quinta-feira, 24 de junho de 2010

A ascensão de Erasmo de Roterdã


O teólogo Desidério Erasmo, de 34 anos, conhecido como Erasmo de Roterdã em referência à cidade holandesa que o viu nascer, é um nome em ascensão nos meios acadêmicos e intelectuais de toda a Europa. A razão do repentino entusiasmo para com esse aplicado estudioso das Santas Letras e da filosofia, de quem o currículo inclui uma temporada como livre docente na prestigiada Oxford, Inglaterra, sua obra de estréia, intitulada Adágios. Publicada no verão de 1500 pela editora Philippi, de Paris, com o título latino Adagiorium Collectanea, é uma compilação de cerca de 800 citações literárias breves, entre provérbios, máximas e metáforas, pinçadas com paciência das fontes mais diversas, sobretudo de autores da Grécia antiga. Adágio, lembra o autor, é todo ditado célebre que contemple alguma novidade ou contribuição à sabedoria. Daí o grande interesse que o livro vem despertando. Ele funciona como uma espécie de oráculo, em que cada sentença é reveladora.

Erasmo de Roterdã é um dos muitos estudiosos de nossos dias a beber na fonte dos ensinamentos dos sábios da Antiguidade. A tradução de textos do grego está entusiasmando os chamados "humanistas", cultores da poética, da retórica e da política. Sob a influência dos antigos filósofos, os atuais pensadores esboçam uma nova maneira de ver o mundo. Exaltam, por exemplo, a capacidade do homem de atuar sobre o mundo e defendem o direito à liberdade, tanto intelectual quanto de se fazer aquilo que se deseja. Na compilação de Erasmo, a ênfase está nos dizeres de moral prática, talvez com um duplo objetivo: sintetizar o pensamento clássico, tecendo ao mesmo tempo uma espécie de código de ética que balize as liberdades dos humanistas. "Ele caiu na fossa que cavara", entre tantos provérbios anônimos, é um exemplo desse tipo de conselho.

De autores antigos que hoje são conhecidos, graças à divulgação que os humanistas têm feito de seus textos, há dizeres de Sócrates, caso de "Conhece-te a ti mesmo", e de Plutarco, cuja ponderada recomendação "Prefere a metade ao todo", Erasmo elucida, com olhos no público ainda não habituado a ler obras da Antiguidade, afirmando que "o excesso é sempre nocivo". Para o leitor que quer ficar atualizado com as novas correntes de pensamento, importa muito penetrar no sentido de sentenças como essas. A intenção de Erasmo é didática. Em alguns casos, como em "Doce é a guerra para os que não a conhecem", as análises alongam-se por páginas a fio, incluindo comparações, paráfrases e até comentários de terceiros.

Não se pense, porém, que Erasmo é um pensador trancado numa torre de marfim. Os Adágios nasceram de uma necessidade bem concreta. Voltando à França, após um ano na Inglaterra, Erasmo foi surpreendido por um decreto do rei Henrique VII que, para evitar a evasão de divisas, havia proibido os estrangeiros de deixar o país carregando ouro. Quando chegou à alfândega, Erasmo foi obrigado e deixar com os funcionários aduaneiros seu pé-de-meia. Forçado a arranjar dinheiro rápido, dedicou-se à compilação de frases e citações literárias que entusiasmaram o editor Philippi. Apesar das circunstâncias em que foi concebida, a obra merece elogios. A devoção de Erasmo pelas belas sentenças é emocionante. Ela nos estimula a compartilhar a sabedoria acumulada por séculos de reflexão. Erasmo deixa transparecer desde já seu inconformismo, plasmado na forma como ele luta para que o saber avance. Outra qualidade, rara nos autores de hoje, é a lucidez. De sólida formação religiosa, Erasmo tem feito todo o possível para manter sua independência, libertando-se dos dogmas em favor do humanismo. Ao mesmo tempo que milita pela unidade da Igreja, deixa entrever sua maior ambição, que é contribuir para a evolução da filosofia cristã.

Prova disso é que, enquanto os Adágios continuam entre os livros de maior sucesso do ano, Erasmo já anuncia sua próxima obra, que deverá ter por título Manual do Cristão Militante. Segundo o autor, o livro, em parte já escrito, versa sobre um ideal: uma nova Igreja, na qual a religião seja interiorizada, que evite os excessos místicos e os debates estéreis da escolástica, e ao mesmo tempo não tema o racionalismo que vem confrontando os dogmas do cristianismo. "Preconizo a aliança das disciplinas humanas e das boas-letras com a verdade evangélica. Na religião, o acúmulo de indulgências, devoções praticadas mecanicamente e sem compreensão, é da ordem da impostura, do desatino", critica Erasmo. "A teologia escolástica decadente reina sobre o pensamento religioso. Com seu método silogístico, as verdades cristãs são esvaziadas de seu alento, calor e sangue", conclui. Se a Igreja quiser mudar por dentro, está aí um bom começo.

Revista Veja na História

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