Humanos criados como animais: Coração selvagem
Isolados na floresta, abandonados pela família ou adotados por animais: conheça os incríveis casos decrianças que cresceram longe de outros seres humanos e, depois, tiveram que se reintegrar à sociedade
por Flávia Ribeiro
De acordo com a lenda, os gêmeos Rômulo e Remo, filhos de uma mortal com o deus Marte, foram abandonados em um cesto no rio Tibre. Ainda bebês, tinham pouquíssimas chances de sobreviver. Mas uma loba os resgatou, protegeu e amamentou, permitindo que crescessem saudáveis e fundassem a cidade de Roma em 753 a.C. Sem dúvida, um final feliz. Na vida real, entretanto, crianças criadas longe do convívio humano nunca fundaram cidades. Esses meninos e meninas, encontrados em florestas, estradas ou campos, andam de quatro e nus – no máximo, vestidos com trapos. Em vez de falar, grunhem. Na hora de comer, gostam de carne crua, frutas e raízes silvestres. E, mais do que tudo, intrigam profundamente os estudiosos.
O primeiro registro de uma criança selvagem data de 1344: um menino-lobo achado na região de Hesse, na Alemanha, citado pelo filósofo francês Jean-Jacques Rousseau no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Mas o fenômeno tem ocorrências recentes. Um exemplo é o russo Andrei Tolstyk, abandonado aos 3 meses e criado por cães. Foi descoberto numa parte remota da Sibéria em 2004, aos 7 anos, andando de quatro, latindo e cheirando tudo o que via.
Cada caso novo de criança selvagem bota um pedaço de lenha na fogueira de uma das mais persistentes questões da ciência: existe uma natureza humana? “O homem não nasce humano. Ele possui, sim, a capacidade de tornar-se humano. Aprender a falar uma língua, por exemplo, é uma exclusividade humana que só se realiza com o contato com outros que falem”, diz Luci Banks-Leite, professora de Educação da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). “Nem mesmo a postura bípede se desenvolve se alguém não der a mão antes.” Nas histórias de vida dessas crianças, dois fatores saltam logo aos olhos: primeiro, sua impressionante capacidade de sobreviver nas condições mais adversas: enfrentando frio, calor e, muitas vezes, o ataque de animais. Depois, o árduo caminho que percorrem ao ser educadas para que saiam da condição de selvagens e se tornem “civilizadas”. O isolamento, entretanto, costuma deixar marcas profundas em todas elas. “Algumas perdas são irreversíveis”, diz Luci.
A professora é uma das organizadoras de A Educação de um Selvagem, livro que discute o processo pedagógico do francês Victor, o Selvagem de Aveyron, encontrado abandonado no fim do século 18. Diferentemente de algumas histórias semelhantes que parecem ser lendas ou invenções de charlatães, o caso de Victor é bem documentado. O mesmo ocorre com o alemão Kaspar Hauser e a indiana Kamala de Midnapore. Juntos, representam os três principais tipos de criança selvagem: a que viveu isolada de outros seres humanos, a que foi adotada por animais e a que permaneceu confinada.
Filho do isolamento
A mais célebre criança selvagem inspirou inúmeros livros (alguns científicos, outros nem tanto) e teve sua vida levada para as telas de cinema pelo diretor francês François Truffaut no belo O Garoto Selvagem, de 1969. Foi conhecido primeiro como Selvagem de Aveyron e, mais tarde, chamado de Victor pelo médico e educador francês Jean Itard, que se encarregou de sua criação. O menino foi encontrado por caçadores em 1799, com cerca de 12 anos, vagando por bosques na França. Estava nu, sujo, mordido e arranhado, se alimentava de nozes e raízes. Tinha 23 cicatrizes causadas por mordidas de animais e outra, no colo, por uma provável facada. Andava trotando, farejava o que lhe davam, roía os alimentos, amava os campos e tinha aversão a usar roupas e a comer alimentos cozidos. Não falava, apenas emitia sons guturais. Seus olhos não se fixavam ou demonstravam expressão. Seu tato, olfato e audição eram aparentemente insensíveis.
