Uma contribuição ao Colóquio nacional sobre
A cordialidade: A crítica da ambigüidade na cultura, na política e no cotidiano
Fernand-Anne Piestre: Caïn – Museu d’Orsay
UERGS
UNIVERSIDADE ESTADUAL DO RIO GRANDE DO SUL
UNIVERSIDADE ABERTA
13 e 20 de julho de 2005
Auditório do Memorial do Rio Grande do Sul
R e s u m o
O trabalho consiste em uma leitura de alguns pontos do capítulo 5 de Raízes do Brasil, de S. Buarque de Holanda, e de associações daí decorrentes. Desde a proposta de confronto entre família e Estado, passando pela concorrência entre os cidadãos, o conceito de cordialidade é examinado desde a Antígona de Sófocles aos dias de hoje, com uma incisão no período marcado pela segunda guerra mundial. Depois de caracterizar a cordialidade como uma característica comum a todos os povos, ensaiando seu posicionamento como uma ligação entre as pulsões de vida, amorosas, e as de morte, destruidoras (conforme descritas por Freud), o autor destaca a originalidade de S. B. de Holanda em haver reconhecido esta característica no brasileiro, condição primeira no caminho de construção de uma independência simbólica. Buscando exemplificar uma das faces desta cordialidade do brasileiro, o texto finaliza com uma breve e particular leitura da Ópera do Malandro composta por Chico Buarque de Holanda.
Es wird den Menschen offenbar nicht leicht, auf die Befriedigung dieses ihrer Aggressionsneigung zu verzichten.1
SIGMUND FREUD, Die Unbehagen in der Kultur (1930[1929])
A preocupação com a cordialidade é uma preocupação com a ética, e este Colóquio é uma sacudida em direção ao acordar, se me permitem o trocadilho. Quem nos sacode é a Profª. Kathrin Holzermayr Rosenfield, e depois de acordados não podemos permanecer na indiferença.
Isto me lembrou de um certo diálogo entre Costa-Gravas e o Prefeito de uma cidadezinha do norte francês, ao final das recentes filmagens de Le Couperet – um filme sobre o desemprego para a televisão francesa. Quem conta a história é Fernando López em La Nación: Costa-Gravas, horrorizado com as palavras ao mesmo tempo sinceras e amargas - justamente por isto terríveis – do Prefeito, dizendo que hoje Já não se pode fazer nada, teria feito o seguinte comentário: A indiferença é o principio da morte. Vejo ao redor de mim pessoas que, com a experiência, tornam-se um pouco cínicas: são os que dizem que as coisas, de qualquer modo, nunca mudam. Eu resisto e trato de fomentar esta rebeldia. – É assim que escuto a sacudida proposta da Profª. Kathrin: um anátema à indiferença. É desde aí que sua proposta faz laço social e é por isto que eu lhe agradeço o convite. Agradeço por me levar a pensar nesse conceito estranho ao campo da Psicanálise, um conceito no qual eu nunca havia me detido até então.
Estamos preocupados com a ética e ela não é a moral. Quando penso em ética penso nas conseqüências dos atos, do ethos, nossos costumes, nossa casa, nossa pele. Aquilo que fazemos tem sempre uma conseqüência, queiramos ou não, saibamos ou não!
Eu lhes propunha então o trocadilho acordar, com o duplo sentido de tirar do sono / acabar com a diferença. Pois para acordar, no sentido de despertar, nada melhor do que o teatro. Trata-se de possibilitar a um maior número possível de pessoas os instrumentos necessários para a construção da crítica; por isto o teatro.
