sábado, 25 de julho de 2009

Irmãos na vida e na morte


Irmãos na vida e na morte
Fundadas na fé religiosa e provendo apoio espiritual e material a seus associados, as irmandades foram a mais viva expressão social das Minas Gerais do século XVIII
Caio Boschi

A visão das incontáveis igrejas que hoje adornam e embelezam a paisagem de Minas Gerais leva em geral à suposição de que no passado a presença da Igreja Católica tenha se feito sentir, ali, de maneira inequívoca. Mas não foi bem assim. Na verdade, a religiosidade em Minas Gerais no tempo da Colônia precedeu as intervenções do Estado e da Igreja, do ponto de vista institucional. Era uma religiosidade fundada e desenvolvida a partir da vontade de leigos e de instituições laicas.

Na primeira década do século XVIII, a Metrópole promulgou legislação cerceando a circulação de eclesiásticos na área mineratória e terminou por proibir o estabelecimento e a fixação de ordens religiosas na região. Ao contrário do que aconteceu no litoral da Colônia e em outras partes das vastas conquistas ultramarinas portuguesas, em Minas não se construíram mosteiros e conventos durante todo o século XVIII. Mesmo após ter sido criado, em 1745, o primeiro bispado, na então capitania de Minas Gerais, a presença e a ação da Igreja Católica manteve papel secundário e suplementar em relação às iniciativas dos devotos leigos.

Nesse catolicismo peculiar, a religião era praticada sem que necessariamente estivessem integradas ou vinculadas às estruturas institucionais da Igreja. Assim, a carência religiosa e o contato com o sobrenatural se realizavam, fundamentalmente, através da devoção, da invocação e da conversa direta entre os devotos e uma rica proliferação de oragos: Rosário, Conceição, Carmo, Mercês, Francisco, Gonçalo, José, Benedito, Elesbão etc. Era a intimidade com os santos protetores que guiava a religiosidade dos irmãos.


Como explicar tal fenômeno? No cenário inicial de insegurança e de instabilidade do rush mineratório, os homens se agregavam e se congregavam em torno de suas afinidades votivas, consagrando-se ao culto dos santos padroeiros por eles mesmos livremente escolhidos. Aí estava o embrião dessas associações leigas, denominadas genericamente irmandades, que, na interpretação de Fritz Teixeira de Salles, se tornaram, desde sempre, a mais viva expressão social de Minas Gerais, e cujo conhecimento é requisito básico para a compreensão da história e da cultura locais.

Quando, em 1711, foram criadas as primeiras vilas na área, isto é, quase vinte anos após se verificarem achamentos de ouro em quantidade significativa naquelas paragens, o número das referidas agremiações já superava a primeira dezena. Naqueles tempos, a religiosidade se foi exprimindo através da construção e no interior de toscas e precárias capelas. Nos adros, o comércio ganhava viço e vigor. Concomitantemente, as sociabilidades se exercitavam, quando não se confundiam com a religiosidade. Ou seja, a partir dos espaços de práticas religiosas, o convívio social foi se forjando, os núcleos urbanos se erigindo e o comércio se configurando. Não por acaso, muitas das benfeitorias e das obras públicas são devidas a iniciativas e se executaram a expensas das confrarias.

Como entidades corporativas, as irmandades coloniais mineiras não eram uma novidade. No entanto, cumpre assinalar diferenças entre elas e suas homólogas, sejam as que se localizavam no litoral ou em outras áreas da América portuguesa, sejam as suas congêneres metropolitanas. Por exemplo, o não atrelamento ou subordinação a congregações religiosas permitiu a esses homens a livre opção pelos oragos, isto é, pelos santos invocados como e para patronos das suas irmandades. Assim é que Nossa Senhora do Rosário, de longe a santidade mais evocada na Minas setecentista, não deveu sua escolha a qualquer tipo de indução perpetrada por jesuítas e frades dominicanos, religiosos a que, não só em Portugal, esse culto se relacionava. Não havendo obstáculos à sua constituição, as irmandades foram se multiplicando ao longo do século, de modo que, ao término do período colonial, o total dessas agremiações em Minas Gerais ultrapassava três centenas.


