Shakespeare apaixonante
Mesmo quem nunca assistiu a uma de suas peças saberá dizer pelo menos uma frase de seus eternos personagens. No entanto, quase 400 anos depois de sua morte, permanece a desproporção entre o que sabemos sobre a obra do gênio e a vida do homem
por Jerônimo Teixeira
Foi um inverno rigoroso. No meio da madrugada, sob uma tempestade de neve, uma carroça cruzava a ponte sobre o rio Tâmisa congelado. O tempo inóspito vinha a calhar: ninguém desejava que aquele imenso – e ilícito – carregamento de madeira fosse visto. O material vinha do Theatre, um dos primeiros teatros de Londres. O proprietário do terreno criava dificuldades para renovar o arrendamento do Theatre para a trupe que atuava ali, os Lord Chamberlain’s Men. Os irmãos Cuthbert e Richard Burgage, atores da companhia, recorreram a um expediente ousado para não ficar sem casa: contrataram carpinteiros para desmontar o Theatre. No fim de 1598, a madeira foi carregada para outro subúrbio londrino, onde em alguns meses seria erguido o novo teatro Globe. A ousadia dos Lord Chamberlain’s Men seguiria adiante: pouco tempo depois, o Globe veria a estréia da mais complexa peça literária já escrita. Hamlet, do poeta e ator William Shakespeare, fez sucesso entre o público londrino.
Macbeth, Rei Lear, Otelo, A Tempestade – os grandes textos da maturidade de Shakespeare foram encenados no Globe. O teatro foi destruído por um incêndio em 1613. Provavelmente, depois desse triste incidente, Shakespeare abandonou o palco e voltou para sua vila natal, Stratford-upon-Avon, onde morreu de uma febre indeterminada em 1616. “O resto é silêncio”, diz Hamlet, em sua famosa última fala. A morte de Shakespeare, porém, não o silenciou. Em 1623, era lançada a primeira coletânea de sua obra teatral, o chamado Primeiro Fólio (no formato “infolio”, a folha de papel é dobrada em duas, resultando em um livro de tamanho maior do que o “inquarto”, dobrado em quatro). O livro reuniu todas as peças shakespereanas que hoje conhecemos, menos Péricles, da qual só sobreviveu uma duvidosa edição inquarto. Do total de 36 textos no Fólio, 18 nunca haviam sido publicados. Não será exagero dizer que, se não fosse o esforço dos atores John Heminges e Henry Condell, que tiveram a iniciativa de imprimir a obra do velho companheiro Will, a literatura e o teatro não seriam os mesmos hoje.
Mesmo quem nunca leu uma peça sua saberá citar alguma frase de um de seus personagens – como a batida (mas sublime, quando recolocada no contexto) “ser ou não ser”, de Hamlet. Shakespeare é o escritor mais citado, aludido, revisado, revisitado que existiu. Também é o nome mais aplaudido nos palcos de todo o mundo. E um favorito do cinema: de Laurence Olivier a Leonardo DiCaprio, atores de várias gerações já encarnaram seus complexos personagens na tela grande. Aliás, são mais de mil personagens em suas peças, incluindo aí os mais difíceis papéis que um ator pode enfrentar – como o rei Lear e, mais uma vez, o príncipe Hamlet (o próprio Shakespeare, aliás, interpretou o espectro do rei Hamlet).
Em 1709, Nicholas Rowe escreveu um impreciso perfil de 40 páginas como introdução para uma obra completa de Shakespeare. Desde então, os eruditos têm desencavado muitos documentos com referências a Shagspere, Shackspeare ou Shaxspere (a ortografia do inglês ainda não estava estabelecida na época, e os sobrenomes variavam muito). Mas parece haver uma incorrigível desproporção entre o tamanho do gênio e a vida do homem. A lenda diz que Shakespeare teria nascido no mesmo dia em que morreu, 23 de abril. Na verdade, só o que sabemos é que ele foi batizado em 26 de abril de 1564. Foi o primeiro filho do luveiro John Shakespeare e de sua mulher, Mary Arden, a sobreviver à infância – a mortalidade infantil era alta. O menino seguramente freqüentou a escola de latim (ainda que, em um poema em homenagem a Shakespeare incluído no Primeiro Fólio, seu amigo e rival Ben Jonson tenha afirmado que o “cisne de Avon” sabia “pouco latim e menos grego”).