No texto princeps de nossas discussões, eu diria o capítulo 5 de Raízes do Brasil, de Sérgio Buarque de Holanda, “O homem Cordial”2, ele começa pelo teatro, com a Antígona de Sófocles. Sua intenção é a de examinar o conflito existente entre os valores do Estado e os valores da Família. Estarão lembrados da montagem desta peça aqui em Porto Alegre por iniciativa - tanto quanto eu sei - da Profª. Kathrin, sob Direção do Luciano Alabarse sobre um texto traduzido pelo Prof. Lawrence Flores Pereira. Não é difícil imaginar uma linha de base para o nosso Colóquio sobre a cordialidade partindo daí com uma aguda incisão no período da segunda guerra mundial, assinalada pela obra de Thomas Bernhard, especialmente sua Praça dos Heróis cuja apresentação poderemos assistir já a partir de amanhã no Teatro São Pedro. É aí, na Heldenplatz, que Hitler, depois de ter pressionado em 12 de março de 1938 seus compatriotas ao Anchluss, à unificação com a Alemanha, profere em 02 de abril seu discurso triunfal sendo saudado efusivamente por uma multidão de Austríacos simpatizantes.3
Examinemos antes um pouco mais o nosso trocadilho, acordar. Ele tem a mesma etimologia da epigrafada cordialidade, ambos originam-se de cor, cordis. Interessante que para o vocábulo acordar, o nosso tradicional Aurélio - o outro Buarque de Holanda - nos dá, como primeiro sentido a conotação de Tirar do sono, despertar, chamar, enquanto a conotação de conciliar, acomodar - própria da cordialidade - irá aparecer como sua décima primeira posição. Já o inestimável Houaiss nos dá duas entradas para o vocábulo: a primeira com o sentido de fazer desaparecer diferenças e, ao contrário do Aurélio, para ele o sentido de fazer sair do sono é a sua segunda entrada. Como se pode ver, desde aqui, os acordos nunca são fáceis. Interessante é que a etimologia de acordar e de cordial remetem ao antepositivo cord, derivado também da mesma raiz latina, com o significado de coração como sede da alma, da inteligência e da sensibilidade.
Minha proposta de trabalho será então a de fazer algumas associações a partir de alguns pontos desse quinto capítulo de Sérgio Buarque de Holanda desde a minha disciplina e tentar algumas considerações.
Seu texto me parece indicar uma divisão em quatro partes: uma introdução em que esboça uma visão ideal da diferença entre a família e o Estado; depois a substituição da ordem familiar por princípios abstratos e sua conseqüente crise; a terceira parte está dedicada ao exame da persistência da estrutura familiar no estado brasileiro e, por fim, o legado daí resultante – a cordialidade, sua função e características.
Estamos em 1936, período de tensão em todo o mundo, e Raízes do Brasil começa, não por acaso, eu diria, com o confronto de nosso país com a Europa.4 Confronto será o recurso utilizado pelo autor ao longo de seu livro. No capítulo 5 ele confronta o Estado com a Família, dizendo que o primeiro não é uma ampliação do segundo. Sua utilização de uma negativa como forma retórica já no início de seu texto só faz valorizar o verbo utilizado para caracterizar a passagem da Família ao Estado, o verbo transgredir: é pela transgressão da ordem doméstica e familiar que nasce o Estado, nos diz ele. A transgressão, definidora de uma passagem de um lugar a outro, diz também da violação de um limite, de uma invasão, por fim, de uma agressão. Seu exemplo da incompatibilidade entre os dois princípios é trágico, e o modo como ele nos conta o núcleo do enredo não é sem dubiedade, obrigando-nos a examinar a tragédia com mais atenção. Ele diz aí que Antígona, ao sepultar Polinice, contra a ordem do estado, atrai sobre si a cólera do irmão, que não age em nome de sua vontade pessoal, mas da suposta vontade [...] da pátria. Ora, quem aí não age, supostamente, em nome próprio, é Creonte, tio de Antígona e não seu irmão! Estamos em pleno ciclo tebano e a tragédia em exame é a tragédia da família de Édipo, de quem Antígona é, ao mesmo tempo, filha e irmã; mas Creonte é irmão da mãe de Antígona, Jocasta, e por isso o interino e claudicante Regente de Tebas. E há ainda um agravante a mais, se queremos examinar este confronto entre a Família e o Estado: não se pode esquecer que o filho de Creonte, Hemon, está noivo de Antígona e, ao saber da morte da noiva, se traspassa morrendo junto dela; a esposa de Creonte, Eurídice, por sua vez, ao saber da morte do filho também se suicida; e ao tomar conhecimento de tudo isto, Creonte também quer morrer. Note-se que é só depois de Creonte reconhecer sua funesta resolução, sua , é só depois de ele reconhecer seus desacertos - como traduz Donaldo Schüler - que o Corifeu acerta: Tudo indica que tarde reconheceste a justiça – uma frase para se pensar, eu diria.
