação que Amélio Robles faz de uma masculinidade entendida como alarde de força e resposta imediata e violenta a qualquer agressão real ou imaginária; 2. o olhar sensacionalista que, dedicando-se à exibição de Amélio Robles, também o legitima e 3. a perspectiva política normalizadora que nega com veemência a mudança de gênero a partir de categorias de gênero essencialistas. Embora os olhares sobre Amélio Robles sejam o tema principal deste artigo, o ponto de partida é a identidade social e a imagem corporal masculina que ele forja para si mediante a pose, o gesto e o vestuário. Voltemos então ao retrato de estúdio em que Amélio Robles se exibe como um janota do interior.
A imagem foi captada por volta de 1915, talvez no estúdio de Armando Salmeron de Chilapa,Guerrero, pequeno povoado encravado na Serra Madre Ocidental, um dos muitos gabinetes de fotografia que se multiplicaram nas cidades e povoados do país nas primeiras décadas do século, quando a simplificação da tecnologia e o barateamento dos custos permitiram satisfazer a crescente demanda por retratos fotográficos.5 A cultura visual do corpo inaugurada pelo retrato de estúdio tornou possível que as pessoas comuns fixassem sua imagem corporal desejada numa fotografia, coisa que até então só se fazia nos retratos acadêmicos, ao alcance de apenas alguns. Forjados por intermédio de uma câmera, o corpo e a identidade social agora desejada podiam ser congelados num retrato fotográfico. Cada vez que se olhava o retrato reiterava-se a identidade plasmada na fotografia.6
O efeito legitimador se multiplicava no caso improvável de que um retrato de estúdio chegasse a ser reproduzido na imprensa, como aconteceu com esta fotografia, que apareceu como ilustração de uma notícia sobre Robles publicada em El Universal, diário com a maior circulação na Cidade do México nos anos 20.7 Embora revelasse o segredo de sua identidade sexual – segredo relativo, amplamente conhecido em sua comunidade –, o jornal multiplicava por mil a certificação visual de sua imagem corporal como homem elegante que, sem ser particularmente notável, mostrava um porte airoso e cheio de segurança pessoal. Era o equivalente a proclamar em praça pública a virilidade exibida no rosto, na pose e no traje, e que era ressaltada pela exibição da arma de fogo.
O revólver e o cigarro, símbolos de masculinidade, não são utensílios convencionais do estúdio fotográfico, mas objetos de uso cotidiano pertencentes a Amélio Robles, cuja imagem masculina constitui uma identidade subjetiva, sexual e social que prevaleceu em todos os aspectos de sua vida. Não é uma pose momentânea diante da câmera, como aquela adotada, por exemplo, por Frida Kahlo, ao vestir um traje masculino nos retratos de família feitos por seu pai em 1926. No caso de Kahlo, trata-se de gesto brincalhão, um tanto irreverente, talvez para seguir a moda francesa a la garçon (e ao mesmo tempo encobrir a magreza de sua perna esquerda por causa da paralisia infantil). Na pintora não há desejo de fazer-se passar por homem, efeito que Amélio Robles logra mediante pose, gesto e trajes cuidadosamente selecionados: incluía calças, camisas, coletes e chapéus de estilo comum em seu entorno rural. Teve a precaução de escolher camisas com bolsos que ajudavam a disfarçar os seios, como se vê em fotos tomadas em diversos momentos de sua vida.8 Um instantâneo polaroid de 1976 mostra Amélio Robles octogenário e um pouco curvado, mas com o porte viril desempenado e a mesma segurança no aspecto corporal que apresentava no retrato de estúdio de sua juventude.
Vestido com um uniforme militar gasto e ostentando no pescoço um lenço vermelho que o identificava como zapatista, Amélio parece consciente de sua importância ao posar diante da câmera de um historiador da Revolução Mexicana. Sua figura domina a imagem e apenas deixa ver o chapéu de Soreniano Delgado Vázquez, coronel zapatista que aparece às costas de Robles. A seu lado, aparece Guadalupe Barrón, uma das mulheres com quem Amélio manteve relações de casal. Sua presença acentuava, por contraste, a virilidade do antigo revolucionário, que exibe uma rigidez corporal própria das convenções fotográficas de estúdio, alheia ao gesto espontâneo que tentavam captar as câmeras portáteis, cada vez mais acessíveis na segunda metade do século vinte.