Nunca se soube se Victor se perdeu ou foi abandonado por sua família. Sabe-se apenas que viveu em completo isolamento. Foi levado a uma instituição nacional de surdos-mudos, onde Philippe Pinel, considerado o pai da psiquiatria moderna, o diagnosticou como “acometido de idiotia” e, portanto, não suscetível à socialização e à instrução. Mas Jean Itard discordou de seu mestre e resolveu educar ele mesmo o menino. Escreveu dois relatórios sobre seus progressos: um em 1801, após um ano de trabalho com ele, e outro em 1806. No primeiro, afirma que os hábitos de Victor mostravam as “marcas de uma vida errante e solitária” e demonstravam que ele tinha passado pelo menos sete de seus 12 anos no isolamento. Segundo o médico, o menino dava aos cientistas a incrível oportunidade de “determinar quais seriam o grau de inteligência e a natureza das idéias de um adolescente que, privado desde a infância de qualquer educação, tivesse vivido inteiramente separado dos indivíduos de sua espécie”.
Itard é considerado o pai da educação especial e um precursor da psicologia infantil por seu inovador trabalho com Victor. Mas, apesar de estar à frente de seu tempo, cometeu um erro. O médico, que apostou na disciplina e nas relações sensoriais de causa e efeito para educar o menino, deixou de lado as emoções. “Itard não percebeu o potencial do convívio. O tempo que passava com Victor era apenas o das experiências educacionais que fazia com ele. Dá um passo, inova, é ousado, mas ainda é limitado por não perceber a importância das relações pessoais”, afirma Izabel Galvão, professora de Educação da Universidade de São Paulo (USP) e também organizadora de A Educação de um Selvagem.
Madame Guérin, a governanta que cuidou de Victor, foi quem estabeleceu com ele uma relação propriamente pessoal. “Até certo ponto, o tratamento que Itard impôs trouxe resultados, mas foi domesticador. Já o de Guérin foi humanizador”, diz a psicóloga Renata Guarido, professora da USP. Em contato com os dois, Victor, ao longo dos anos, tornou-se um rapaz de aparência normal. Aprendeu a mostrar as coisas de que gostava, a sorrir, a pedir e a dar carinho. Mas frustrou Itard, pois jamais aprendeu a falar articuladamente. Era capaz apenas de dizer uma ou outra palavra, como lait (“leite”, em francês). Morreu aos 40 anos.
O choro da menina-loba
Como os lendários irmãos Remo e Rômulo, Kamala e Amala de Midnapore também foram criadas por lobos – o tipo de bicho que mais acolhe humanos (veja quadro na página anterior). Em 1920, o reverendo Joseph Singh viajava numa missão espiritual pela Índia quando soube da lenda de duas meninas que viviam com uma matilha daqueles animais. Intrigado, partiu atrás delas. Ao encontrá-las, ficou impressionado: ambas andavam de quatro e, antes de sair da caverna em que se escondiam, colocavam só a cabeça para fora e olhavam desconfiadas para os lados. Capturadas, foram encaminhadas ao orfanato da cidade indiana de Midnapore. O reverendo Singh, que as criou junto com sua mulher, era o diretor da instituição.
Kamala tinha cerca de 8 anos e Amala, apenas 1 ano e meio. Carnívoras, bebiam água lambendo e tinham horror à luz. Passavam o dia todo arredias, mas à noite uivavam e grunhiam. A menor sobreviveu dez meses longe dos bosques e morreu, um ano depois, de nefrite (inflamação nos rins). Foi quando Kamala chorou pela primeira vez desde que chegara ao orfanato. “Ela teria chorado se Amala tivesse morrido na selva? Ou será que, no tempo em que conviveu com humanos, a menina aprendeu a chorar?”, questiona a professora Luci. “São perguntas sem resposta. Mas Kamala pode, sim, ter aprendido. O choro e o riso não são apenas reflexos do ser humano. São construídos socialmente.”
A menina mais velha ainda viveu por nove anos. Na época em que morreu, com a mesma doença da irmã, Kamala era uma adolescente de cerca de 17 anos. Havia passado a andar ereta e adquiriu um vocabulário de 50 palavras. Chamava a senhora Singh de “mamá” e chorava com sua ausência. Conversava com todos, inclusive com os médicos. Sua evolução, conseguida com os cuidados do casal Singh, levou o sociólogo francês Lucien Malson, autor de As Crianças Selvagens, a concluir que Kamala não tinha nascido com problemas mentais. “Pelo contrário, a comparação entre seu nível mental aos 8 anos e o que chegou a demonstrar mais adiante manifesta, com toda a evidência, que devia sua triste condição à falta de uma vida familiar em sua infância.”
