Dogmas virginais e a imagem da mulher
Nos séculos transitórios entre a Antigüidade e a Baixa Idade Média os séculos de ascese tomam o lugar dos passados séculos de martírio. Ao princípio dúbio: “Eva é vae, a desgraça, mas também vita, a vida”,106 desenvolve-se a duplicidade nas palavras de São Jerônimo (+419) “Morte por Eva, vida por Maria”,107 ou em Santo Agostinho: “Pela mulher a morte, pela mulher a vida.”108 Dois temas já expostos no século V, mas desenvolvidos no limiar da Baixa Idade Média, para impedir que as mulheres desesperem-se de alcançar a sorte dos bem-aventurados. Já que uma mulher esteve na origem de um mal tão grande, é preciso, para lhes restituir a esperança, que uma mulher esteja na origem de um bem igualmente grande. À figura de Eva opõe-se á de Maria inaccessível, a Virgem-Maria.
O século XII foi o grande século da afirmação da Virgem-Maria, entretanto louvá-la não é de maneira alguma prestar homenagem ao conjunto das mulheres. Única, sem exemplo, virgem é Maria-mãe. Foram desenvolvidas orações, meditações, especulações sobre a natureza, a identidade, as virtudes específicas de Maria, dos quais surgiram os quatro grandes dogmas pelos quais a Igreja a aborda: maternidade divina, virgindade, Imaculada Conceição e Assunção. Pois a maternidade virginal já não é discutida. À Deus tudo é possível, mesmo o impossível. Na época medieval, ninguém põe em dúvida essas verdades de fé. O nascimento virginal é, contudo, o ponto mais difícil a admitir. A concepção de virgindade mariana parece fechar-se ainda mais em relação às épocas anteriores, o que tem por efeito, não fazer de Maria um modelo próximo às mulheres, mas o de projetá-la num céu inaccessível de uma maternidade virginal sem a menor abertura para a pobre das mortais. O que é proposto como opção às mulheres as deixa à margem da vida, pois o último baluarte das que não falharam é a graça de Deus. As virtudes da Santa são o último recurso de uma virtude perdida para sempre.
Assim, estrategicamente a Igreja lança uma das raras reservas emitidas sobre a onipotência divina, concedendo à mulher a condição de reerguer-se após a sua queda.
Desde o século IX, um modelo valorizador do casamento para os casais principescos em que a grande dama tinha toda a disponibilidade em conciliar os deveres de seu cargo aos da maternidade. Assim, a santificação de Maria resgatava uma pequena, mas certa, imagem positiva da mulher e mesmo da feminilidade. No espírito dos autores eclesiásticos desse tempo, a possibilidade de salvação das mulheres casadas, sobretudo a das mais importantes damas, é antes de mais nada uma possibilidade de resgate. “A perda do selo virginal não tem apelo, tanto físico como moralmente. A penitência é a única via; o arrependimento da pecadora – da meretriz – dito claramente de prostituta, é o único modelo. Para as descendentes da porteira da morte (...) -, não há salvação senão pela porta pequena”.109
À Eva, inferno e perdição assegurados, opõem-se a Virgem-Maria,: paraíso e virgemmãe inaccessíveis. Nesta construção onde não havia lugar para as outras mulheres, desenvolve-se então a idéia de reabilitação da mulher e da feminilidade, pela terceira via, desta complexa tríade: Maria-Madalena pecadora; mas arrependida: o purgatório. “Jaques Lê Goff vê constituir-se enquanto tal na segunda metade do século XII, e que é também lugar de arrependimento de esperança e de temor: o Purgatório”.110 Entre a porta da morte e a porta da vida, a pecadora é benvinda; surge uma possibilidade para uma redenção, mas ao preço da confissão, do arrependimento, da penitência. No decurso dos séculos seguintes são banalizadas a trilogia das imagens dominantes da mulher na cultura dos clérigos: a tentadora, a Rainha do Céu e a pecadora resgatada. A partir do começo do século XIII há menos ênfase sobre a o tema da virgindade e a mulher triunfa como mãe.
Surge então São Tomás de Aquino para fazer a síntese de todas essas tendências de sua época e contrapõe às idéias de Santo Agostinho e à sua teologia platônica que definiu as orientações da Igreja por vários séculos, as suas próprias meditações, esclarecendo as relações entre a Revelação (cristã) e a Filosofia (aristotélica), entre a fé e a razão. Segundo o teólogo, tais conceitos não se chocam nem se absorvem, permanecem íntegros em suas respectivas esferas, possibilitando assim a coexistência da filosofia e da teologia, que só entram em conflito quando a razão é usada incorretamente, ou seja, quando tenta, sem auxílio da fé compreender o mistério do dogma religioso, inacessível em essência a quaisquer interpretações racionalistas, pois a razão deve ser apenas serva da fé. Mas, segundo Duby, São Tomás é levado a pensar que é por Adão e pela cadeia contínua dos pais que o pecado original se estende a toda a descendência humana, reatando nesse ponto as idéias de Santo Agostinho.
As interpretações de Aristóteles realizadas por São Tomás de Aquino, e por outros pensadores da época, proporcionam à mentalidade clerical medieval as bases teóricas para asseverar a debilidade da mulher, a sua necessária submissão ao homem, a defesa da virgindade e a fidelidade ao esposo (incluindo o esposo não nobre). Lança então os dogmas da Igreja, dos quais o casamento, como instituição religiosa, é posteriormente oficializado e sacralizado no Concílio de Latrão em Roma.
106 DUBY, Georges; PERROT, Michelle, op. cit., p.39.
107 ibid, op. cit., p. 39.
108 id, op. cit., p. 39.
109 DUBY, Georges; PERROT, Michelle, op. cit., p. 46.
110 ibid, op. cit,. p. 53.
Parte integrante da dissertação de mestrado
A Roupa, a Moda e a Mulher na Europa Ocidental
Medieval
Reflexo da opressão sofrida pela mulher na Idade Média (século: XI-XV)
Orientadora: Prof.ª Drª Maria Eurydice Barros Ribeiro
Aluna: Georgia M. de Castro Santos
Um comentário:
Escrevi no blog no final do ano passado sobre esses tres icones femininos do dogma religioso: Maria, Madalena e Eva. Interessante ler agora um artigo sobre o mesmo tema, com embasamento acadêmico. Obrigada por compartilhar.
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