Cinema e TV reforçam estereótipos sobre a vinda da Corte. Ao superar a caricatura, pode-se desvendar com os alunos um período e personagens fascinantes
Luiz Carlos Villalta e André Pedroso Becho
Um dos momentos mais significativos e importantes de nossa História tem sido relegado a relativo esquecimento. Quando lembradas, a transferência da Corte portuguesa para o Brasil e suas personagens costumam receber um tratamento simplista e caricato. D. Pedro I tem ares de herói nacional e de artífice da Independência, além de uma imagem ligada ao clichê do macho brasileiro, mulherengo e conquistador (o que, de certa forma, é endossado por uma “historiografia oficial”). Seu pai, D. João VI, inversamente – ele, que foi o único soberano europeu a pôr os pés em terras americanas na época colonial –, é representado como um rei medroso, preguiçoso, glutão e despreparado, à frente de uma Corte corrupta e de má reputação entre as potências européias.
Os principais meios de comunicação, como cinema, teatro e televisão, têm contribuído para a produção e difusão desses estereótipos, tornando-os senso comum entre os brasileiros. Quem não se lembra do filme “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati, ou da minissérie “O Quinto dos Infernos”, da TV Globo, paródias sobre esse momento histórico? E de suas personagens, o bobão D. João e a ninfomaníaca, grotesca e ambiciosa D. Carlota?
Freqüentemente, o ensino de História, em vez de acompanhar as inovações da historiografia, reproduz as caricaturas dos filmes e da TV como “ilustração” do que se viu nas aulas, ou seja, como “verdades históricas”, sem qualquer reflexão crítica. Em vez de subverter o cânone, utilizando estas produções como fontes a serem discutidas, a escola o reitera.
Perde-se, assim, a oportunidade de abordar em sala de aula toda a complexidade e a importância daquele período, além de dispensar a análise do momento político e cultural em que as referidas obras de ficção foram produzidas.
Os anos da permanência da Corte no Brasil (1808-1821) trouxeram mudanças radicais na vida e nos costumes da antiga colônia. Nesse processo, D. João, longe de ser um bobalhão, mostrou-se um político hábil. Governou na confluência de interesses da Corte portuguesa, da abastada sociedade fluminense e, de resto, da região Centro-Sul do Brasil, cujo apoio econômico e político era essencial para a sobrevivência da monarquia. Como contrapartida ao suporte financeiro de grandes comerciantes e proprietários, o rei fez farta distribuição de mercês e títulos.
É verdade que os historiadores falam sobre a corrupção e o caráter arcaico da administração régia, considerando-se a época. Também mostram as hesitações de D. João VI. Mas procuram situá-las no contexto em que se desenvolveram: em meio às pressões inglesas e francesas, ao embate entre liberais e absolutistas e, como se não bastasse, entre portugueses e brasileiros (estes últimos começavam então a se ver dessa maneira).
Assim, por um lado, D. João favoreceu a Inglaterra ao abrir os portos e romper com o monopólio comercial português, medida que prejudicou todo o esforço que, desde a ascensão de D. José I ao trono (1750), procurava desenvolver as manufaturas no Reino de Portugal. O mesmo efeito teria o Tratado de Navegação, Comércio e Amizade, de 1810, que fixava tarifas alfandegárias mais baixas para os produtos ingleses. Por outro lado, D. João revogou, em 1º de abril de 1808, as proibições que pesavam no desenvolvimento das manufaturas no Brasil. Além disso, não cedeu às pressões inglesas para pôr fim à escravidão (que já tinha sido abolida em Portugal em 1761), pois sua manutenção era importante não só do ponto de vista econômico, mas também para a cooptação das camadas proprietárias do Brasil.
Em relação aos que se engajaram na Revolução Pernambucana de 1817 (espalhando-se por outras partes do atual Nordeste, contra o governo do Rio de Janeiro), o soberano reagiu com violência, mandando tropas, ordenando a execução e a prisão de líderes. Iniciativas que estão distantes da imagem de um soberano covarde, medroso e bobalhão.
O professor também pode trabalhar com as transformações induzidas no espaço urbano da capital. O monarca investiu na mudança da fisionomia do Rio de Janeiro e em iniciativas culturais, destacando-se a introdução da imprensa e a criação da Biblioteca Régia, do Jardim Botânico, da Academia de Belas-Artes e de algumas escolas superiores. Estas realizações se inseriam num projeto maior de “civilizar” o Rio de Janeiro, permitindo a instalação na cidade de uma Corte nos moldes europeus, além de se glorificar e buscar adeptos para a monarquia. Gravuras e desenhos de artistas como Debret e Montigni dão conta deste tema.