Pão, água e morte
Em 1828, um trôpego rapaz de 16 anos, estranhamente vestido, apareceu na porta de uma casa. Levava em seu bolso um lenço com suas iniciais, um rosário, orações, um pouco de ouro em pó e uma carta dirigida ao capitão do 4º Esquadrão do 6º Regimento da Cavalaria de Nuremberg, na Alemanha. Na carta, uma mulher dizia que aquele era seu filho e que o pai era um membro da Cavalaria. Havia junto outro bilhete, escrito por alguém que dizia ser um pobre operário a quem o rapaz fora confiado. As ordens tinham sido bem diretas: manter o jovem confinado.
O adolescente falava, mas só duas frases eram compreensíveis: “eu não sei” e “eu gostaria de ser um cavaleiro como meu pai foi”. Também lia e escrevia rudimentarmente. Com uma pena, mostrou ser capaz de rabiscar seu nome: Kaspar Hauser. Suas origens nunca foram descobertas, mas uma das possibilidades é rocambolesca: ele seria o príncipe de Baden, filho do grão-duque Carlos de Baden e da grã-duquesa Estefania de Beauharnais. Mas, como outros nobres germânicos não queriam que a coroa seguisse nessa linhagem, teriam arrancado o filho do casal e o confinado no porão. Assim como ocorreu com Victor de Aveyron, sua história resultou em inúmeros livros e em um filme, O Enigma de Kaspar Hauser, dirigido pelo alemão Werner Herzog em 1974.
O estranho rapaz foi recolhido por soldados e, mais tarde, levado a morar com o professor George Daumer e a passar temporadas na casa do jurista e filósofo Alselm von Feuerbach, que escreveu sobre ele Beispiel eines Verbrechens am Seelenleben des Menchen (ou “Exemplo de um atentado à vida anímica do homem”, não publicado no Brasil). Nele, conta que Kaspar andava tropeçando, chorava muito e tinha medo de tudo, até de certas cores, como preto e amarelo. Amava os cavalos, trocava qualquer alimento por pão e água e falava de forma estranha. “Poder-se-ia tê-lo tomado por um habitante de outro planeta que milagrosamente chegou à Terra”, escreve Feuerbach.
Kaspar não viveu em total isolamento, como Victor, nem apenas em companhia de animais, como Kamala e Amala. Por isso, ficou mais fácil descobrir parte de sua história, revelada por ele mesmo. Soube-se, por exemplo, que passou a maior parte de sua vida preso em um porão escuro e silencioso, recebendo comida – na maioria das vezes pão e água – por uma fresta. Através dela, ouvia a voz do “Homem”, que lhe ensinou algumas palavras escritas e faladas. Em três anos vivendo na casa de Daumer, Kaspar já tinha um belo vocabulário, embora nunca tenha se ajustado à vida em sociedade. Saiu de casa, tentou viver em outros lugares. Sofreu dois atentados a faca. Sobreviveu ao primeiro, mas faleceu no segundo, aos 22 anos. O autor do crime, segundo se imaginou na época, teria sido o tal “Homem” que o havia mantido trancafiado.
A arte imita a selva
Não faltaram exemplos reais para inspirar os selvagens da ficção
Pyrénée foi criada por um urso e vive nas montanhas dos Pirineus, na França. Personagem principal da aventura que leva seu nome, escrita por Régis Loisel e Philippe Sternis, ela tem uma história impressionante. Assim como a Garota de Issaux, que existiu mesmo e provavelmente serviu de inspiração aos dois autores. A menina tinha 16 anos quando foi encontrada, em 1719, e vivia naquela mesma região montanhosa desde os 8, quando se perdeu durante um passeio. Como a maioria dos jovens selvagens, mal falava e alternava o andar bípede com o quadrúpede. Os ursos, entretanto, não estão entre os que mais costumam acolher humanos. O recorde fica com os lobos: há registros de 25 casos de crianças encontradas vivendo entre eles (acredita-se que o instinto materno de lobas com filhotes justifique o carinho delas por crianças perdidas). O personagem Mogli, inspirado nessas histórias, ficou conhecido no mundo todo após se transformar em animação dos estúdios Disney. Mas, antes disso, o menino-lobo figurava na literatura de primeira linha, presente no clássico O Livro da Selva, de Rudyard Kipling, escrito em 1895. Tanto no livro como no cinema, Mogli foi viver em uma vila de humanos e se adaptou rápido (muito diferente do que costuma ocorrer na realidade). Já o personagem Tarzan se deu tão bem na vida selvagem que acabou virando o “Rei da Selva”. O primeiro dos 24 livros sobre ele, escritos pelo americano Edgar Rice Burroughs, foi lançado em 1914. Tarzan é um nobre que, ainda bebê, acaba perdido na selva africana durante a ocupação do continente pelos ingleses. É encontrado por macacos, que o criam como um deles. Sua saga inspirou desde desenhos animados até filmes como Tarzan, o Homem Macaco, de 1932 – com várias continuações, todas com o ator e nadador Johnny Weissmuller (foto) –, e Greystoke: a Lenda de Tarzan, o Rei das Selvas, de 1984. Levado à Inglaterra, o homem-macaco chegou até a ter um romance com a aristocrata Jane. Na vida real, as nove crianças achadas vivendo entre macacos – sete delas na África – passaram por muita dificuldade nas suas tentativas de ressocialização.