A imagem corporal de Amélio Robles estava plenamente respaldada pelos documentos de identidade que certificam sua pertinência a diversos grupos sociais e políticos, incluídas as credenciais que o reconhecem como filiado ao Partido Socialista de Guerrero (1934), delegado em Xochipala, Guerrero, da Liga Central das Comunidades Agrárias (1945), filiado à Confederação Nacional dos Veteranos da Revolução (1948) e membro da Associação dos Pecuaristas de Zumpango del Rio (1956 e 1958). As fotografias de identificação das credenciais confirmam a identidade sexual visível do interessado, cujo nome e rubrica são masculinos.9
Talvez a melhor prova da escultura viva seja o atestado médico para ingresso na Confederação dos Veteranos da Revolução, expedido pelo doutor Pedro González Peña em seu consultório na cidade do México, em 1948. O médico atestou o bom estado de saúde, a idade declarada e as cicatrizes de seis feridas de bala em diferentes partes do corpo, inclusive uma na coxa e outra na axila, sem aludir à anatomia sexual do interessado.10 O exame médico, exigido pela Confederação de Veteranos da Revolução, seguramente não foi um exame clínico profundo, mas apressado, cujo propósito era verificar a existência de cicatrizes de guerra, consideradas prova irrefutável da valentia demonstrada nos campos de batalha. Não havia motivos para que o médico duvidasse da identidade masculina de Amélio Robles: sua atitude reservada, gesto, traje e movimentos corporais – "um andar de velho soldado" – eram os de um homem do campo de quase sessenta anos de idade, que, por pudor, provavelmente apenas revelou algumas partes do corpo para mostrar ao médico as marcas de bala que se orgulhava de possuir. Em outras ocasiões, Robles não se embaraçou para mostrar a cicatriz numa perna, que dava realismo à narração de suas façanhas guerreiras.11
A Secretaria da Defesa Nacional (SDN) legitimou a identidade masculina de Amélio Robles ao condecorá-lo como Veterano da Revolução, e não como veterana, distinção concedida a mais de três centenas de mulheres por seus serviços à causa revolucionária.12 O reconhecimento das mais altas autoridades militares do país deve ter dado enorme satisfação a Amélio Robles, ainda que a SDN não lhe tivesse concedido a patente de coronel que ostentava no exército zapatista que, como se sabe, não era um corpo militar de caráter profissional mas uma força composta por grupos rebeldes de homens reunidos em torno de um chefe, sem procedimentos sistemáticos de ascensão. Tampouco lhe foi concedida pensão militar; só o que conseguiu foi um pagamento para pagar despesas com uma doença.13
Amélio Robles exigia ser reconhecido como homem, tanto em público como em privado. Um vizinho de Iguala, que várias vezes viajou com Amélio Robles no ônibus para a cidade do México, sublinha: "nunca lhe disse senhora, era sempre senhor Robles, porque tirava a pistola para quem lhe dissesse mulher ou dona".14 Embora exagerada, a afirmação é ilustrativa da determinação com que Robles impunha o reconhecimento de sua identidade social como homem. Em sua família, a masculinidade de Amélio era aceita como um dado; suas sobrinhas netas se dirigiam a ele como tio ou avô, e não tiveram notícia de sua peculiar identidade sexual até sua idade adulta, já que o tema não era tratado em casa. Apenas em ocasiões excepcionais, quando os laços de confiança homossocial entre amigos eram reforçados ao compartilhar bebidas alcoólicas, o velho Robles chegava a aceitar que algum de seus próximos se dirigissem a ele como "minha coronela".15
Amélio Robles adotou as formas de masculinidade prevalecentes em seu entorno rural, código cultural que incluía a capacidade de resposta imediata e violenta a qualquer agressão, uma valentia desafiadora e constantes alardes de força. Essas características o levaram, em anos posteriores, a protagonizar violentas brigas que acabaram com a vida de mais de uma pessoa. Como muitos homens, Amélio com freqüência caía em excessos alcoólicos, era mulherengo, mal falado, autoritário e quase nunca se dispunha a dar conta de seus atos a seus familiares, nem mesmo nos períodos de doença que marcaram sua longa velhice. Amélio Robles, o mais macho entre os machos, levou ao extremo o estereótipo da masculinidade prevalecente em seu entorno rural. Paradoxalmente, sua peculiar mimese dos valores masculinos põe em dúvida a naturalidade do que se reconhece como atributos viris.
2. Realidades inocultáveis
Amélia Robles era originária de Xochipala, povoado do distrito de Bravos, no estado de Guerrero, onde nasceu dia 3 de novembro de 1889, segundo assentamento no livro de registro civil correspondente ao município de Zumpango del Rio. A caligrafia da ata de nascimento não deixa dúvida: o bebê apresentado pelo pai e pela mãe diante do oficial de registro de Xochipala era uma menina. Seguindo o calendário religioso, recebeu o nome de Malaquias, embora em casa a chamassem de Amélia, seu nome de batismo.16 Provavelmente pertencia a uma família de fazendeiros, setor social dos proprietários médios que foram atores centrais da Revolução Mexicana em Guerrero.17 O pai era delegado do povoado e se encarregava de registrar os nascimentos, mortes e casamentos na localidade. A infância de Amélia transcorreu entre a casa de Xochipala e a fazenda, que ficava nos arredores do povoado. Ali Amélia aprendeu o manejo de armas e cavalos, o que não impediu que também fosse vinculada às filhas de Maria, congregação católica dedicada a aprofundar a formação espiritual das jovens. Sendo filha de família, dedicada a atividades domésticas (um vizinho lembra dela trabalhando numa venda que oferecia alimentos aos revolucionários que passavam pela zona), e se não tivesse se engajado na guerrilha, teria gostado de estudar medicina, aspiração profissional masculina que também teve seu conterrâneo Juan Andreu Almazán, por quem Robles tinha grande admiração, desde que o encontrou nos tempos do zapatismo.18
Na guerrilha, Amélia descobriu "a sensação de ser completamente livre" – suas palavras – coisa que não conhecera enquanto vivia como mulher no povoado do qual em geral só se saía a pé. No povoado, as habilidades da jovem Amélia com armas e cavalos provocavam a admiração que se concede a um bom espetáculo, mas na tropa essas habilidades eram cruciais: Robles era muito apreciado como ginete, domador de cavalos e atirador preciso.19
A etapa zapatista de Robles durou cinco ou seis anos, de 1912 ou 13 até 1918, aproximadamente. Sob as ordens de vários chefes – Heliodoro Castillo, Encarnación Díaz e Jesús H. Salgado – Amélio Robles participou de inúmeros feitos de armas, inclusive da cruenta e decisiva batalha de Chilpancingo, em 1914, que significou a derrota do huertismo em Guerrero, e o avanço militar do zapatismo na região. As necessidades da luta o levaram a empreender longos percursos a cavalo na região zapatista de Guerrero, Morelos e Puebla – garante ter participado da fracassada tomada de Puebla dirigida pelo próprio Zapata – e ainda do estado de México. O vínculo de Amélio Robles com o zapatismo foi menos ideológico do que vital, surgido do gosto pela intensidade da vida guerrilheira, tão cheia de emoções e perigos. Ao recordar os tempos da revolução, Robles poucas vezes se referia ao agrarismo e ao radicalismo social e, em lugar disso, se deleitava com anedotas sobre a vida cotidiana nos campos de batalha, onde a lealdade aos chefes e as rivalidades pessoais eram o pão de cada dia.20
Como muitos outros combatentes da região, Robles reconheceu o governo de Venustiano Carranza por volta de 1918.21 Nessa época, o zapatismo estava em franca decadência, por causa de tensões internas e do avanço das forças constitucionalistas. No ano seguinte, Emiliano Zapata foi assassinado, para converter-se, mais tarde, no herói da Revolução e símbolo dos camponeses despossuídos. Enquanto isso, boa parte dos comandos e da tropa zapatista apoiaram a rebelião de Aguaprieta, em que Álvaro Obregón venceu Venustiano Carranza. Por intermédio de Estrada, Amélio Robles se uniu ao combate a favor do general de Sonora que, curiosamente, tornou pública sua adesão ao plano de Aguaprieta a partir de Guerrero.