Em 1582, o futuro poeta casou-se apressadamente com Anne Hathaway – Susanna já se debatia dentro da barriga da mãe quando o casal recebeu a benção da igreja. A nova família vivia sob o teto de John Shakespeare, e não se sabe exatamente como William ajudaria no sustento da casa. Há indícios de que ele tenha sido tutor de meninos, ensinando latim para filhos da nobreza. Em 1585, Anne deu à luz Judith e Hamnet (o menino morreu com 11 anos). Podemos supor que Shakespeare ainda estava em Stratford pela época do nascimento dos gêmeos. Em seguida, abre-se a maior e mais misteriosa lacuna de sua vida. Ninguém sabe exatamente quando Shakespeare foi para Londres. Algumas companhias teatrais da capital apresentavam-se em Stratford, e biógrafos românticos gostam de imaginar o jovem poeta impulsivamente ganhando a estrada com uma trupe itinerante. Até onde se sabe, no entanto, as companhias não recrutavam atores na província.
No reinado de Elisabeth I, Londres era uma metrópole cosmopolita, o centro de um emergente império naval. A vitória inglesa sobre a poderosa Armada (frota) espanhola, em 1588, havia rompido definitivamente o monopólio ibérico nos mares. A guerra com a Espanha, porém, prolongava-se, agravando a inflação. Surtos de peste eram comuns na cidade insalubre, e os atores sofriam: o poder municipal fechava o teatro sempre que a peste reaparecia. As condições de vida eram duras – o número de mortes era maior do que de nascimentos, mas a cidade seguia crescendo por causa das levas de imigrantes. Por volta de 1600, Londres teria 200 mil habitantes.
Nem todos os recém-chegados terão tido o sucesso de Shakespeare. Will era ator e autor teatral, o que não era muito comum então. Os poetas de maior sucesso no palco eram os chamados “Gênios Universitários” (University Wits), egressos em sua maioria de Oxford – gente como Thomas Lyly e Cristopher Marlowe. Shakespeare não tinha formação universitária e talvez, por isso, tenha despertado inveja. Em 1592, um panfleto póstumo assinado por Robert Greene – um Gênio Universitário de vida promíscua e morte pobre – acusava Shakespeare de ser um plagiário pretensioso. Em um trocadilho que ficou famoso, Greene dizia que o novo poeta se considerava único Shake-scene (“sacode cenas”) de Londres. Shakespeare não parece ter se abalado com o falecido Greene. Seu grande rival artístico seria mesmo Ben Jonson. Na virada do século 16 para o 17, uma briga dividiu os palcos londrinos. O público divertia-se com os virulentos ataques que os dramaturgos faziam uns aos outros. Os principais envolvidos eram, de um lado, o provocador Jonson, e, de outro, Thomas Dekker e John Marston. Foi Dekker quem batizou o conflito de “Poetomaquia” – a Guerra dos Poetas. Alguns críticos consideram que Shakespeare manteve uma distância olímpica desse quebra-pau cênico. Na verdade, Shakespeare satirizou Jonson na figura do arrogante guerreiro Ajax em Troilus e Créssida.
Histórias sobre disputas verbais travadas entre Shakespeare e Ben Jonson em esfumaçadas tavernas encantaram gerações de leitores, mas carecem de comprovação. Ninguém sabe que tavernas Shakespeare freqüentava – se é que ele as freqüentava. Há uma anedota, registrada nos diários de um estudante de direito em 1602, na qual Shakespeare aparece passando a perna em Richard Burgage. Em uma noite em que fazia o papel-título de Ricardo III, o ator combinou um encontro amoroso para depois do espetáculo. Shakespeare, que ouvira a conversa entre seu companheiro e a amante, bateu mais cedo à porta da jovem dama – e prontamente recebeu os favores dela. Quando Burbage apareceu, Shakespeare lhe mandou um recado dizendo que Guilherme (William), o Conquistador, chegara antes de Ricardo III. A maior parte dos fatos conhecidos, porém, não reiteram a imagem de artista dissoluto. Enquanto fazia a vida em Londres, Shakespeare, prudente, seguia investindo em Stratford – chegou a comprar a segunda maior casa do lugarejo, chamada New Place.
Em 1603, após a morte de Elizabeth, Jaime VI, rei da Escócia, subiu ao trono inglês como Jaime I, dando início ao reinado da dinastia Stuart. A antiga Lord Chamberlain’s Men ganhou novo status oficial: com o rei como patrono, tornou-se a King’s Men. Em termos materiais, porém, isso significou pouco: os atores não ganhavam muito mais do que cozinheiros e serviçais da corte. Uma dos mitos persistentes em torno de Shakespeare é a de que sua poesia tenha conquistado a afeição real. Lendas falam de peças que ele teria escrito a pedido da rainha Elizabeth. O próprio Ben Jonson, em sua homenagem póstuma a Shakespeare, fala das peças que “tanto arrebatavam Eliza e Jaime”. Nenhum dos monarcas, porém, deixou qualquer indicação de preferência por algum dramaturgo em particular.
