Muralhas que dividiram os homens
Muitas foram destruídas pela ação do tempo ou do próprio ser humano por não mais cumprirem seu papel original
Christophe Courau
Para se protegerem ou separarem, os homens constroem muros desde a Antigüidade. O exemplo mais ancestral é o da Grande Muralha da China, com seus 3.460 quilômetros de extensão, mais outros 2.860 quilômetros de ramificações. Formidável obra de defesa militar, em alguns pontos com 16,5 metros de altura (o que equivale aproximadamente a um prédio de seis andares) e torres invariavelmente erguidas a cada 60 metros, ela serviu de fronteira durante mil anos. Seus primeiros sinais remontam ao século VII antes de nossa era.
Segundo Pierre Colombel, pesquisador do Centro Nacional de Pesquisa Científica na França, "as primeiras muralhas foram construídas não para brecar os bárbaros do Norte, mas para proteger cada Estado de seus próprios vizinhos. As mais antigas foram edificadas entre 685 e 645 a.C., pelo Estado de Qin, em luta contra seu vizinho, o Estado de Chu, que construíra fortificações em 656 a.C. para preservar seu território das agressões de Qin". Em seguida, no período denominado "os Reinos Combatentes" (480-221 a.C.), guerras incessantes opuseram os sete reinos mais poderosos que disputavam, então, a supremacia do centro da China. Cada um, na tentativa de evitar ataques de quem vivia nas proximidades, começou a erguer fortes barreiras, a princípio de terra, conforme relata Colombel: "Assim, em meados do séc. IV a.C., o Estado de Wei construiu uma muralha de cerca de 1.000 quilômetros para se defender dos ataques de Qin e também daqueles dos cavaleiros bárbaros procedentes do Norte. Em 300 a.C., o Estado de Zhao se viu obrigado a erguer uma muralha de mais de 1.500 quilômetros de extensão, ao longo de sua fronteira norte - do noroeste de Pequim até a Mongólia - para impedir as incursões de hordas de mongóis. O rei Zhzoxiang de Qin mandou construir, em 272 a.C., várias muralhas, ao longo de 2.000 quilômetros para conter os bárbaros Hu, do leste. Ao mesmo tempo, o Estado de Yan ergueu, por volta de 250 a.C., uma muralha de mais de 1.200 quilômetros, chegando até o mar, perto de Pyongyang, na atual Coréia do Norte".
Em 246 a.C., Zheng subiu ao trono do reino de Qin. Em alguns anos, ele formou um poderoso exército e o lançou contra os seis reinos concorrentes, destruindo um a um. Em 221 a.C. foi feita a unificação em torno de Qin (do qual deriva o nome China). Zheng, com 38 anos de idade, proclamou-se imperador. Desde 220 a.C., ele decidiu construir o que na atualidade chamamos de Grande Muralha, ligando antigos trechos. Em dez anos, a obra de mais de 6.000 quilômetros estava terminada. O imenso canteiro de obras mobilizou centenas de milhares de operários em regime de trabalho forçado.
"No meio do deserto escaldante de pedras e de areia, homens rudemente tratados morriam de sofrimento e de cansaço, e muitos corpos eram abandonados sobre a muralha ou a seus pés. Numerosos textos narram o terror daqueles que partiam para tão longe e o desespero de suas famílias, que sabiam que jamais os veriam novamente", acrescenta Colombel. Se no início a Grande Muralha era uma enorme barreira contra os repetidos ataques dos cavaleiros das estepes, ela se tornou "o símbolo da ordem chinesa, um fator de unidade do país. Todo homem que vivia no interior da Grande Muralha era considerado \\'humano\\', pois além de seus limites estava o mundo dos bárbaros. Esse tipo de mentalidade explica por que um dos castigos mais temidos pelos chineses era o banimento".
Durante séculos, diferentes imperadores ampliaram seu território, empurrando sempre para mais adiante suas fronteiras e as muralhas que as protegiam. Assim, em 130 a.C., a nova dinastia Han recuperou a Grande Muralha dos Qin na Mongólia, depois a prolongou até a fronteira do Deserto de Gobi. Em 102 a.C., foi a vez de o sul da Manchúria e uma parte da atual Coréia do Norte se verem protegidos. Em seguida, foi levantada uma dupla muralha contra os mongóis. A leste, em princípios do século I de nossa era, os Han reergueram mais uma vez a Grande Muralha. Uma nova barreira de 1.000 quilômetros surgiu, na atual Mongólia Interior, para resistir à pressão dos nômades do norte. Finalmente, em 446, 100 mil homens ergueram outra, de 500 quilômetros, na região de Datong até o norte de Pequim. "De 534 a 618, data da fundação da dinastia Tang, várias muralhas foram ainda construídas, ou reforçadas pelos reinos do norte, fosse para se proteger dos bárbaros, fosse para defender suas fronteiras, uns contra os outros.