Mais adiante, no que eu considerei a parte dois de seu texto, S. Buarque de Holanda, ainda que sem aludir diretamente á tragédia, criticará a ereção da concorrência entre os cidadãos como valor social positivo. Sim, a concorrência entre os irmãos é algo muito complicado, embora isso não queira dizer que nunca é produtivo. A própria concorrência entre Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ao que tudo indica, deu resultados positivos, embora a citada frase do último - criticando o valor positivo da concorrência - me faça pensar que isso não tenha sido sem um custo. O mesmo se pode dizer da concorrência entre S. Buarque de Holanda e Cassiano Ricardo5, quando o último registra a inclusão de seus comentários na segunda edição de Raízes do Brasil. Mas o que me parece importante destacar é a diferença dessas citadas concorrências, das quais eu diria simbólicas, porque centradas na linguagem, de uma outra centrada no imaginário, no especular, situação da qual todos conhecemos um exemplo bem típico. Refiro-me aquele clássico duelo final dos velhos filmes de faroeste em que um diz para o outro: Este mundo é pequeno demais para nós dois. – Pois essa me parece uma frase muito verdadeira. Esse mundo no qual os eternos Etéocles e Polinices, os eternos Caim e Abel vivem, tem que ser mesmo muito pequeno. Como eles não sabem que cada um vive no seu próprio mundo, a imaginária intrusão de qualquer outro roubar-lhe-á, necessariamente, não apenas a metade do espaço, mas sim todo ele. Hesíodo dedicou-se à poesia possivelmente para escapar da briga pela divisão de terras com seu irmão Perses. Essa é uma solução muito usual: um irmão segue sendo fazendeiro, cuidando dos negócios da família, enquanto o outro vai ser doutor; são tentativas de se criar outros mundos para viver. Assim que dizer da concorrência apenas positiva ou negativa não me parece ter muito sentido. Antes de qualquer coisa precisamos saber se ela é simbólica ou imaginária e isso porque parece haver uma concorrência intrínseca ao ser humano, uma concorrência da ordem do real, como diria Lacan, uma concorrência impossível que não cessa de não se inscrever e que tem de vir à tona de um modo ou de outro, seja pelo imaginário, seja pelo simbólico, e isto em todos os níveis, sejam eles internacionais, estaduais ou familiares. Fundamentalmente, o que é preciso ter em conta é que toda esta tragédia de Antígona deriva de uma transgressão de Édipo ao cometer parricídio e incesto. A importância disso consiste no fato de mostrar que a família é constituída desde uma lei mais ampla, uma lei que diz respeito à coletividade. Assim, diria que não se pode pensar no conceito de família antes do conceito de sociedade. São interatuantes, como nos mostrou Freud e depois Lévi-Strauss, com as suas Estruturas elementares do parentesco.
Vejamos um pouco mais sobre essa concorrência. Freud a considera presente em um dos primeiros atos de civilização: o controle sobre o fogo. Esta realização extraordinária e sem precedentes (para utilizar suas próprias palavras6), a qual ele mesmo reconhece ter todas as características de uma conjetura fantástica, consistiu simplesmente na renúncia a um desejo infantil de extinguir o fogo com um jorro de urina. Como testemunhas, Freud invoca o gigante Gulliver, em Liliput, e o Gargântua de Rabelais. A visão fálica das línguas de fogo parecia insuportável e era preciso apagá-las, constituindo tal ato em uma relação homossexual. A primeira pessoa a renunciar a este desejo e a poupar o fogo pôde conduzi-lo consigo e submetê-lo ao seu próprio uso. Apagando o fogo de sua própria excitação sexual, domara a força natural do outro fogo – diz Freud. O que aparece aqui é a importância da renúncia a uma exigência pulsional. Lembrem que vencido o acordado período de governo, Etéocles, por exemplo, nega-se a renunciar ao poder em favor de Polinice resultando esta negação na conhecida tragédia. Se lembrarmos que a alternação do governo tinha sido uma estratégia para escapar da maldição paterna e evitar a guerra, podemos pensar que, uma vez no poder, Etéocles imagina que este o garantirá.