A lenda de Shakespeare nutriu-se também de seus maravilhosos sonetos. Foram escritos provavelmente ao longo da década de 90 do século 16, quando o soneto era a grande moda literária, mas sua publicação só saiu em 1609. Nesses poemas, Shakespeare fala de dois amantes: um jovem rapaz e uma mulher de pele escura, a chamada “Dama Negra” (Dark Lady). Tais personagens seriam criações exclusivas da imaginação do poeta – ou foram inspirados em pessoas reais? Só podemos especular. O candidato mais cotado para o papel de jovem amante é o conde de Southampton, a quem Shakespeare dedicou os poemas eróticos Vênus e Adonis e A Violação de Lucrécia. Lucy Negro, uma mulher negra que administrava um bordel em Londres, é uma das apontadas como possível Dama Negra.
Há especulações ainda mais desvairadas sobre o poeta. Um reles ator sem educação universitária poderia ser o maior nome da literatura inglesa? Alguns dizem que não. Shakespeare seria apenas uma fachada, um testa-de-ferro para outro escritor – talvez o filósofo Francis Bacon, ou o conde de Oxford (até Freud apostava neste último). Essas teorias tiveram sua voga, mas hoje estão completamente desacreditadas. Não surpreende que a identidade de Shakespeare tenha sido questionada. Sua obra é tão extraordinária que só podemos concluir que ninguém pode ter sido Shakespeare – a não ser, é claro, Shakespeare.
Saiba mais
Livros
Shakespeare, uma Vida, Park Honan, Companhia das Letras, 2001, Um homem raro emerge desse texto recente que descreve um Shakespeare comum.
Shakespeare, a Invenção do Humano, Harold Bloom, Objetiva, 2000, Sobre a importância dos personagens shakesperianos na formação dos mitos modernos.
Shakespeare & the Poets War, James P. Bednarz, Columbia University Press, 2001, Análise focada nos fatos históricos por trás da obras de Shakespeare.
The Complete Works, William Shakespeare, Oxford University Press, 1992, Coletânea dos textos no inglês original.
Sites
http://the-tech.mit.edu/Shakespeare/, Traz a obra completa de Shakespeare, em inglês.
www.rdg.ac.uk/globe/, Dedicado às pesquisas arqueológicas e históricas sobre o antigo teatro. Há ainda informações sobre a construção do novo Globe.
Muito mais entre o céu e a terra
Amores, polêmicas, dramas,conspirações, sucesso...
1564
William Shakespeare nasce em Stratford-upon-Avon
1582
Shakespeare casa-se com Mary Hathaway
1583
Nasce a primeira filha do casal, Susanna
1585
Nascem os gêmeos Hamnet e Judith, filhos de Shakespeare
1585-1589
Em data indeterminada, Shakespeare muda-se para Londres, sem a família
1587
Mary Stuart é executada por sua meia-irmã, a rainha Elizabeth I
1588
Vitória naval inglesa contra a poderosa Armada espanhola
1592
Fechamento dos teatros por causa de motins populares em Londres. Panfleto póstumo de Robert Greene faz alusões maldosas a Shakespeare
1593
Novo fechamento dos teatros, desta vez por causa da peste
1594
Reabertos os teatros. Shakespeare torna-se membro participante dos Lord Chamberlain’s Men
1596
Morte de Hamnet Shakespeare
1597
Shakespeare compra uma casa em Stratford – o New Place
1599
Construção do teatro Globe. Expedição militar do conde de Essex para debelar revoltas na Irlanda
1599-1601
A Poetomaquia ou Guerra dos Poetas coloca em disputa os dramaturgos Shakespeare, Ben Jonson, John Marston e Thomas Dekker
1601
Morre John Shakespeare, pai do poeta. O conde de Essex é executado por tentar depor a rainha. O conde de Southampton, patrono de Shakespeare, é preso por participar dessa conspiração
1603
Morre Elizabeth I, última rainha da dinastia Tudor. James I, o novo rei, torna-se patrono da companhia de Shakespeare, que passa a se chamar King’s Men
1604
Os King’s Men apresentam-se para o chefe do Exército de Castela, que veio a Londres assinar o acordo de paz entre Espanha e Inglaterra
1607
Casamento de Susanna Shakespeare com o médico John Hall
1608
Morre Mary Arden, mãe de Shakespeare
1613
Incêndio do Globe. Shakespeare deve ter voltado a Stratford pouco depois
1616
Shakespeare morre em Stratford, em 23 de abril. Judith Shakespeare casa-se com o comerciante Thomas Quiney
1623
Publicação do Primeiro Fólio, com 36 peças de Shakespeare
História no palco
Reis, rainhas, guerras econspirações de verdade na Inglaterra inspiraram Shakespeare
