quarta-feira, 30 de junho de 2010

Um lugar para as crianças


Um lugar para as crianças
Em Santa Catarina, nos anos 1930, menores abandonados ficavam sob a tutela de guardiões. Acabavam trabalhando muito e estudando pouco
Silvia Maria Fávero Arend

No programa “Casa de caboclo”, transmitido por uma rádio de Florianópolis em 1970, o locutor leu o pedido de uma ouvinte, moradora de uma localidade chamada Morro do Céu: ela pretendia “dar” uma menina de 4 anos, de “cor branca”, a uma “pessoa boa” que tivesse condições de criá-la. Explicou que era pobre, mãe de cinco filhos, e não tinha marido. Uma criança a mais implicava um encargo com o qual não poderia arcar. O apelo foi atendido: dias depois, um jovem casal foi buscar a menina e a levou para casa, alegando que precisava de uma companhia para a filha de 2 anos.

Desde o período colonial, este é um costume presente na sociedade brasileira. Mães e pais provenientes das camadas mais pobres da população costumavam transferir seus filhos para lares de parentes, vizinhos, conhecidos ou até mesmo de pessoas “estranhas”, residentes no país ou no exterior. Essas migrações interfamiliares aconteciam, com freqüência, na informalidade. As crianças eram passadas adiante sem qualquer papel ou registro oficial que documentasse o fato. Tornavam-se “crias da casa”, “agregados” ou “filhos de criação”, e não era incomum receberem tratamento diferenciado em relação aos filhos legítimos do casal adotante.

Durante muito tempo, esse costume cumpriu um papel social importante. Era uma forma de salvar crianças carentes de um mau destino. Desde o final do século XVIII, a criança tornara-se objeto de preocupação dos governantes europeus. A razão não era propriamente humanitária. É que os índices de mortalidade infanto-juvenil eram bastante elevados. Era preciso que meninos e meninas pobres chegassem à idade adulta para que pudessem compor os efetivos dos exércitos, povoar as colônias e mover as máquinas da indústria. Até então, o dever de manter as crianças vivas e saudáveis era assunto privado, da alçada exclusiva dos pais. Mas como estes muitas vezes não podiam ou não conseguiam proporcionar aos filhos os cuidados necessários, o Estado passou a intervir cada vez mais na questão.

No Brasil, políticas públicas voltadas para a infância ganharam vulto nas primeiras décadas do século XX, capitaneadas por médicos e juristas. Em 1927, foi sancionado o primeiro Código de Menores, o que levou à criação de Juizados de Menores em quatro cidades: Rio de Janeiro, São Paulo, Porto Alegre e Recife. Este fato é considerado um marco na história da infância e da juventude no Brasil. A partir do advento de uma legislação específica e de instituições encarregadas de zelar pela sua aplicação, ocorre uma mudança radical: a migração de menores deixa de ser um assunto resolvido entre famílias. Caso uma criança não tivesse ninguém que cuidasse dela, o Estado assumiria essa função.

Em Florianópolis, o Juizado de Menores foi criado em 1935 pelo governador Nereu Ramos. Este novo movimento nascia sob a bandeira dos direitos sociais implementados pelo governo de Getulio Vargas. Para as autoridades locais, era necessário regularizar principalmente a situação dos meninos e meninas que andavam “vadiando” ou mendigando pelas ruas da cidade, oferecendo, já naquela época, um espetáculo condenado por parte da população. Um conjunto de ações (que hoje seriam chamadas de programas sociais) foi então instituído, visando encaminhar essa população infanto-juvenil para melhores rumos.

Em 1936, a antiga prática de famílias mais ricas acolherem filhos de pais pobres passou a ser feita sob a fiscalização do Estado. Inicialmente, abria-se um processo chamado Auto de Abandono Administrativo de Menor, em que o pátrio poder era retirado dos pais biológicos com base no Código de Menores de 1927. Pessoas comprovadamente idôneas se comprometiam a zelar pela alimentação, pelo vestuário e pela educação da criança ou do jovem que trocava de família. Chamavam-se guardiões. Ao acolher em seus lares esses “filhos de criação”, passavam a receber mensalmente a “soldada”, um pequeno montante em dinheiro pago pelos cofres públicos.

Em geral, os guardiões eram funcionários públicos de baixo escalão, policiais militares, comerciantes, profissionais liberais ou lavradores que residiam no interior do estado de Santa Catarina. Mulheres idosas, celibatárias ou viúvas, também acolhiam em seus lares esses filhos de criação. Em algumas situações, os próprios responsáveis solicitavam ao magistrado que seu filho fosse enviado para a casa de um guardião. Mas, às vezes, a decisão ficava por conta do próprio Juizado de Menores. Eram os casos que envolviam órfãos ou pais que não tinham condições morais de criar a prole, razão pela qual deixavam as crianças soltas pelas ruas, mendigando ou praticando “alguma gatunice”. O sistema de guarda era diferente do instituto da adoção atualmente em vigor. O pátrio poder era retirado de forma provisória, e os pais biológicos podiam reaver seus filhos se quisessem. Mas, para isso, tinham de cumprir um longo trâmite burocrático.