O imperador Wen, da dinastia Sui, que reunificou a China, também se viu obrigado a aumentar e construir vários trechos, enviando 110 mil homens às fronteiras do norte", continua o historiador.
Com a dinastia Tang (618-907), a China, potência econômica e militar incomparável, não tinha mais necessidade de se proteger por trás dessas obsoletas muralhas, pois suas fronteiras já as ultrapassavam em muito. Elas permaneceram, contudo, sem serventia para impedir os Yan, mongóis descendentes das hordas de Gengis Khan, de tomar o poder na China (1276-1368). Eles foram expulsos do trono, em 1368, pela dinastia Ming. E foi nesse período que a Grande Muralha retomou sua função de fronteira. Foi palco, em seguida, de um poderoso movimento militar, quando um exército de 1 milhão de soldados acampou ao longo de seu traçado até destruir os Ming, em 1644. Sob a última dinastia, os Qing, de origem manchu, a Grande Muralha perdeu sua utilidade. Não evitou as invasões "bárbaras", vindas do leste ou do norte. Mas seu significado, ao criar um universo chinês civilizado, perdurou por longos séculos.
Os romanos também construíram uma fronteira estanque. O imperador Adriano visitou a Bretanha durante o verão de 122 de nossa era. Uma revolta havia eclodido no norte, após sua ascensão ao trono e, para reprimi-la, o exército romano sofreu pesadas perdas. Adriano decidiu, então, adotar uma solução radical: construir uma muralha para separar "os romanos dos bárbaros", o que de fato ocorreu, seccionando o norte da Inglaterra da Escócia.
A muralha de Adriano tinha altura inicial de 3 a 5 metros. Para protegê-la, 14 fortes foram posicionados em toda sua extensão, além de 80 torres militares. Ao longo de uma linha de colinas e penhascos ligando o mar do Norte ao mar da Irlanda, de Newcastle a Carlisle, a muralha de Adriano, guardada por 9 mil homens, provou sua eficácia durante mais de três séculos. Assim foram repelidos os ataques dos "bárbaros" escoceses em 180, 196 e 197. Mas, no início do século V, o Império Romano em declínio negligenciou essa fronteira longínqua. Relegada ao abandono, a obra virou um gigantesco depósito onde as pessoas iam recolher pedras para a construir suas casas ou igrejas.
Concreto em vez de corpos
A noção de muralha-fronteiriça reapareceu bem mais tarde, já em pleno século XX. A primeira delas foi obra de um ministro da Guerra francês, André Maginot. "Qualquer que seja a concepção que se possa ter de uma guerra futura, a necessidade que se revela imperiosa é impedir a invasão do território.
Nós sabemos que desastres isso pode gerar e de tamanha envergadura que a própria vitória não chega a compensar, em seguida, os irreparáveis danos", ele declarou, tão logo assumiu o posto no interregno entre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial. "As organizações defensivas das fronteiras, cuja execução pretendemos, não têm outro objetivo senão barrar a rota de invasão sempre possível. O concreto tem mais serventia, nesse sentido, e custa mais barato do que a muralha de corpos humanos", garantiu o antigo herói, combatente entre 1914 e 1918. Em 14 de janeiro de 1930, Maginot determinou que fosse votada uma lei com vistas à construção da linha fortificada que seria batizada com seu nome.
Originalmente, os trabalhos deveriam estar concluídos em três anos. Na realidade, duraram dez.
Essa impressionante linha de defesa não impediu, porém, o avanço dos tanques blindados do general Guderian. Eles a contornaram e atravessaram a região das Ardenas, na Bélgica, em 1940, causando a derrota mais acachapante que a França conheceu. A lição não serviu de exemplo para os alemães. Eles teriam, em pouco tempo, de desguarnecer a frente ocidental, em razão da resistência da União Soviética a leste.