A todos era facultada a oportunidade de organizar ou de aderir a uma ou mais irmandade. Isso não deve ser interpretado como sinônimo de igualdade social, no sentido próprio do termo. Na sociedade escravista colonial, apregoar a igualdade diante de Deus não anulava a desigualdade existente entre os homens no corpo social. Incorporarem-se em torno de um orago e implementarem seu convívio social ao abrigo de uma confraria não gerava, necessariamente, a solidificação de laços culturais ou de outra natureza, fossem elas associações formadas por escravos, por negros forros ou por brancos. Com efeito, proporcionar aos negros e aos mulatos a sua agregação em torno de irmandades era decisão consciente do branco colonizador, mascarando, assim, ilusória igualdade entre os homens.

Com o passar do tempo, a natureza e a composição dos quadros associativos foi sendo alterada. Com o processo de estratificação social que se foi desenvolvendo na região, emergiram associações com diferentes características, como as ordens terceiras. Na maior parte dos casos, o advento desses sodalícios atendia e respondia aos anseios de obtenção ou de aumento de prestígio social de uma população, acentuadamente citadina, por representantes das diversificadas e vigorosas atividades econômicas características da realidade e do espaço geográfico em Minas Gerais. Ressalte-se que a região também se distinguiu por delinear um processo urbanizatório sui generis, no qual nem tudo que o reluzia vinha do ouro.

Assim, para certos comerciantes e profissionais liberais não bastava associarem-se à Ordem Terceira de São Francisco, sem embargo de já integrarem os quadros de uma ou mais irmandade. O intuito era o de estarem também presentes na Ordem Terceira de Nossa Senhora do Carmo. No outro extremo da sociedade, para certos negros já não lhes satisfazia a adesão e a participação nas irmandades do Rosário. Na metade do século, irmandades sob a proteção de Nossa Senhora das Mercês eram espaços alternativos ou complementares para congregarem os negros, inclusive para lhes propiciar, sobretudo, mais saliente e visível presença nos espaços de sociabilidade locais. Uma razão especial explica, em parte, essa circularidade. É que, no século XVIII, as irmandades dos homens pretos adquiriram o direito de resgatar, mediante justa avaliação, escravos que os senhores se dispusessem a vender. Condição que, na Colônia, começou por ser exercida pelas associações sob a invocação de Nossa Senhora do Rosário e que se consagrou na das Mercês, orago por excelência da redenção dos cativos.


Seja como for, para as populações escravas, as irmandades eram o único espaço de sociabilidade consentido e emulado pelas autoridades. Ao invés de ameaça à ordem social, eram entendidas pelo Estado absolutista português como instrumentos de controle da sociedade. Controle, mas sem inibir a manifestação de sentimentos. Ao contrário, sendo as mais numerosas, as irmandades de negros impunham-se como veículos de expressão da cultura e da religiosidade negra africana, sobretudo no que diz respeito a festas e celebrações de rituais religiosos.

Como bem interpretou Roger Bastide, no Brasil o catolicismo – religião do colonizador – se sobrepôs, mas não substituiu as religiões dos africanos. Sob o seu manto protetor e aliadas a elementos cristãos, cultivaram-se e preservaram-se tradições religiosas africanas. Ritos e práticas religiosas de origem africana juntaram-se e se fundiram com tradições e práticas religiosas do colonizador branco. Diante do avassalador domínio do branco, para o negro importava não perder os fortes matizes originais de sua cultura religiosa e, por extensão, sua identidade. Preservaram esses traços o quanto lhes foi permitido fazer, amoldando-os e amalgamando-os com os da religião do colonizador.