D. João, portanto, não foi um simples defensor do domínio português sobre o Brasil, uma simples marionete de seus ministros e de lorde Strangford (um dos principais representantes ingleses na Corte). Num contexto de guerra, agiu dentro das limitadas margens de manobra de que dispunha, procurando firmar sua soberania e preservar a unidade do império luso-brasileiro, ou, pelo menos, o controle de sua família sobre as partes de que este se compunha. Foi, com certeza, um grande estrategista político e um reformador, ainda que defensor do absolutismo – uma ambigüidade que pode muito bem chamar a atenção para as transformações políticas daquela época.
D. Carlota Joaquina, a maior vítima dos preconceitos, tem recebido hoje um tratamento mais cuidadoso da historiografia. Ela foi uma articuladora política importante, principalmente por sua participação nos conflitos dinásticos espanhóis. Causou, inclusive, problemas para a diplomacia portuguesa, levando D. João e seus ministros a fazerem, em determinado momento, um cerco político à sua atuação, que não se limitava ao que geralmente se esperava de uma pessoa do sexo feminino, mesmo pertencente à nobreza.
Para os professores de História, lançar novos olhares sobre Carlota Joaquina pode ser uma iniciativa estimulante. Significa analisar o ativo papel desempenhado por uma mulher no jogo político de então. Uma mulher que muitas vezes tomou atitudes desvinculadas dos interesses portugueses e de seu marido e rei, D. João.
O mesmo vale para o ensino de todo aquele rico período, determinante para a história do país. Uma estratégia interessante seria tomar como ponto de partida os próprios estereótipos. Discussões em sala de aula e a exibição do filme “Carlota Joaquina” ou de capítulos da minissérie “O Quinto dos Infernos” permitirão identificar o senso comum em voga entre os alunos, e na sociedade, sobre a presença da Corte no Brasil. O confronto dessas representações com aquelas encontradas em documentos escritos e em imagens produzidas no próprio período poderá indicar contradições e dar margem a questionamentos e a dúvidas por parte dos alunos. Em seguida, eles poderão aprofundar seus estudos com base na análise de outros documentos, das contribuições oferecidas pela historiografia e mesmo pelos livros didáticos.
O uso de documentos de época é muito profícuo, mas recorrer a fontes primárias requer certo cuidado. Sua eficácia em termos pedagógicos depende dos procedimentos críticos da investigação histórica. Não se pode empregá-los como forma “ilustrativa” e “comprobatória” de interpretações transmitidas prontas e acabadas pelo professor. Isso não enriquece o aprendizado. Os documentos devem instigar os alunos a opor imagens e representações, analisando quem, quando, como e por que elas foram produzidas, detectando suas diferenças e semelhanças, e produzindo uma síntese interpretativa no fim do exame de todo o material. Com isso, participam do processo de construção do conhecimento em sala de aula.
O filme e a minissérie citados devem ser tomados igualmente como documentos. São testemunhos do tempo em que foram produzidos, ou seja, da década de 90 do século passado, período em que se vivia uma incerteza econômica, além de pulularem escândalos na vida pública e privada de políticos, do presidente da República a ministros. Com isso, será possível entender os porquês históricos dos estereótipos. Grosso modo, essas produções estabelecem uma linha de continuidade entre a corrupção e a velhacaria dos políticos da época joanina e as dos atuais, simplificando o passado e eliminando as diferenças entre ele e o presente.
A mesma leitura crítica deve ser feita nos documentos produzidos na época joanina. Os professores podem valer-se, atualmente, de farta produção historiográfica, que permite escapar de uma visão simplificadora sobre esse período, além de um acesso mais fácil a fontes históricas.
Um exemplo de documentação passível de ser utilizada são os volumes da Gazeta do Rio de Janeiro, periódico que reproduzia documentos oficiais e noticiava fatos da vida política. Todas as suas edições estão disponíveis no Acervo Digital da Biblioteca Nacional (www.bn.br). Deve-se alertar os alunos que esse periódico era publicado na forma das tradicionais gazetas do Antigo Regime, controladas pela censura régia, e que, portanto, traziam apenas o discurso político afinado com os interesses da monarquia lusitana. Esse discurso pode ser comparado com o de outro periódico da época, o Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, que, por ser editado e impresso na Inglaterra, permitia ao editor divulgar opiniões e discursos políticos que às vezes divergiam da posição oficial presente na Gazeta. Todos os volumes do Correio foram reimpressos recentemente pela Imprensa Oficial de São Paulo e também são de fácil acesso.