O discurso comemorativo da Revolução Mexicana destaca a participação zapatista de Amélio Robles, mas parece fora de dúvida que sua atividade militar no exército mexicano a partir de 1924 foi decisiva para sua posterior trajetória nas organizações agraristas, que legitimaram sua identidade masculina. Sob o comando de Adrián Castrejón, Robles participou no combate à rebelião delahuertista que naquele ano desafiou o poder de Álvaro Obregón. Lutou primeiro em Guerrero e em seguida em Hidalgo, onde participou da vitória sobre o rebelde Marcial Cavazos, conhecido por sua astúcia e valentia. O combate foi árduo e Robles recebeu duas feridas a bala. Não obstante, uniu-se de imediato ao contingente enviado às selvas de Tabasco e Chiapas, onde os homens de Castrejón obtiveram novos triunfos. Com essas vitórias, consolidaram-se o prestígio militar e o poder político de Adrián Castrejón, que alguns anos mais tarde o levaram ao governo do estado de Guerrero entre 1928 e 1932.
Inscritos nos códigos da masculinidade prevalecente, os laços de amizade e compadrio homossocial gerados no combate ao delahuertismo foram decisivos para o reconhecimento oficial da identidade masculina de Robles. Conhecedor da peculiar identidade de Robles, Castrejón foi o artífice da entrevista a Miguel Gil em El Universal e sua influência como governador teve peso decisivo para a incorporação de Robles a organizações como o Partido Socialista de Guerrero e a Liga de Comunidades Agrárias. Amélio Robles também se beneficiou da influência política de outro companheiro dos dias de luta, Rodolfo López de Nava Baltierra que, como governador de Morelos, se dispôs a dar-lhe um atestado de méritos revolucionários e a recomendar seu ingresso na Legião de Honra Mexicana, da Secretaria da Defesa Nacional.22
Para obter a prestigiada qualidade de Veterano da Revolução, era necessário apresentar à SDN uma série de cartas de recomendação e "certidões de méritos", cuja finalidade precisa era obter uma resposta positiva à petição do interessado. Essas certidões tentavam ajustar-se aos critérios estabelecidos pela Legião de Honra Mexicana, sem estabelecer necessariamente de maneira fidedigna feitos ocorridos décadas atrás, cujos detalhes provavelmente haviam sido esquecidos.23 Robles não passou por qualquer embaraço para expor de maneira explícita diante de Andreu Almazán a finalidade pragmática do documento requerido:
não havendo inconveniente, rogaria certificar que o fiz primeiro com grau de capitão e me afastei já com o de Coronel, procurando acomodar os ascensos na forma que lhe parecer conveniente, pois são coisas que exigem na Secretaria, sem levar em conta a realidade em quem (sic) vivemos durante a Revolução que consistiu em que ninguém fazíamos (sic) questão dessas coisas; não dou detalhes de todas essas ações de guerra porque desejo que esteja de acordo com sua folha de serviços.24
Como era usual "acomodar" os dados relativos aos feitos de armas nas certidões apresentadas, deve ter parecido razoável a Robles ajustar também o sexo registrado em sua certidão de nascimento, para que, desse modo, seu principal documento de identidade estivesse de acordo com seu aspecto e sua sensação interna de ser homem.25 Seu expediente pessoal nos arquivos militares inclui uma certidão de registro civil apócrifa que dá fé do nascimento do menino Amelio Malaquias Robles Ávila. Salvo o sexo do bebê, todos os dados coincidem com a certidão de nascimento original do livro de registro civil de Zumpango del Río.26 Convencido de sua masculinidade e gozando da proteção de uma rede de relações sociais na região, Amélio Robles não teve dúvidas em apoiar-se num documento adulterado e de dar-se o gosto de ser declarado Veterano da Revolução.