Na Minas Gerais setecentista, o espírito lúdico era uma constante e as irmandades sua principal promotora. Considerem-se as festas naquele contexto. As copiosas e faustosas procissões. Relembre-se que foi ali que teve lugar aquela que é tida como a mais exuberante e suntuosa das solenidades públicas da América portuguesa: o tríduo promovido em 1733, a pretexto da trasladação do Santíssimo Sacramento da igreja de Nossa Senhora do Rosário para a inauguração da nova matriz de Nossa Senhora do Pilar, em Vila Rica. Festa sacra e profana, como costuma acontecer em uma sociedade praticante de religiosidade sob o signo do exibicionismo exteriorista, consignado nas orientações do concílio tridentino (1545-1563). Festa que, nas palavras do cronista que a celebrou, Simão Ferreira Machado, fazia da “nobilíssima Vila Rica mais que esfera da opulência, teatro da religião”, como se lê no Triunfo Eucarístico. Esse ludismo cumpria importante função política, ao descomprimir as agudas tensões sociais existentes em plagas mineiras. Por outro lado, é compreensível que aflorassem litígios entre tais agremiações. Litígios que, na aparência, se circunscreviam a questões menores, como desavenças pela precedência nas procissões, mormente na de Corpus Christi.


Quanto aos soberanos portugueses, ao estimularem a criação das irmandades, eximiam-se de subsidiar a construção, a ornamentação e a manutenção das igrejas, não obstante o seu dever de fazê-lo na qualidade de grão-mestres da Ordem de Cristo. Com essa postura, a Coroa ampliava a sua vigilância sobre a sociedade colonial. No âmbito das irmandades, essa estratégia se efetivava na obrigatoriedade de elas se constituírem formalmente através da elaboração de compromissos, documento que prescrevia os direitos e deveres dos associados e as responsabilidades da agremiação. Esses livros, que nas ordens terceiras se denominavam estatutos, deviam ser submetidos às autoridades civis ou eclesiásticas, sendo a aprovação ou confirmação de seus capítulos a chancela e o reconhecimento oficial da entidade. Vários outros expedientes e exigências testemunham a permanente ingerência das autoridades na gestão das irmandades. Cuidados que, possivelmente, se justificavam, pois não é despropositado inferir que, no interior dessas agremiações, as discussões de natureza política fossem uma realidade.

Como se depreende, pertencer a uma ou mais irmandade era necessidade tanto de vida como de morte. Sem aderir-se a elas, poder-se-ia dizer que as pessoas se viam desamparadas. Não apenas diante dos percalços e das agruras da vida, como também quanto a um sepultamento condigno e a celebração de missas pela salvação das suas almas. Recorra-se à peça teatral As confrarias, de Jorge Andrade, onde o texto ficcional bem reproduz e traduz as aflições de uma mãe que, infrutiferamente, peregrina pelas ruas de Vila Rica, recorrendo a variadas irmandades, a fim de obter sepultura para o filho morto que levava consigo. A não esquecer a inoperância, quando não a inexistência, de santas casas de misericórdias na capitania do ouro, instituições que tanto brilho e relevância social tiveram em todas as terras onde os portugueses se fizeram presentes.

De todas as maneiras, como se não bastassem essas anotações que tentam evidenciar a relevância histórica dos grêmios laicos mineiros coloniais, caberia, ainda, e para finalizar, recordar que, ao serem agentes, atores e promotores da religião católica, foram também os principais mantenedores da vida cultural na Minas Gerais do século XVIII. Se hoje as expressões da arquitetura religiosa, das artes plásticas e da música barrocas e rococós constituem patrimônio que cumpre admirar e preservar, se neste universo exaltamos o mulatismo como aspecto singular, cabe lembrar que, igualmente, foram as irmandades coloniais mineiras as responsáveis pelo custeio e pela manutenção daquela intensa e prolífica produção cultural que é orgulho de uns e encantamento de todos.

CAIO BOSCHI é professor da PUC-Minas e leitor de História do Brasil em universidades de Portugal, autor de Os leigos e o poder: irmandades leigas e política colonizadora em Minas Gerais. São Paulo: Ática, 1986.

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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