Quando Freud retoma sua teoria pulsional em O mal-estar na cultura, me parece importante registrar que ele o faz também pressionado por este mesmo clima de tensão antecedente da segunda guerra mundial. Depois de publicá-lo em 1930, concluindo-o com a esperança do triunfo de Eros sobre a pulsão de destruição, já em 31, fustigado pela então evidente ameaça de Hitler, ele acrescenta uma derradeira frase reveladora de sua dúvida sobre o resultado. Mas o que quero ressaltar é que nessa retomada do desenvolvimento de sua teoria pulsional, depois de começar dizendo com Schiller ser a fome e o amor os motores do mundo, e depois de reconhecer a importância da libido e da introdução do conceito de narcismo, Freud chega aos conceitos de pulsão de vida e de pulsão de morte, sendo que uma parte desta última é desviada no sentido do mundo externo - die Aussenwelt - como agressão e destruição. Mas ambas as pulsões, de vida e de morte, tendem a andar sempre juntas, em feixes, mescladas nas mais diferentes proporções, dificultando seu reconhecimento; apenas o sadismo, como pulsão mais visível, aquela que sempre se destaca, se desintrinca em primeiro lugar, aparece como um vínculo. Freud diz tratar-se de uma besonders starke Legierung7, uma liga particularmente forte entre as tendências amorosas e a pulsão de destruição. – Pois o que me parece é que neste vínculo também podemos situar a cordialidade, como um possível efeito de uma exigência pulsional. Podemos situá-la aí sob a égide da aufhebung hegeliana. A cordialidade, aí colocada, ao mesmo tempo em que supera a agressão, a conserva. Não seria de estranhar que a polidez fosse a forma lapidada, polida, deste diamante bruto.
Isto me parece uma coisa importante de reconhecer, que tanto a tendência ao amor como à destruição fazem parte da vida. Uma não é sem a outra. A vida precisa tanto da morte quanto a morte precisa da vida. A presença da morte nos faz valorizar a vida. Mas não é fácil explicar a um assassino, menos ainda a um suicida que seu ato louco implica em uma demanda de mais vida. É muito fácil confundir as coisas. Quem conhece o Caïn de Fernand-Anne Piestre, mais conhecido como Cormon8, esta enorme tela de sete metros de largura, hoje no Museu d’Orsay, lembra de sua figura desolada e solitária, embora a frente de uma pequena horda, fugindo da presença de Jeová - como diz Victor Hugo em La légende des siècles [1889] - deserto a fora, depois de ter se sentido preterido por Deus e culpado seu irmão por seu mal-estar.
Temos exemplos demais de atrocidades realizadas em nome do bem. Tivemos a oportunidade de escutar aqui a leitura desta impressionante crônica do Aurélio Buarque de Holanda sobre a exposição dos restos de Lampião, Maria [já não tão] Bonita e seus principais companheiros. O cronista parecia estupefato com o ar de festa desta macabra exposição. Gilberto Freyre9 nos conta da truculência dos senhores de engenho capazes de mandar assar vivas escravas negras grávidas, autorizados pelo poder patriarcal. Sabemos, porém, que isso não é coisa só dos nortistas, também temos nossos causos. Diria que entre estes os que mais atraem nossa curiosidade são os que contam das degolas nas revoluções de 1893 e 94, entre federalistas e republicanos - uma distinção que também não é das mais fáceis de entender -, e também na de 1923. Ficaram famosas as degolas de Rio Negro, em dezembro de 93, às vésperas do Natal, período de clássico - para não dizer cínico nem cordial - armistício. O interessante é que não se sabe exatamente o número dos degolados e isto por uma concorrência entre os degoladores que se jactavam de haver degolado um mais que o outro, o que faziam em meio a risadas. Entre estes degoladores, que por certo foram vários, destacou-se, contudo, Adão Latorre, muito possivelmente por ser negro, conforme a opinião do Dr. Sérgio da Costa Franco e do Dr. Blau Souza que fizeram a gentileza de me contar um pouco de suas pesquisas. Supõe-se que só ele tenha matado 300 em um mesmo dia10. Nestes episódios, com vítimas de ambos os lados, muitos dos degolados eram mercenários uruguaios que vendiam seus serviços indistintamente. Para reconhecê-los, na ausência de documentos identitários, pediasse-lhes para dizer a palavra pauzinho a qual, por dificuldades de fonação estavam impedidos de pronunciar; e quando na resposta aparecia o indefectível paussinho os daqui riam enquanto aplicavam a gravata colorada.