Durante o movimento armado, a violência sexual que afetava especialmente a população feminina, aumentou de maneira diretamente proporcional à da violência revolucionária. Não obstante, para algumas pessoas, a revolução também abriu possibilidades de autodeterminação até então fora de seu alcance. A guerra provocou deslocamentos geográficos e "afetou o subsolo da respeitabilidade e dos bons costumes". Sobreveio o que Carlos Monsiváis chama de "demolição temporal do pudor" que tornou "inocultáveis as realidades do desejo", pelo menos nos excepcionais espaços de tolerância como aquele que permitiu que Amélio Robles gozasse de relativa aceitação; espaços que não tinham equivalente urbano. Só conhecemos a visibilidade alcançada por alguns homossexuais conspícuos na cidade do México dos anos vinte: artistas, intelectuais e funcionários.27
Vale sublinhar que a tolerância em relação às sexualidades marginais não era norma no movimento zapatista. Manuel Palafox, um dos principais intelectuais do zapatismo, foi objeto de reiteradas desqualificações por sua inclinação homossexual. Maurilio Mejía, chefe guerrilheiro e sobrinho dos irmãos Emiliano e Eufemio Zapata, desqualificou Palafox de maneira cortante: "um pobre diabo de sexo equivocado como você não pode dizer-se amigo de homens de verdade, como nós". A homossexualidade de Palafox somou-se às múltiplas tensões políticas que acabaram por distanciá-lo de Zapata que, em mais de uma ocasião esteve à beira de ordenar seu fuzilamento.28 A homossexualidade masculina atrai a condenação extrema porque é considerada como efeminação e recusa da masculinidade, que é identificada como manifestação de convicção revolucionária e até de patriotismo. A transgressão de Robles, ao contrário, goza de relativa aceitação pela razão oposta, já que exacerba os valores da masculinidade que a guerra civil exalta.
Não se pense, contudo, que a tolerância para com Amélio Robles foi fácil ou generalizada. Ao término do movimento revolucionário, Amélio decidiu instalar-se em Iguala, para evitar a hostilidade de sua natal Xochipala, onde conservou a propriedade familiar à qual voltou anos depois. Segundo alguns testemunhos, Amélio Robles foi assaltado por alguns homens que queriam descobrir seu segredo corporal e, ao defender-se, causou a morte de dois de seus agressores, o que lhe custou uma condenação cumprida na cadeia de Chilpancingo. A prisão teria envolvido a humilhação adicional de colocá-lo na seção feminina.29 Verdadeira ou não, a anedota expressa a ansiedade, muitas vezes traduzida em agressão aberta ou oculta, que Amélio Robles provocava ao por em questão as classificações culturais de gênero. Sua identidade era motivo de piadas, mais ou menos pesadas, até por aqueles que lhe ofereceram proteção como Castrejón e López de Nava. Os dois militares manifestavam certa ambigüidade em relação a Amélio, já que oficialmente avalizaram sua masculinidade mas, em privado, se referiam à "coronela Amélia Robles".30
A transgressão de Amélio Robles não se restringiu a suas atividades militares e políticas.Também na esfera pessoal, Robles se conduzia como homem e emulou os comportamentos masculinos vigentes na sociedade rural do século vinte. Manteve uma longa relação com Ângela Torres, com quem chegou a adotar uma filha, que, na vida adulta, preferiu distanciar-se do pai, Amélio. A senhora Torres vinha de família remediada de Apipilco, povoado próximo a Iguala onde Robles residia em 1934, e talvez fosse a "colega de escola" a quem ele prodigava atenções.31 O aspecto masculino de Amélio Robles se mantém nos limites de uma oposição polar entre os atributos corporais masculino e feminino, como sugere a fotografia em que Amélio posa ao lado de Lupita Baron, com quem também teve um vínculo sentimental.
Ao mesmo tempo, a masculinidade de Robles implicava uma clara divisão de funções socialmente atribuídas a homens e mulheres no mundo rural. Como típico homem do campo, Amélio não se ocupava das tarefas domésticas, que deve ter aprendido na juventude, quando recebeu a educação de uma jovem católica do interior. Segundo um testemunho oral, em seus últimos anos, quando a velhice e a doença limitavam suas possibilidades de movimento, Amélio costumava receber visitas de Angelita Torres. A senhora Torres vinha de Apiplico, povoado próximo a Iguala, trazendo consigo um fogareiro e os utensílios necessários para cozinhar para Amélio enquanto o visitava em Xochipala. A anedota está carregada de ressonâncias da imagem popular da "Adelita", soldadera que, com filhos e artefatos domésticos às costas, seguia seu Juan e recriava uma rústica estrutura doméstica em meio à adversidade de um campo de batalha.
3. O gênero em disputa
A mudança de gênero de Amélio Robles foi mediada não só pela fotografia mas também pela imprensa moderna que fez de Robles uma espécie de celebridade local. A história de Amélio Robles interessou Miguel Gil, repórter de El Universal e atraiu Gertrude Duby, jornalista de origem suíça exilada no México e militante da oposição européia ao fascismo.32 O interesse dos meios de comunicação se manifestou desde a etapa armada e contribuiu para dar legitimidade à masculinização de Robles.