Para despertar o interesse dos alunos, usar imagens produzidas pelos artistas da Missão Francesa também é uma boa opção. É importante destacar o esforço desses pintores, como vimos, de construir uma imagem da monarquia e da Corte segundo os moldes tradicionais europeus. São fontes extremamente ricas: permitem ao professor abordar as linhas gerais do projeto político joanino de dar ares de Corte ao Rio, fortalecendo a monarquia e um governo central, expressam concepções estéticas e culturais de artistas europeus, com um olhar estrangeiro que valorizava o exótico, e mostram as peculiaridades da sociedade da Colônia e suas contradições.
O ensino da história do período de D. João VI, por fim, não deve levar em consideração apenas o processo de imposição de um projeto político monárquico, defensor de uma sociedade escravista e de uma cidadania restrita. É preciso focalizar também os projetos que se contrapunham aos do governo português, e que levaram à instalação de uma arena de combate após a partida do soberano, em 1821. Houve, de fato, distintos projetos políticos, que hoje estão esquecidos. Os preconceitos e estereótipos não vitimam apenas a Corte portuguesa no Brasil e suas personagens principais. Ao reiterar o cânone, também apagam da memória os que na época sonhavam com outros Brasis.
Luiz Carlos Villalta, doutor e mestre em História, é professor de História do Brasil e de Prática de Ensino de História na UFMG, co-organizador (com Maria Efigênia Lage de Resende) e colaborador do livro As Minas Setecentistas (Autêntica, 2007).
André Pedroso Becho é licenciado e mestrando em História na UFMG, co-autor do ensaio “Lugares, espaços e identidades coletivas na Inconfidência Mineira de 1788-9”, publicado no livro As Minas Setecentistas.
Saiba mais:
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Para ensinar o período de forma diferente:
FONTES, Sílvia Drumond Silva. A Corte Portuguesa no Brasil. (http://www.fafich.ufmg.br/pae/independencia.htm).
Revista de História da Biblioteca Nacional
Luiz Carlos Villalta e André Pedroso Becho
Um dos momentos mais significativos e importantes de nossa História tem sido relegado a relativo esquecimento. Quando lembradas, a transferência da Corte portuguesa para o Brasil e suas personagens costumam receber um tratamento simplista e caricato. D. Pedro I tem ares de herói nacional e de artífice da Independência, além de uma imagem ligada ao clichê do macho brasileiro, mulherengo e conquistador (o que, de certa forma, é endossado por uma “historiografia oficial”). Seu pai, D. João VI, inversamente – ele, que foi o único soberano europeu a pôr os pés em terras americanas na época colonial –, é representado como um rei medroso, preguiçoso, glutão e despreparado, à frente de uma Corte corrupta e de má reputação entre as potências européias.
Os principais meios de comunicação, como cinema, teatro e televisão, têm contribuído para a produção e difusão desses estereótipos, tornando-os senso comum entre os brasileiros. Quem não se lembra do filme “Carlota Joaquina”, de Carla Camurati, ou da minissérie “O Quinto dos Infernos”, da TV Globo, paródias sobre esse momento histórico? E de suas personagens, o bobão D. João e a ninfomaníaca, grotesca e ambiciosa D. Carlota?
Freqüentemente, o ensino de História, em vez de acompanhar as inovações da historiografia, reproduz as caricaturas dos filmes e da TV como “ilustração” do que se viu nas aulas, ou seja, como “verdades históricas”, sem qualquer reflexão crítica. Em vez de subverter o cânone, utilizando estas produções como fontes a serem discutidas, a escola o reitera.
Perde-se, assim, a oportunidade de abordar em sala de aula toda a complexidade e a importância daquele período, além de dispensar a análise do momento político e cultural em que as referidas obras de ficção foram produzidas.
Os anos da permanência da Corte no Brasil (1808-1821) trouxeram mudanças radicais na vida e nos costumes da antiga colônia. Nesse processo, D. João, longe de ser um bobalhão, mostrou-se um político hábil. Governou na confluência de interesses da Corte portuguesa, da abastada sociedade fluminense e, de resto, da região Centro-Sul do Brasil, cujo apoio econômico e político era essencial para a sobrevivência da monarquia. Como contrapartida ao suporte financeiro de grandes comerciantes e proprietários, o rei fez farta distribuição de mercês e títulos.