Mas isto não foi invenção nossa. A Bíblia conta que no confronto entre os galaaditas e os efraimitas, os primeiros usavam do mesmo recurso pedindo-lhes para se identificar pronunciando a palavra chibolet, sabendo que seu dialeto só possibilitava a pronúncia de sibolet. Na impossibilidade da contra-senha correta, os galaaditas enchiam o vau do Jordão com cadáveres efraimitas11.
Se eu lembro dessas passagens, é para dizer que o recurso da cordialidade, não me parece um privilégio brasileiro. Tenho escutado a Profª. Kathrin dizer que seus patrícios austríacos também usam o recurso da cordialidade. Pois no período antecedente a primeira guerra mundial o acordo estabelecido entre a França e a Inglaterra, com o objetivo francês de escapar do isolamento diplomático em que era mantida pela Tríplice Aliança da Alemanha, Áustria-Hungria e Itália, ficou conhecido como entente cordiale. O recurso da cordialidade parece mesmo estar para todos.
A originalidade de S. Buarque de Holanda está em dizer que o brasileiro é cordial, está em dizer que nós somos cordiais e que o coração abriga tanto o amor como o ódio. Amar bilaquianamente a terra em que se nasce não implica na adoção de nenhum catarismo.
S. Buarque de Holanda cita um sociólogo norte-americano dizendo ter se transformado o empregado em apenas um número. Pois é! E que lhes parece o fato de Costa-Gravas ter utilizado como título de seu filme o signo, penso que tenho de dizer assim – o signo couperet? Couperet se traduz ao português por cutelo, instrumento para cortar carnes em geral e, em particular, a cabeça dos condenados. Se entendermos o signo como aquilo que significa algo para alguém, temos de supor que, só por ler a palavra, as pessoas já sabem do que se trata: desnecessários pedaços de carne dourando ao sol de segunda-feira12.
Para S. Buarque de Holanda a cordialidade é uma máscara através da qual o indivíduo consegue manter sua supremacia ante o social, e isto é tanto mais importante quanto ele necessite desse social para libertar-se do pavor em viver consigo mesmo. Como bom americano – diz o autor – no brasileiro é a parcela social, periférica, a que mais importa. Pois lembrei de um outro estudo desta mesma época, de 1936. Trata-se de um estudo de Kurt Lewin, um Psicólogo Social nascido na Alemanha, em 1890, e que depois trabalhou por muitos anos nos Estados Unidos, até sua morte em 1947. Este texto faz uma comparação entre os alemães e os americanos, tratando em particular desta questão da distância social entre os indivíduos e me parece concordar com Buarque de Holanda.