Nesta tomada ao ar livre, provavelmente em Iguala, Guerrero, por volta de 1915, Adrián Castrejón e Amélio Robles se situam no centro, rodeados por um grupo de camponeses armados que posam serenamente, no que parece a celebração de alguma vitória nas armas. Embora Castrejón apareça brandindo um sabre como símbolo de autoridade militar (como também o faz Emiliano Zapata na célebre fotografia de Hugo Brehme tirada após a tomada de Cuernavaca em 1911), foi Amélio Robles que despertou maior interesse do fotógrafo anônimo: é Robles e não o general Castrejón que o fotógrafo destaca na imagem mediante uma pequena cruz a seus pés.33 A fotografia apareceu publicada, talvez pela primeira vez, na edição original em fascículos da História gráfica da Revolução Mexicana de princípios da década de 30. A legenda omite qualquer menção a Castrejón, e só menciona "a valente revolucionária"; também aparece o retrato de estúdio analisado no começo deste artigo e que havia sido publicado anos antes em El Universal.34
Nos anos vinte, a primeira página de El Universal era dedicada principalmente à informação política, mas com freqüência também incluía notícias sensacionalistas, relatos de crimes, tragédias ou fatos extraordinários, redigidos num estilo coloquial, que procuravam provocar reações viscerais de horror ou extrema comoção entre os leitores. No mesmo mês de abril foram publicadas outras notas com cabeçalhos sensacionalistas, que eram parte das estratégias comerciais da imprensa moderna: "Gertrude Ederle, a pequena mulher rã que atravessou a nado o canal da Mancha", "Curioso caso de feitiçaria no panteão de Dolores" e "O segredo de uma anciã que tem cento e quarenta e três anos de idade".35
O destaque dado à notícia sobre Amélio Robles se deve, por um lado, a elementos sensacionalistas que buscavam provocar o assombro do leitor diante da excentricidade do personagem e, por outro, ao fundo revolucionário, que acentuava o interesse jornalístico da informação. A uma década da promulgação da Constituição de 1917, as lembranças sobre o processo revolucionário eram ainda frescas e o público se interessava por testemunhos de participantes e observadores. Nos meses de abril e maio, por exemplo, El Universal incluiu duas impressões do escritor Martín Luis Guzmán sobre o movimento revolucionário, que viriam a fazer parte de El Águila y la Serpiente, novela canônica da Revolução Mexicana que é também uma grande reportagem da etapa armada. O jornal também publicou uma entrevista de Miguel Gil com Carmen Serdán, figura emblemática da resistência da família Serdán diante das forças do governo de Porfirio Díaz, nos momentos iniciais da rebelião de Francisco I. Madero. A entrevista apareceu no dia 5 de maio, data comemorativa da batalha de Puebla, de 1867.
É provável que Miguel Gil tivesse preparado a notícia sobre Amélia Robles para publicá-la de propósito no dia 10 de abril, aniversário da morte de Emiliano Zapata. Desde o início do governo de Álvaro Obregón, que impulsionou a distribuição de terras e nomeou vários zapatistas como membros de seu governo, a efeméride foi ocasião para que as organizações locais e o governo promovessem a imagem do líder como símbolo dos camponeses despossuídos. Como candidato à Presidência da República, Plutarco Elias Calles escolheu o dia 10 de abril de 1924 para manifestar uma posição agrarista que chegou às manchetes dos principais jornais. A efeméride foi perdendo gradativamente a importância, num momento em que o governo freava a distribuição de terras. Afinado com a postura de Calles, em 1927, El Universal não fez qualquer menção à data, enquanto que o Excelsior apenas informou brevemente sobre as pouco brilhantes cerimônias locais levadas a efeito em Cuautla.36
A nota de Miguel Gil oferece uma descrição visual de Amélio Robles que sublinha detalhes significativos como alguma vez recomendou a seus redatores o jornalista norte-americano Joseph Pulitzer: estabelecer um "retrato vívido do personagem, com detalhes que criem uma imagem dele diante do leitor médio, muito mais que seus pensamentos, objetivos, declarações".37 Assim, o breve diálogo entre o repórter e o entrevistado sobre as andanças revolucionárias de Amélio Robles evita uma abordagem conceitual do tema da mudança de gênero, mas deixa uma impressão duradoura através da seguinte observação: "ao erguer a perna da calça para mostrar a cicatriz que uma bala lhe deixou vejo que usa meias e ligas de homem. Pequeno detalhe, mas enfim um detalhe!"38 A imagem quer provar que Amélio Robles "não tem nem um pedacinho feminino." Nada sugere feminilidade "no som de sua risada nem no olhar; nem no modo de pôr-se de pé, nem na maneira de expressar-se, nem no timbre da voz". Sua imagem corporal, rosto, gestos, tom de voz e traços de personalidade são os de um homem. O caráter viril do movimento corporal e dos gestos se manifesta também no estilo de vestir: "a forma de usar o casaco, as calças e o chapéu inclinado para a esquerda e usado com garbo não eram mais que indícios de masculinidade".
A matéria, especialmente o cabeçalho, contém elementos sensacionalistas; no entanto, Miguel Gil tem uma atitude tolerante para com Amélio Robles, pois seu olhar parece imbuído da sexologia médica do século dezenove, que teve ressonância na imprensa britânica e na norte-americana nos anos vinte – em particular os escritos de Havelock Ellis – que considera merecedoras de compreensão as identidades de gênero e as expressões sexuais marginais.39 Embora o repórter não empregue o termo "inversão sexual", esse conceito sexológico está subjacente a sua visão de Amélio Robles como um espírito masculino aprisionado num "envoltório corporal" feminino: "A Coronela é um homem e, no entanto, nasceu mulher". Com a autoridade do discurso médico – alude aos "naturalistas" – Gil afirma que se trata de "um caso de psicologia profunda que talvez se preste a reflexões não menos profundas de ordem filosófica" e não de um pecado, um ato contra natura ou uma falta moral a ser condenada.
A apresentação de Amélio Robles em El Universal contém traços narrativos característicos da abordagem clínica de casos de inversão sexual de Havelock Ellis.40 Afora a ênfase no aspecto corporal masculino de Robles, Gil descreve seus "traços fisionômicos e sua conformação geral" como era comum nos estudos clínicos:
aquele rosto amarelado, aqueles olhos como que apagados, a testa estreita, a cabeça pequena, o cabelo quase raspado e eriçado, as maçãs do rosto um pouco salientes, o nariz forte e grande e a boca que, ao abrir-se, mostra dentes mal cuidados.