É verdade que os historiadores falam sobre a corrupção e o caráter arcaico da administração régia, considerando-se a época. Também mostram as hesitações de D. João VI. Mas procuram situá-las no contexto em que se desenvolveram: em meio às pressões inglesas e francesas, ao embate entre liberais e absolutistas e, como se não bastasse, entre portugueses e brasileiros (estes últimos começavam então a se ver dessa maneira).
Assim, por um lado, D. João favoreceu a Inglaterra ao abrir os portos e romper com o monopólio comercial português, medida que prejudicou todo o esforço que, desde a ascensão de D. José I ao trono (1750), procurava desenvolver as manufaturas no Reino de Portugal. O mesmo efeito teria o Tratado de Navegação, Comércio e Amizade, de 1810, que fixava tarifas alfandegárias mais baixas para os produtos ingleses. Por outro lado, D. João revogou, em 1º de abril de 1808, as proibições que pesavam no desenvolvimento das manufaturas no Brasil. Além disso, não cedeu às pressões inglesas para pôr fim à escravidão (que já tinha sido abolida em Portugal em 1761), pois sua manutenção era importante não só do ponto de vista econômico, mas também para a cooptação das camadas proprietárias do Brasil.
Em relação aos que se engajaram na Revolução Pernambucana de 1817 (espalhando-se por outras partes do atual Nordeste, contra o governo do Rio de Janeiro), o soberano reagiu com violência, mandando tropas, ordenando a execução e a prisão de líderes. Iniciativas que estão distantes da imagem de um soberano covarde, medroso e bobalhão.
O professor também pode trabalhar com as transformações induzidas no espaço urbano da capital. O monarca investiu na mudança da fisionomia do Rio de Janeiro e em iniciativas culturais, destacando-se a introdução da imprensa e a criação da Biblioteca Régia, do Jardim Botânico, da Academia de Belas-Artes e de algumas escolas superiores. Estas realizações se inseriam num projeto maior de “civilizar” o Rio de Janeiro, permitindo a instalação na cidade de uma Corte nos moldes europeus, além de se glorificar e buscar adeptos para a monarquia. Gravuras e desenhos de artistas como Debret e Montigni dão conta deste tema.
D. João, portanto, não foi um simples defensor do domínio português sobre o Brasil, uma simples marionete de seus ministros e de lorde Strangford (um dos principais representantes ingleses na Corte). Num contexto de guerra, agiu dentro das limitadas margens de manobra de que dispunha, procurando firmar sua soberania e preservar a unidade do império luso-brasileiro, ou, pelo menos, o controle de sua família sobre as partes de que este se compunha. Foi, com certeza, um grande estrategista político e um reformador, ainda que defensor do absolutismo – uma ambigüidade que pode muito bem chamar a atenção para as transformações políticas daquela época.
D. Carlota Joaquina, a maior vítima dos preconceitos, tem recebido hoje um tratamento mais cuidadoso da historiografia. Ela foi uma articuladora política importante, principalmente por sua participação nos conflitos dinásticos espanhóis. Causou, inclusive, problemas para a diplomacia portuguesa, levando D. João e seus ministros a fazerem, em determinado momento, um cerco político à sua atuação, que não se limitava ao que geralmente se esperava de uma pessoa do sexo feminino, mesmo pertencente à nobreza.
Para os professores de História, lançar novos olhares sobre Carlota Joaquina pode ser uma iniciativa estimulante. Significa analisar o ativo papel desempenhado por uma mulher no jogo político de então. Uma mulher que muitas vezes tomou atitudes desvinculadas dos interesses portugueses e de seu marido e rei, D. João.
O mesmo vale para o ensino de todo aquele rico período, determinante para a história do país. Uma estratégia interessante seria tomar como ponto de partida os próprios estereótipos. Discussões em sala de aula e a exibição do filme “Carlota Joaquina” ou de capítulos da minissérie “O Quinto dos Infernos” permitirão identificar o senso comum em voga entre os alunos, e na sociedade, sobre a presença da Corte no Brasil. O confronto dessas representações com aquelas encontradas em documentos escritos e em imagens produzidas no próprio período poderá indicar contradições e dar margem a questionamentos e a dúvidas por parte dos alunos. Em seguida, eles poderão aprofundar seus estudos com base na análise de outros documentos, das contribuições oferecidas pela historiografia e mesmo pelos livros didáticos.