A entrada dos Estados Unidos na guerra, em dezembro de 1941, fez com que os alemães temessem um desembarque a partir da Inglaterra, a médio prazo. Em dezembro de 1941, Hitler decidiu, portanto, reforçar suas defesas no litoral, ordenando a construção da muralha do Atlântico. O trabalho colossal, efetuado pela organização Todt, começou em 1942. Eram nada menos de 15 mil obras ao longo do mar do Norte, do Canal da Mancha e do Atlântico. Foram mobilizados 450 mil operários, entre voluntários e recrutados. As estruturas consumiram 11 milhões de toneladas de concreto e 1 milhão de toneladas de aço.
Por trás dessa "muralha", mais de 700 mil soldados alemães esperavam pelos Aliados. A obra não foi completamente acabada em 1944, apesar dos esforços do marechal Rommel, que no final de 1943 tornou-se responsável por todo o setor que ia dos Países Baixos à região do Loire, na França. Esse imenso reforço do litoral francês não impediu os Aliados de desembarcarem na Normandia, em 6 de junho de 1944.
A guerra terminara. Com a Alemanha vencida e dividida em República Federal e República Democrática, cidadãos de ambos os lados veriam a edificação de um muro, em Berlim, nos anos 60. Após o bloqueio dos setores ocidentais da cidade pelos soviéticos, em 1948, as três áreas controladas pela França, pelo Reino Unido e pelos Estados Unidos foram de fato incorporadas à Alemanha Ocidental. Em um primeiro momento, os berlinenses foram autorizados a se deslocar livremente de um lado para outro, mas, em 1952, em plena Guerra Fria, as fronteiras entre as duas Alemanhas foram fechadas.
Não obstante, 2,5 milhões de alemães orientais passaram para o lado ocidental, entre 1949 e 1961.
Uma afronta para o bloco comunista. No dia 13 de agosto de 1961, teve início a construção de um muro isolando os três setores do lado ocidental. Durante esses trabalhos, soldados foram alinhados e tinham ordem de atirar em todos os que tentassem atravessar.
A princípio tratava-se de uma cortina de arame farpado, rapidamente substituída por placas de concreto.
O muro separava fisicamente a cidade e contornava completamente a parte oeste de Berlim. Para a Alemanha Oriental, era uma proteção "antifascista", com o objetivo de evitar uma invasão por parte dos países ocidentais. Do lado oeste, respondia-se que o muro havia sido criado para impedir os cidadãos da Alemanha do leste de entrar em Berlim oeste, e portanto na Alemanha Ocidental.
O muro se estendia por aproximadamente 150 quilômetros. Ele foi sendo regularmente melhorado. Em junho de 1962 começaram as obras de uma segunda linha, paralela à primeira. Uma quarta geração do muro teve início em 1975, com 3,6 metros de altura e custo estimado em 16 milhões de marcos alemães orientais. O conjunto da fronteira foi igualmente protegido por cercas de ferro, alarmes, barreiras antiveículos, arame farpado, bem como por mais de 300 postos de vigilância e observação e 30 bunkers, mantidos pelos Vopo, os policiais do leste alemão. Apesar de tudo, cerca de 5 mil pessoas conseguiram passar para Berlim Ocidental.
Em 1989, em plena glasnost de Gorbatchev, a Hungria decidiu abrir sua fronteira com a Áustria. Aproveitando essa primeira brecha na chamada Cortina de Ferro, muitos estrangeiros da Alemanha Oriental fugiram, buscando refúgio em embaixadas. Em seis meses, 220 mil alemães orientais passaram para o lado ocidental. Em 7 de outubro, por ocasião das comemorações do 40o aniversário da Alemanha do leste, a festa virou contestação. Em seguida ocorreu a queda do Muro de Berlim e, em 1990, a reunificação das Alemanhas.
Entrincheirar-se tem sido uma constante na humanidade. Mas a longo prazo essas muralhas não resistiram à pressão dos homens, das idéias e das armas. É e sempre será possível contornar um muro, por mais alto e perfeito que seja. Uma esperança para os cipriotas, turcos e gregos, divididos desde 1963, assim como para os irlandeses do Norte, católicos e protestantes, desde o fim dos anos 60, ou ainda para os coreanos do Norte e do Sul, eles também separados por um muro de arame farpado desde o armistício de 1953.
Cronologia
685 a.C.
Início da construção da
Grande Muralha da China
122 d.C.
Muralha de Adriano na Inglaterra
1940-1944
Linha Maginot e muralha do Atlântico
1961
Berlim dividida em dois setores,
Leste e Oeste
2004
"Barreira de segurança" entre a
Cisjordânia e Israel
Christophe Courau é historiador e jornalista.
Revista Historia Viva
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