Como nas tramas sexológicas arquetípicas, Miguel Gil também faz referência à inclinação por atividades masculinas que Robles manifestava desde a juventude. A sexologia estigmatiza as identidades de gênero marginais rotulando-as como condições médicas, merecedoras de atenção científica. No entanto, essa patologização muitas vezes não tem só uma intenção corretiva, mas também compassiva. Gil tem uma curiosidade de voyeur diante da excentricidade corporal de Amélio, mas o jornalista não vê Robles como um espécime do museu de horrores, e sim como um "tipo soberbo para um romance". Nada de troça, condenação pública ou comiseração, como em notícia publicada algumas décadas mais tarde no periódico sensacionalista Alerta!41 Certamente Amélio Robles teria preferido que El Universal o tivesse apresentado simples e diretamente como um revolucionário valente, sem fazer alusão a sua identidade transgênero. Apesar disso, provavelmente também se sentiu envaidecido ao ver sua fotografia exibida na primeira página do jornal da capital e por isso guardou o recorte de El Universal ao longo de sua vida, junto com outras fotografias e lembranças pessoais, inclusive a notícia do Alerta! Embora El Universal o revele como uma pessoa excêntrica, Amélio Robles tira proveito da celebridade e da legitimação que o jornal lhe oferece, não assumindo, porém, uma posição de marginalidade social, mas, ao contrário, consegue levar uma vida bem integrada a seu entorno social e familiar.
A mesma atitude de tolerância, contudo, não se manifesta em outro texto de Miguel Gil, publicado anos mais tarde em Detectives, semanário barato onde o repórter lança mão dos recursos do sensacionalismo para referir-se, em tom de troça e comiseração, aos homossexuais encerrados na Penitenciária do Distrito Federal, onde aparecem chamativamente maquiados e travestidos.42 O jornalista segue o padrão comum no tratamento sensacionalista das identidades de gênero transgressoras que a imprensa barata deu à emblemática prisão dos 41 homossexuais de 1901, e se refere aos "neutros" como "seres incongruentes, incompreensíveis, uma aberração, que não são mulheres nem homens".43 O presos fotografados por Detectives, com suas poses e gestos parodiam a feminilidade de maneira exagerada, como também o fazem mediante os ápodos que emulam as estrelas de espetáculos: Toña la Negra, Varita de Nerdo, Bárbara La Mar, La Yucateca, Eva Beltri ou Delia Magaña. A troça se dirige à efeminação daqueles que com sua pose artificial ameaçam a normatividade do gênero. Ao escrever sobre as ilhas Marias, Gil se refere aos homossexuais como "homens pela metade", mas matiza o tom condenatório e, em seguida, convida o leitor a refletir "sobre as grandes injustiças da Natureza".44 As visões contraditórias de Miguel Gil matizam o alcance dos espaços de tolerância diante das sexualidades marginais no México contemporâneo. O jornalista vê na masculinidade de Amélio Robles uma manifestação inócua que não é necessário combater, talvez por tratar-se de um caso de exceção, que não tem seguidores e, além disso, exalta os valores do machismo. Ao contrário, os "neutros" da cadeia e seus semelhantes, que circulam pelas ruas da cidade, ostentam uma efeminação que não é tão excepcional e atrai a condenação máxima de uma sociedade onde prevalecem os valores de uma masculinidade supostamente inquebrantável.
4. O giro essencialista
Com o tempo, o reconhecimento da condição transgênero de Amélio Robles foi se diluindo, e aquele que, em vida, chegou a ser aceito como homem em seu meio social e familiar, e até pelas mais altas autoridades militares do país, acabou por virar um símbolo dessa abstração que é "a mulher revolucionária". Impôs-se uma concepção que, em seu compreensível afã de dar uma valorização necessária das conquistas e direitos das mulheres, passou por cima da eficaz escultura viva de Amélio Robles, e também do fato de ele ter sido reconhecido pela Secretaria da Defesa Nacional como Veterano da Revolução – e não como Veterana – e de que todos se dirigissem a ele no masculino. O janota do interior, que exibiu orgulhoso uma arma de fogo, luziu um corpo viril com desembaraço, fez alarde de machismo e valentia na guerra zapatista, como soldado a serviço do Exército Mexicano, acabou por dar o nome de "Coronela Amélia Robles" à escola primária de Xochipala, Guerrero.
O desaparecimento da memória social da identidade transgênero de Amélio Robles, que permeia o discurso reivindicativo da "mulher" na Revolução Mexicana, manifestou-se com toda a clareza na Casa-Museu Amélia Robles, que abriu suas portas em Xochipala em 1989, a cinco anos de seu falecimento, por iniciativa da Secretaria da Mulher do Estado de Guerrero, estabelecida um ano antes, da Direção de Culturas Populares, do Instituto de Antropologia e História e com a colaboração da família Robles.45 Convergem no museu dois propósitos comemorativos: de um lado, aquele relativo às contribuições históricas das mulheres cujas ações ocupam sempre um lugar secundário numa história de bronze, protagonizada em geral pelos heróis militares e, do outro, aquele que diz respeito à história local, quase sempre subordinada a uma ótica centralizadora que valoriza o significado dos processos históricos regionais, a partir da lógica da formação do estado nacional. Anteriormente, o reconhecimento da coronela Amélia Robles manifestou-se sob o calor do ânimo reivindicativo do Ano Internacional da Mulher (1975) no manual de Antonio Uroz, Hombres y mujeres de México.46
Essa nova invisibilidade da identidade transgênero de Amélio Robles é conseqüência de um compreensível e necessário afã de reconhecer o que deveria ser óbvio: que as mulheres são sujeitos históricos, capazes de contribuir significativamente para a vida cívica e para todos os aspectos da história.47 Contudo, esse afã reivindicativo atribui qualidades fixas às categorias mulher e homem e, portanto, não pode reconhecer a plasticidade das construções de gênero, nem as expressões marginais do desejo. Os paradoxos dessa conceituação essencialista das identidades de gênero podem ser apreciados com nitidez no olhar de Gertrude Duby, exilada no México por causa da Segunda Guerra Mundial, que visitou Robles em seu povoado no princípio dos anos 40 como parte do projeto inconcluso de documentar de viva voz a participação das mulheres zapatistas na Revolução Mexicana. Pouco mais de 20 anos depois de terminado o conflito armado, os registros sobre a participação revolucionária das mulheres eram escassos, quase inexistentes. Esperanza Balmaceda e Matilde Rodríguez Cabo, dirigentes da Frente Única pró Direitos da Mulher, entendiam que a exclusão das mulheres da memória da Revolução Mexicana favorecia sua marginalização da esfera política e se deram a tarefa de resgatar essa memória, como também o faria Gertrude Duby.