O uso de documentos de época é muito profícuo, mas recorrer a fontes primárias requer certo cuidado. Sua eficácia em termos pedagógicos depende dos procedimentos críticos da investigação histórica. Não se pode empregá-los como forma “ilustrativa” e “comprobatória” de interpretações transmitidas prontas e acabadas pelo professor. Isso não enriquece o aprendizado. Os documentos devem instigar os alunos a opor imagens e representações, analisando quem, quando, como e por que elas foram produzidas, detectando suas diferenças e semelhanças, e produzindo uma síntese interpretativa no fim do exame de todo o material. Com isso, participam do processo de construção do conhecimento em sala de aula.
O filme e a minissérie citados devem ser tomados igualmente como documentos. São testemunhos do tempo em que foram produzidos, ou seja, da década de 90 do século passado, período em que se vivia uma incerteza econômica, além de pulularem escândalos na vida pública e privada de políticos, do presidente da República a ministros. Com isso, será possível entender os porquês históricos dos estereótipos. Grosso modo, essas produções estabelecem uma linha de continuidade entre a corrupção e a velhacaria dos políticos da época joanina e as dos atuais, simplificando o passado e eliminando as diferenças entre ele e o presente.
A mesma leitura crítica deve ser feita nos documentos produzidos na época joanina. Os professores podem valer-se, atualmente, de farta produção historiográfica, que permite escapar de uma visão simplificadora sobre esse período, além de um acesso mais fácil a fontes históricas.
Um exemplo de documentação passível de ser utilizada são os volumes da Gazeta do Rio de Janeiro, periódico que reproduzia documentos oficiais e noticiava fatos da vida política. Todas as suas edições estão disponíveis no Acervo Digital da Biblioteca Nacional (www.bn.br). Deve-se alertar os alunos que esse periódico era publicado na forma das tradicionais gazetas do Antigo Regime, controladas pela censura régia, e que, portanto, traziam apenas o discurso político afinado com os interesses da monarquia lusitana. Esse discurso pode ser comparado com o de outro periódico da época, o Correio Braziliense, de Hipólito da Costa, que, por ser editado e impresso na Inglaterra, permitia ao editor divulgar opiniões e discursos políticos que às vezes divergiam da posição oficial presente na Gazeta. Todos os volumes do Correio foram reimpressos recentemente pela Imprensa Oficial de São Paulo e também são de fácil acesso.
Para despertar o interesse dos alunos, usar imagens produzidas pelos artistas da Missão Francesa também é uma boa opção. É importante destacar o esforço desses pintores, como vimos, de construir uma imagem da monarquia e da Corte segundo os moldes tradicionais europeus. São fontes extremamente ricas: permitem ao professor abordar as linhas gerais do projeto político joanino de dar ares de Corte ao Rio, fortalecendo a monarquia e um governo central, expressam concepções estéticas e culturais de artistas europeus, com um olhar estrangeiro que valorizava o exótico, e mostram as peculiaridades da sociedade da Colônia e suas contradições.
O ensino da história do período de D. João VI, por fim, não deve levar em consideração apenas o processo de imposição de um projeto político monárquico, defensor de uma sociedade escravista e de uma cidadania restrita. É preciso focalizar também os projetos que se contrapunham aos do governo português, e que levaram à instalação de uma arena de combate após a partida do soberano, em 1821. Houve, de fato, distintos projetos políticos, que hoje estão esquecidos. Os preconceitos e estereótipos não vitimam apenas a Corte portuguesa no Brasil e suas personagens principais. Ao reiterar o cânone, também apagam da memória os que na época sonhavam com outros Brasis.
Luiz Carlos Villalta, doutor e mestre em História, é professor de História do Brasil e de Prática de Ensino de História na UFMG, co-organizador (com Maria Efigênia Lage de Resende) e colaborador do livro As Minas Setecentistas (Autêntica, 2007).
André Pedroso Becho é licenciado e mestrando em História na UFMG, co-autor do ensaio “Lugares, espaços e identidades coletivas na Inconfidência Mineira de 1788-9”, publicado no livro As Minas Setecentistas.
Saiba mais:
DIAS, Maria Odila Leite da Silva. A interiorização da metrópole e outros estudos. São Paulo: Alameda, 2005.
LIMA, Oliveira. D. João VI no Brasil. 3ª ed. Rio de Janeiro: Topbooks, 1996.
MALERBA, Jurandir. A Corte no exílio: civilização e poder no Brasil às vésperas da Independência (1808-1821). São Paulo: Companhia das Letras, 2000.
Para ensinar o período de forma diferente:
FONTES, Sílvia Drumond Silva. A Corte Portuguesa no Brasil. (http://www.fafich.ufmg.br/pae/independencia.htm).
Revista de História da Biblioteca Nacional
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