Quando Shakespeare nasceu, Elizabeth I ocupava o trono da Inglaterra havia seis anos. Seu reinado foi marcado, a princípio, por uma relativa paz entre protestantes e católicos e pela expansão do poderio naval inglês. A despeito da guerra com a Espanha, da peste e da inflação, Elisabeth conseguiu insuflar o ufanismo entre seus súditos. Como na história da Inglaterra contada nas Crônicas da Inglaterra, Escócia e Irlanda, por Raphael Holinshed. Ela forneceu o material de que Shakespeare precisava para duas obras de sucesso na época: as três partes de Henrique VI, seguidas de Ricardo III. O tema central é a Guerra das Rosas, que no século 15 opôs dois grupos de nobres – York e Lancaster – na disputa pela sucessão do trono inglês. O corcunda Ricardo III foi o primeiro grande vilão shakespeariano. A peça termina com sua derrota na batalha de Bosworth, em 1485, e o vitorioso conde de Richmond, dos Lancaster, torna-se o rei Henrique VII. Henrique V trata de eventos mais antigos, a vitória dos ingleses sobre os franceses em Agincourt (1415), durante a Guerra dos Cem Anos. A peça segue os eventos históricos de maneira livre, condensando ou alterando os fatos para fins dramáticos. Shakespeare é um crítico do poder – mesmo Henrique V, seu monarca ideal, mostra uma frieza assustadora. Sua visão da história era sempre a inglesa: assim, Joan La Pucelle – mais conhecida como Joana D’Arc, a grande heroína francesa – aparece como uma feiticeira tresloucada em Henrique VI. Apesar de sua insuspeita fidelidade à coroa, Shakespeare esteve perto de ser vinculado a uma conspiração para destronar Elizabeth. O líder desse golpe frustrado foi o conde de Essex, amigo próximo do conde de Southampton, patrono de Shakespeare. Em 1599, Essex fracassou em uma campanha para debelar uma revolta na Irlanda. Ao voltar para Londres, foi encarcerado. Sua tentativa de levantar uma rebelião contra a rainha parece ter sido um ato de desespero político. Em 7 de fevereiro de 1601, apenas um dia antes da programada revolta, a companhia teatral de Shakespeare encenou Ricardo III a pedido dos conspiradores. A peça trata da deposição de um monarca hesitante e – como Elizabeth – sem descendentes. A trupe de Shakespeare foi inocentada e consta que se apresentou na corte um dia antes de Essex ser decapitado. Southampton foi encarcerado na Torre de Londres, de onde só saiu quando Jaime I subiu ao trono, em 1603. Permitiram que ele levasse um gato para lhe fazer companhia na prisão. Privilégios da nobreza.
Onde tudo aconteceu
A casa de Romeu,Julieta, Hamlet, Macbeth...
Os teatros da época de Shakespeare tinham uma configuração bem diferente das salas modernas. Eram prédios enormes, com um pátio no centro, no qual ficava o palco, sob uma cobertura. Calcula-se que o Globe, o teatro mais famoso ocupado pela companhia de Shakespeare, podia abrigar até 3 mil espectadores
1. AS GALERIAS
O público mais abonado – a pequena nobreza, comerciantes, advogados etc. – ocupava as galerias, que davam a volta completa no pátio
2. CELEBRIDADES
Só os homens atuavam. Papéis femininos eram feitos por meninos adolescentes. Havia espetáculos todos os dias, menos domingos e feriados religiosos. Para montar uma peça diferente a cada dia, um ator como Richard Burbage – astro da companhia de Shakespeare – decorava até 4 800 falas por semana
3. GERAL
Os espectadores mais pobres pagavam 1 centavo para assistir às peças de pé. Consumiam muita cerveja. Detalhe: não havia banheiros, apenas baldes, espalhados em pontos estratégicos
4. O PALCO
Os atores tinham acesso ao palco por duas entradas laterais. Bem ao fundo, cortinas pintadas faziam o ambiente do cenário. Um alçapão garantia certos recursos cênicos – serviria, por exemplo, de cova para o enterro de Ofélia em Hamlet. Acima do palco, uma cobertura protegia os atores do sol e da chuva. Também abrigava compartimentos usados para “efeitos especiais”, como o som de trovão produzido por bolas de canhão rolando em tinas de metal
5. OS VIPS
Os lugares atrás do palco eram divididos em cinco baias. Dali, os lordes assistiam às peças. Às vezes, o espaço também era usado nos espetáculos, se a trama exigisse. Foi o caso da cena em que Romeu corteja Julieta em seu balcão
6. BASTIDORES
Na parte de trás do palco, ficava a área em que os atores se trocavam. O mesmo figurino precisava ser adaptado à cada peça e o próprio Shakespeare ajudava com as agulhas. A roupas não davam muita atenção para a fidelidade histórica: o público gostava de ver trajes coloridos e ostentosos. Os músicos ficavam atrás do palco ou em uma área lateral
Revista Aventuras na Historia
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