Quando chegou ao México em 1941, Duby tinha uma trajetória política na Europa, como militante no movimento socialista e na oposição ao fascismo.48 Seu principal mapa de navegação no novo país foi o livro Mexique Indienne (1936) do etnólogo francês Jacques Soustelle, que deixou marca duradoura em sua visão do país como uma terra de revolução social e tradições rurais alheias à influência européia. Uma terra prometida para ensaiar utopias emancipatórias, que ajudassem a compensar a decepção com o velho mundo. Através de Soustelle, Gertrude Duby soube da existência de um grupo indígena e de sua vida na selva à margem da civilização ocidental, cujo resgate se tornou a causa de sua vida por mais de cinqüenta anos. Nas páginas do Mexique indienne, Duby também teve notícia de Emiliano Zapata, "o índio de Anenecuilco, o único chefe revolucionário que compreendeu a situação do campesinato na Revolução Mexicana".49 Pouco depois de sua chegada, Duby foi mais longe que Soustelle em sua idealização de Miliano com seus "maravilhosos e grandes olhos, longos e escuros": chegou a se convencer de que o líder de Morelos emulava os propósitos socialistas da revolução russa.50
Na cidade do México, Duby se relacionou com um grupo de refugiados que editava a revista Freies Deutschland e obteve um emprego no governo, na área social. Mas como a tantos outros que procuravam o México profundo, o ambiente da capital não a satisfez e logo ela se embrenhou nas zonas rurais de Morelos. Armada com uma câmera fotográfica de segunda mão recém adquirida, Gertrude Duby se iniciou como fotógrafa retratando mulheres sobreviventes do zapatismo que entrevistou ao longo de vários meses. Esteve em Cuernavaca, Tepoztlán, Yautepec, Huejotzingo e Puebla, onde reuniu mais de 20 testemunhos. Os relatos sobre sua "guerra contra os donos de terras" de Morelos permitiam que Duby esquecesse, por alguns momentos, a guerra européia. As histórias de sacrifício e luta das antigas revolucionárias comoveram Gertrude Duby, mas a impressão mais forte foi a provocada por Amélio Robles. Atraída por essa "figura lendária", a exilada viajou mais de uma vez a Guerrero, tirou várias fotografias de Robles e dedicou-lhe "Mujeres en armas", bela crônica literária com quase o mesmo número de páginas que a dedicada a uma dúzia de combatentes zapatistas entrevistadas em Morelos e Puebla. Colaboradora da imprensa socialista européia durante muitos anos, Gertrude Duby era uma pena experiente no jornalismo de opinião pública, mas seus primeiros escritos mexicanos, inclusive "Mujeres en armas", são crônicas literárias, que intencionalmente se afastam dos assuntos conjunturais e parecem aspirar a um valor intemporal.
Gertrude Duby passou uma noite e parte de uma manhã na casa de Amélio Robles, em Xocipala. Fez-lhe perguntas sobre sua participação na Revolução Mexicana e durante todo o tempo se dirigiu ao zapatista no masculino, como todos faziam, mas na realidade não admitia sua identidade masculina. Em suas anotações, assim como na versão final de sua crônica, Duby se refere à coronela Amélia Robles no feminino: "A coronela vai me perdoar que a trate como mulher, ela honra com seu valor, inteligência e laboriosidade o sexo feminino".51
Para Gertrude Duby, a masculinidade de Amélio Robles não era expressão de uma identidade subjetiva e corporal autêntica, produto de um poderoso desejo íntimo, mas um recurso pragmático para enfrentar as restrições sociais que pesavam sobre o sexo feminino: "num século em que a mulher ainda é relegada ao segundo lugar por seu sexo e no qual não contam suas capacidades, vivendo num povoado afastado da estrada, entendo que a coronela Amélia Robles viva, trabalhe e ajude a sua gente em trajes de homem e agindo como tal". Aos olhos de Duby, Robles encarna um ideal emancipatório onde homens e mulheres compartilham as responsabilidades públicas e as mulheres não se dedicam exclusivamente ao lar, mas participam da vida social, numa utopia igualitária que inspirou sua militância pelo menos desde que esteve na liderança da seção feminina do Partido Social Democrata Suíço, no início da década de 1920. Essa utopia de equidade entre homens e mulheres foi o tema de uma colaboração publicada por esses anos no periódico suíço Frauenrecht.52
À luz desta fotografia era impossível negar inteiramente a masculinidade de Amélio Robles, cuja pose e aspecto são tão viris quanto os do coronel Esteban Estrada, que acompanhou Duby no longo percurso pela serra de Guerrero. Diante da força da evidência, Duby descreve "as roupas de homem, o cabelo curto, a vontade de ser tratada como homem" e reconhece que Estrada e Robles falaram "de homem a homem" sobre questões de terra. No entanto, por artes do desejo, Gertrude Duby também encontra traços que matizam o masculino de seu aspecto: "Tem o cabelo muito curto, já um pouco grisalho, uma testa alta, um nariz fino, olhos claros muito vivos e uma boca de uma energia surpreendente. Sua voz é forte, mas melodiosa e não masculina; a pele é fina e muito branca; os movimentos um tanto bruscos e muito decididos". O relato inclui detalhes do entorno doméstico e da hospitalidade oferecida por Amélio Robles, mas Duby vai além para descobrir traços femininos e até maternais nas atenções domésticas e na atitude protetora e cálida da "coronela Robles" para com seus visitantes:
Apesar do avançado da hora, serviu-nos um jantar excelente, com hospitalidade natural, e mais tarde me preparou uma cama com lençóis muito brancos e cobertores quentes e suaves. Passei uma noite de descanso perfeito...