K. Lewin caracteriza a personalidade de um e de outro como formada por cinco círculos concêntricos, dizendo que enquanto o alemão tem apenas uma camada periférica, social e quatro camadas íntimas, o americano tem quatro camadas sociais, externas e apenas uma íntima. Os testemunhos que ele arregimenta são arquitetônicos: as casas com alto muro e portão chaveado da família alemã por contraposição a casa sem muro e sem chaves nas portas (um pouco como nos contou o M.Scliar do Bom Fim de sua juventude). A conseqüência é serem os americanos aparentemente mais sociáveis e parecidos uns com os outros, mas em compensação, por ocuparem camadas superficiais, as relações se mantêm superficiais e, como diz K. Lewin, após anos de relações relativamente íntimas, os amigos rapidamente feitos se despedirão com a mesma facilidade com que o fariam ao cabo de poucas semanas de conhecimento13. Um número maior de camadas centrais, íntimas, parece ser uma maneira plástica de representar uma menor necessidade de apoiar-se nos outros, propiciando maior independência, mas o que se vê, por exemplo, no episódio da Heldenplatz, é que uma vez penetrado nessas camadas mais intimas não é difícil fazer que a hostilidade para com o vizinho se transforme em hostilidade para com uma raça em particular. Isto nos mostra que a independência que importa não basta ser imaginária, como grande parte das independências protéticas que andam por aí a depender sempre de garantias externas. A independência precisa tornar-se simbólica. Sem ela, tanto os superficiais quanto os, digamos, profundos podem ser facilmente convencidos. Quero dizer com isto, entre outras coisas, da necessidade do reconhecimento da separação do outro para o advento da independência simbólica, e que para isto não basta a cesura do cordão umbilical e nem mesmo as melhores intenções.
Para isso, o primeiro passo é o reconhecimento de nossa própria participação no processo no qual estamos envolvidos. No caso, este: os brasileiros, somos cordiais.
Na esperança de dizer com mais clareza como penso esse advento a uma independência simbólica, queria contar-lhes um caso clínico, ainda que em rápidas pinceladas. Trata-se de uma análise levada a efeito por Jacques Lacan e relatada pelo próprio analisante – Gérard Haddad14.
Haddad é um judeu tunisiano a quem o pai tinha votado à profissão médica. Nascido no período entre as duas grandes guerras, ele tem muitos conflitos com seus pais e, como conseqüência, não quer seguir a profissão escolhida pelo pai e nem a religião da família. Quando procura Lacan ele já é um Engenheiro Agrônomo com um trabalho por ele considerado interessante nas províncias subdesenvolvidas da África e o esboço de um romance embaixo do braço, além de uma neurose obsessiva tangente à loucura. Já está casado e com problemas conjugais atazanantes e, devido às suas inúmeras leituras, interessado na Psicanálise. Já tinha tido uma entrevista com Jean Paul Sartre, que o incentivara a continuar escrevendo, e também com Louis Althusser que lhe devolveu o gosto pela ação no comunismo militante. A ação central de sua análise, no meu entender, consistiu em sua reconciliação com o judaísmo. Ele, que até então jamais pensara que a shoah, o genocídio e as perseguições ao povo judeu tivessem qualquer coisa a ver com ele, termina por visitar Auschwitz e Birkenau onde conhece as valas onde a cada dia se queimavam 20.000 corpos dos filhos de sua gente. Ele descobre assim que o holocausto não foi um crime apenas contra o povo judeu e sim contra toda a humanidade. Entrementes, estuda medicina e torna-se analista vindo a ser reconhecido como um especialista no Talmude de onde tirou, através das diferentes técnicas de leitura e interpretação do mesmo, recursos para melhor qualificar a interpretação psicanalítica. – É isto! Será que consegui com este curto parágrafo dizer-lhes o que entendo por independência simbólica? Será que consigo deixar claro que ao se reconciliar com a religião familiar ele o faz desde um outro lugar que não o da dependência neurótica? Que ele o faz desde um lugar novo e original? Pois é por ter conquistado um lugar destes, novo e original, que um Dvorak é capaz de inspirar-se e compor uma sinfonia. As soluções são sempre originais e idiossincráticas.
Mas nós, brasileiros, ainda estamos ocupados com uma crítica que nos possibilite uma mais efetiva simbolização das relações do indivíduo com a lei e é neste momento que encontro esta peça do Chico, filho do Sérgio Buarque de Holanda, a Ópera do Malandro, uma ópera que põe em cena uma das faces desta cordialidade do brasileiro e que nos possibilita, se não entender, pelo menos sentir como o brasileiro enfrenta suas questões éticas.