Entre 1936 e 1940, 280 crianças e adolescentes foram transferidas pelo juiz de menores de Florianópolis para famílias de guardiões, a maioria entre 7 e 18 anos. Os lares dos guardiões eram, de tempos em tempos, inspecionados por funcionários do Juizado. Naquela época, Florianópolis tinha várias residências com grandes quintais. Os meninos e rapazes acolhidos pelos guardiões, além de auxiliarem nas tarefas de dentro da casa, costumavam ser responsáveis pelo cuidado dos animais domésticos e pelas lides nas hortas, nos pomares e jardins. Outros, sobretudo os que moravam nas casas de mulheres solitárias e de poucas posses, trabalhavam como ambulantes, vendendo amendoim torrado, doces, frutas e verduras pelas ruas do centro da cidade. As meninas, por sua vez, trabalhavam como empregadas domésticas ou babás. Algumas moças, todas identificadas nos processos como brancas, exerciam a função de dama de companhia em famílias ricas. Estas tinham mais sorte e estudavam nos melhores colégios da região, mas constituíam uma exceção à regra. Em geral, meninas e moças eram impedidas de freqüentar aulas por causa da excessiva carga de trabalho diário na residência dos guardiões. Caso demonstrassem vontade de estudar, eram desestimuladas pelos adultos que as haviam acolhido. Já os filhos de criação do sexo masculino geralmente freqüentavam mais os bancos escolares, mesmo que fosse por curtos períodos.

Às vezes chegavam ao juiz denúncias de maus-tratos, mas em nenhum desses casos a criança ou o adolescente foram transferidos para outra morada. Afinal, o castigo físico, com o objetivo de “educar” as crianças, era uma prática aceita na época. Em cartas endereçadas ao magistrado, menores reclamavam também da pouca comida e do parco vestuário recebidos dos pais de criação. Em situações extremas, crianças e jovens queixosos fugiam das casas dos guardiões e iam perambular pelas ruas.

Por essas e outras, autoridades do setor começaram a ver o sistema de guarda de menores como uma solução apenas paliativa, com aspectos positivos e negativos. O positivo é que a estada dos menores nas casas de seus guardiões garantia sua sobrevivência. O índice de mortalidade de crianças e jovens no período foi realmente baixo. Por outro lado, as famílias acolhedoras, apesar de financiadas pelo governo, dificultavam ou mesmo impediam o acesso dos filhos de criação ao saber escolar que lhes daria maiores chances de ascensão social.

Com o tempo, as dificuldades encontradas por famílias que queriam reaver os filhos antes doados acabaram afastando a população pobre desse programa de assistência, que deveria justamente beneficiá-la. Havia ainda outro problema grave: a dificuldade de encontrar famílias em Santa Catarina dispostas a acolher crianças negras e mestiças. De fato, segundo registros do Juizado de Menores, a maioria dos menores abandonados era de cor branca. Por essa razão, a criação do Abrigo de Menores de Santa Catarina, inaugurado em 1940 pelo presidente Vargas, foi saudada no período como um grande feito. Com a nova instituição, o Estado assumiria a missão de cuidar da formação dos menores do sexo masculino considerados carentes e abandonados, sem distinção de cor.

Grande parte dos menores do sexo masculino foi então transferida das casas das famílias acolhedoras para o Abrigo, enquanto meninas e moças permaneciam nos lares dos guardiões. Otimista, o juiz de menores de Florianópolis acreditava que todos os problemas de assistência à infância e à juventude em situação de risco seriam sanados. Contudo, não foi o que aconteceu. Passados 70 anos, a questão continua na ordem do dia, e agravada. O ideário dos grandes abrigos para menores foi superado. Seu desmonte associa-se a um conjunto de idéias que indica justamente a família consangüínea ou mesmo uma família substituta como as instituições mais aptas a criar o ambiente ideal de que crianças e adolescentes necessitam para sua formação.

Em outras palavras: muitos dos programas sociais apresentados atualmente como inovadores já tiveram similares em épocas remotas. Será que essas experiências passadas não podem nos servir de lição, aperfeiçoadas e adaptadas para os dias de hoje? O diálogo entre presente e passado pode fornecer contribuições importantes para equacionar este antigo e complexo problema.

SILVIA MARIA FÁVERO AREND é professora de História da Universidade do Estado de Santa Catarina e autora da tese “Filhos de criação: uma história dos menores abandonados no Brasil (década de 1930)” (UFRGS, 2005).

Saiba Mais - Livros:

KUHLMANN JÚNIOR, Moisés; FREITAS, Marcos Cézar (orgs.) Os intelectuais na história da infância. São Paulo: Cortez, 2002.

MIRANDA, Humberto; VASCONCELOS, Maria Emília (orgs.) História da Infância em Pernambuco. Recife: Editora Universitária da UFPE, 2007.

PILOTTI, Francisco e RIZZINI, Irene (orgs.) A arte de governar crianças: a história das políticas sociais, da legislação e da assistência à infância no Brasil. Rio de Janeiro: Amais Livraria e Editora, 1995.

PRIORE, Mary del (org.) História das crianças no Brasil. São Paulo: Contexto, 1998.

Saiba Mais - Site:

Agência de Notícias dos Direitos das Crianças (www.andi.org.br)

Revista de História da Biblioteca Nacional

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