A anfitriã de Duby não parece a mesma pessoa em quem Miguel Gil não viu "nem um pedacinho feminino".53
Se o desejo de Amélio Robles era transformar-se em homem, o desejo de Gertrude Duby era encontrar no México rural e revolucionário uma figura local que encarnasse seus próprios ideais de revolução, justiça social e emancipação feminina. Por sua participação na guerrilha zapatista, a coronela Robles tinha credenciais revolucionárias que satisfaziam a perspectiva ideológica socialista de Duby. Mas talvez seu maior atrativo fosse sua atuação política como líder local. Diferentemente de outras ex-zapatistas que entrevistara em Morelos e Puebla, que viviam à margem da vida política do México revolucionário e, em alguns casos, enfrentavam condições sociais e econômicas muito desvantajosas, a coronela Robles exercia uma liderança política local que Duby destacou em suas anotações: "quando as coisas vão muito mal, ela pode aparecer na assembléia local com um bando do seu pessoal e enfrentar os políticos".54 Em seu entusiasmo pela atuação política de Robles, Gertrude Duby não parecia reparar na debilidade do poder legislativo numa sociedade onde prevaleciam relações políticas tradicionais.
Como muitas outras autoras que dão visibilidade à participação das mulheres nos processos históricos, Gertrude Duby atribui uma coerência e um sentido único à atividade das mulheres na facção zapatista da Revolução Mexicana. Não considera que o movimento armado pudesse ter significados diversos para seus protagonistas, tanto mulheres como homens, nem reconhece que apesar de seu impulso destrutivo, a guerra também pôde tornar possível a expressão das realidades inocultáveis do desejo, inclusive do desejo marginal e silencioso de ser homem de Amélio Robles, que seguramente não teria perdoado a Gertrude Duby por tê-lo "tratado de mulher".
O olhar de Gertrude Duby é mais do que uma perspectiva estrangeira decepcionada com a guerra européia e à busca de um éden de revolução social e emancipação feminina no México indígena. Essa mesma perspectiva reivindicadora das mulheres, impulsionada nos anos trinta e sessenta pelo feminismo da primeira e da segunda onda do século XX mexicano, permeou o discurso comemorativo local da Revolução Mexicana em Guerrero. Por isso, a batalha mais árdua que o Coronel Robles enfrentou não se deu em campo aberto, não teve cheiro de pólvora, nem precisou das armas da ideologia agrarista da Revolução Mexicana. Foi uma batalha cultural, uma luta silenciosa e lenta, cuja grande vitória foi transformar-se em homem, negando sua anatomia corporal de mulher. Amélio Robles, que antes se chamou Amélia Robles, esculpiu para si o corpo desejado e levou vida de homem durante setenta dos noventa e quatro anos que durou sua longa existência. Setenta anos em que agiu e sentiu como homem e se ajustou a padrões masculinos de conduta. Envergando uniforme militar, de casaco e gravata ou simplesmente com calça de algodão e colete de lã, ao gosto camponês, Amélio exibiu um corpo cuja virilidade muitas pessoas reconheceram. Por ocasião de sua morte correu o boato de que, nos últimos momentos, Amélio Robles teria pedido para ser enterrado com roupa de mulher, negando assim a masculinidade que manteve em vida, às vezes com o cano da pistola. Prevaleceu a intenção de normalizar sua identidade, expressa pelo rumor, e a lápide no cemitério de Xochipala, Guerrero – "aqui jazem os restos da coronela zapatista..." – contradiz a íntima felicidade de Amélio Robles: sentir-se, mostrar-se e saber-se homem.
As pessoas com identidade transgênero como Amélio Robles, às vezes, são vistas como símbolos positivos de uma transgressão das normas sociais de gênero e, outras vezes, suas construções identitárias são percebidas como manifestações não autênticas dos códigos culturais de gênero, que reforçam os estereótipos conservadores do masculino e do feminino.55 Contudo, a história particular da mudança de gênero de Amélio Robles não pode ser vista como uma impugnação ou reafirmação propositiva de uma ideologia de gênero, mas como uma maneira tão legítima como qualquer outra de articular um modo de ser e de sentir-se, mediante os recursos culturais disponíveis e dentro dos debates culturais em torno do significado e das representações do masculino e do feminino, processo imbricado nos conflitos sociais, nas tensões entre o rural e o urbano, na circulação transnacional das representações culturais e na construção das memórias da Revolução Mexicana.
Cadernos Pagú
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