Estarão lembrados de que esta ópera está situada justamente no período central da segunda guerra mundial. Nosso país mostra-se ambivalente, apoiando primeiro os Nazistas, em 1941, e depois os aliados, em 42. É nesta atmosfera que ele situa o enredo da peça. Aí está o malandro, gigolô de prostitutas, querendo se dar bem. Mas a mulher que ele explora, é explorada pelo grande empresário também, surgindo daí o conflito. A solução é entrar no contrabando e amaciar a lei com um presente discreto. Mas a lei reguladora é venal: como a Geni - não por acaso um travesti (na leitura do Ruy Guerra) - ela dá para qualquer um que a pague. E o empresário pode pagar mais para obter mais, quer dizer, paga para apagar o malandro, a concorrência da arraia miúda. Mas como o malandro quando cai, cai bem, trata de erguer-se com a ajuda do capital estrangeiro, internacionalizando assim sua miúda técnica de gigolô: dinheiro em troca de apoio, e assim logo sonha em abrir um banco nacional com estes estrangeiros capitais, em Minas Gerais.
Que beleza
Que riqueza
Tá chovendo
Da matriz
Ai, meu Deus do céu
Me sinto tão feliz.15
Depois que o malandro aparece com retrato na coluna social, consolida-se através do himeneu com a filha do empresário.
E então? Tudo certo? Onde está a falha? – Pois eu diria que na lógica, por querê-la sempre matemática na ilusão de que basta juntar elementos negativos para obter um resultado positivo.
Se o malandro - que parece uma derivação do italiano malandrino, com o sentido de salteador, mas também do latim malandrĭa, uma espécie de lepra (uma lepra social, sem dúvida) – se ele toma um gole de cachaça, não paga e dá no pé, isto permite ir empurrando o problema e engordando as barrigas até lesar o Banco Do Brasil que então, complicado com os investimentos estrangeiros, inverte rapidamente o problema até chegar de volta ao garçom. E quando este vê um desempregado, um ladrão de galinhas, um malandro, vai logo gritando:
Pega ladrão / Pega ladrão
E o ladrão / Autuado
É julgado e condenado culpado
Pela situação.16
Muito obrigado.
Notas:
1. Evidentemente, não é fácil aos homens renunciar à satisfação da inclinação para a agressão.
2. Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil [1936]. São Paulo, Companhia Das Letras, 26ª ed., 1995.
3. http://pt.wikipedia.org/wiki/Adolf_Hitler
4. Embora eu tenha a informação de que este primeiro parágrafo tem uma redação oposta em sua primeira edição, não creio que isto altere o pressuposto do confronto.
5. Cassiano Ricardo, O Homem Cordial e outros pequenos estudos brasileiros. Rio de Janeiro, Instituto Nacional do Livro, 1959.
6. Sigmund Freud, O Mal-estar na Civilização (1930[1929]). Rio de Janeiro, Imago, Edição Standard Brasileira das Obras Completas de Sigmund Freud, vol. XXI, 1974, p. 109.
7. Sigmund Freud, Das Unbehagen in der Kultur (1930[1929]). Frankfurt am Main, S. Fischer, Sigmund Freud Studienausgabe, Bd. IX, 1974, p. 247.
8. Ver no Google.
9. Gilberto Freyre, Casa-grande & senzala. São Paulo, Global, 50ª ed. 2005.
10. Imprescindível a leitura de um conto de Jaime Vaz Brasil, Milonga Triste Para Adão Latorre,
11. Jz 12:5-6.
12. Fernando León de Aranoa. Los lunes al sol.
13. Kurt Lewin, Problemas de Dinâmica de Grupo, São Paulo, Cultrix, 1970, p. 37.
14. Gérard Haddad, O dia em que Lacan me adotou. Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 2003.
15. Chico Buarque. “Ópera”. In Letra e música 1. São Paulo, Companhia das letras, 1990, p. 164.
16. Chico Buarque. “O malandro”. In Letra e música 1. São Paulo, Companhia das letras, 1990, p. 162.
www.tellesdasilva.com/aria.html
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