Mãe natureza abandonada
Para o bem ou parao mal, é a sociedadeque nos faz humanos
Em 1750, o filósofo iluminista francês Jean-Jacques Rousseau publicou seu Discurso sobre as Ciências e as Artes, no qual lançou a controversa teoria de que as ciências e as artes corrompem o homem. Naquele livro, ele argumentava a favor de uma “volta à natureza”, defendendo a tese de que “o homem é naturalmente bom”, mas acaba perdendo a bondade inicial conforme avança a civilização. Essa idéia do “bom selvagem” nortearia toda a obra de Rousseau. Quatro anos depois, ele voltaria ao tema no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade entre os Homens. Aqui ele comenta cinco casos de crianças perdidas, incluindo o menino-lobo de Hesse, encontradoaos 7 anos, e a Garota de Issaux, achada nos Pirineus. Para Rousseau, o fato de esses meninos e meninas andarem de quatro acontecia por uma eventual imitação dos quadrúpedes, e não por características humanas naturais. O “bom selvagem”, na verdade, andaria sobre os dois pés, além de ser inteligente e generoso. Em 1928, Edwin Ewart Aubrey, um filósofo e teólogo escocês, levou a discussão adiante, defendendo a tese de que, para agir como humano, um indivíduo tem que ser criado por humanos. “O homem não nasce como um ser cultural já completo, com instintos inalienáveis, que determinem o curso inevitável de seu desenvolvimento”, disse. A conclusão de Aubrey foi a de que “a ‘humanidade’ do homem aparece no contato social, tornando-se parte do indivíduo”. Os meninos e meninas selvagens encontrados ao longo dos séculos foram, portanto, tolhidos em suas potencialidades humanas (vivessem eles confinados, isolados ou entre animais). “Hoje é mais fácil perceber que as histórias de crianças selvagens demonstram que o comportamento humano não é inato, mas aprendido”, diz a professora Izabel Galvão. “Mas a discussão sobre natureza humana permanece atual, pois entra nos terrenos de biotecnologia, clonagem e robótica.”
Saiba mais
Livros
As Crianças Selvagens: Mito e Realidade, Lucien Malson, Civilização, 1978 - Tradução portuguesa do livro Les Enfants Sauvages, de 1963, faz um inventário de crianças selvagens e analisa seus tipos mais representativos.
A Educação de um Selvagem – As Experiências Pedagógicas de Jean Itard, Luci Banks-Leite e Izabel Galvão (organizadoras), Cortez, 2000 - Tem artigos sobre Victor de Aveyron e seu relacionamento com o educador Jean Itard. No apêndice, traz os dois relatórios sobre o menino.
Wolf-Children and Feral Man, Joseph Singh e Robert Zingg, Harper, 1942 - Sobre as indianas Amala e Kamala, também trata de outros casos e traz, em anexo, o famoso texto de Alselm von Feuerbach sobre Kaspar Hauser.
Site
www.feralchildren.com - O site, em inglês, enumera dezenas de histórias de crianças selvagens, com dicas de leitura sobre elas.
Revista Aventuras na Historia
Um comentário:
Caro Eduardo,
Parabéns pelo excelente Blog. Justíssima a indicação da Isabel Branco.
Serei um visitante sistemático.
Um abraço.
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