"O índio tem uma acentuada disposição para o humor, para a zombaria. Não é só o branco que passa algum tempo entre eles que recebe, já nos primeiros dias, um apelido. Cada índio também tem o seu, de acordo com suas particularidades físicas que se destacam ou hábitos estranhos."
Crianças Macuxi. Foto de 1911 tirada pelo filólogo e etnógrafo Theodor Koch – Grünberg (1872 – 1924) em suas viagens pelo norte brasileiro e Venezuela e publicada no primeiro volume de Do Roraima ao Orinoco (editora Unesp)
Logo após o meio dia, homens e mulheres voltam da roça, cujo trabalho dividem. O homem desmata e planta; a mulher arranca as ervas daninhas e colhe. Das diferentes cabanas ouvem-se os cantos melódicos com que as mulheres Makuschí e Wapischána acompanham o ralar compassado da mandioca. Aos poucos, minhas cabana volta a ficar mais animada. Criancinhas e vovós Vêm e ficam sentadas, contentes.
Alguns homens também comparecem e, com um sorriso amável, recebem o cigarro habitual. O pequeno chefe dos Taulipáng, meu amigo especial, apresentame alguns de seus patrícios, que acabaram de chegar das montanhas ao norte para admirar o forasteiro branco. Todos, sem exceção, são figuras vigorosas. Cada um deles poderia servir de modelo a um escultor. Um está usando, como adorno labial, uma concha polida em forma de sino com um pendente comprido de miçangas e fios de algodão. Em alguns rapazes, o cinto de cordões é tecido com cabelo humano, ao passo que, nos homens adultos, ele geralmente consiste em feixes mais ou menos grossos de fios de algodão; nos rapazes, normalmente é composto apenas de um cordão de algodão.
Especialmente nos primeiros dias chegam muitos visitantes curiosos de fora, vários deles de muito longe, grupos de cinqüenta ou mais pessoas adornadas para festa, em longa fila, guiadas por seu chefe ou ancião. A notícia da presença do branco diferente espalhou-se depressa. Reina harmonia e honestidade entre esses Taulipáng, que só raramente têm contato com os brancos. Apesar de toda a amabilidade e de toda a curiosidade, eles se comportam de maneira educada e palavreado oficial com os homens mais velhos. É uma conversa aborrecida para o ouvinte que não entende seu conteúdo. As frases seguemse umas às outras de maneira indiferente e monótona. Nunca um corta a palavra do outro. Nunca os dois gritam ao mesmo tempo. Primeiro, um conta sua longa história até o fim. O outro somente entremeia exclamações educadas, “e he´...é nau...hena...”, até que chegue sua vez de falar. Então a conversa fica mais animada, expressiva, mímica. Pitá conta a meu respeito, fala de minha viagem, minhas particularidades. Divertem-se sem malícia à minha custa, pois todos olham para mim e riem de maneira contida.
APELIDOS, NOMES E ZOMBARIAS
O índio tem uma acentuada disposição para o humor, para a zombaria. Não é só o branco que passa algum tempo entre eles que recebe, já nos primeiros dias, um apelido; cada índio também tem o seu, de acordo com suas particularidades físicas que se destacam ou hábitos estranhos. São esses apelidos que se ouvem, na maioria das vezes, para designar as pessoas, ao passo que o verdadeiro nome, dado a cada criança pelo pai ou pelo avô poucos dias após o nascimento, só é empregado raras vezes e mencionado ao europeu somente com muita resistência. Assim, alguém, por sua pequena estatura e natureza veloz, recebe o nome do pequeno e ligeiro roedor Akúli. Um outro é chamado de “Malcriado” porque chorava muito quando pequeno, especialmente à noite. Um homem mais velho tem o estranho nome de “Sem nome”. Uma mulher se chama “As meninas”.
Tenho de mostrar todas as minhas maravilhas a cada novo visitante. Pitá fica olhando, horas a fio, com alguns Taulipáng mais velhos, os “tipos indígenas” do Uaupés e faz suas piadinhas atrevidas a respeito, especialmente sobre as fotos das mulheres. Os senhores idosos, entre os índios, não são diferentes dos nossos.
Por volta das 5 horas vou para o banho vespertino. Todos estão sentados à sombra em frente das casas, tagarelando, trabalhando ou brincando com os inúmeros animais domésticos. A vovó está catando algodão com o dedão e o indicador; as mulheres põem seus fusos para trabalhar. Caçadores e pescadores atravessam, orgulhosos, a praça da aldeia com sua presa, seguidos pelos cães magros. Quando volto do banho, meus amigos, os Taulipáng, já acenam de longe para mim e me chamam para o lanche da tarde. Sua cabana comprida e baixa fica à saída norte da aldeia, no caminho para sua terra. Bem junto dela ergue-se uma rocha grande e redonda, sobre a qual sempre há, de dia, um bando de crianças brincando, também alguns moços agachados entalhando flechas ou fazendo outros trabalhos. Lá sou sempre um convidado bem vindo. Seu prato apimentado é preparado de um modo especialmente saboroso e temperado com ingredientes picantes. As mulheres assam para mim beiju leve e crocante do mais fino amido. Nunca falta caxiri, o payuá escuro e forte ou o parákali vermelho e leve. Eles conhecem nove tipos desse refresco. Como é costume aqui, troquei de nome com seu pequeno chefe, que fuma tanto do meu tabaco. Agora ele se chama “Teodoro”, eu sou chamado de “Yuali”. Aonde quer que eu vá as pessoas me chamam por meu novo nome e sentem um prazer infantil com isso. Ele não se cansa de me dizer todas as palavras e frases possíveis em Taulipáng, ou melhor, de gritá-las no meu ouvido, e não sossega enquanto não as repito corretamente. É motivo de grande satisfação para todos quando escrevo a matéria no meu caderno de notas e a emprego corretamente uma ocasião apropriada. Às vezes, ele me diz coisas picantes, e quando eu as repito fielmente, há uma sonora gargalhada de jovens e velhos, de cavalheiros e damas.
EXPLORADOR DE UM BRASIL DESCONHECIDO
H.Schmidt (à esquerda) Theodor Koch-Grünberg (sentado) e Romeu
O alemão Theodor Koch-Grünber (1872-1924) começou suas jornadas de forma imaginária. Quando jovem, enquanto lia o periódico de viagens Globus, que seu pai, um pastor luterano assinava. Essa literatura o preparou para fazer parte da expedição de Hermann Meyer para o rio Xingu, entre 1898 e 1900. Assim, o recém-formado filólogo mostrou-se um promissor e apaixonado etnólogo.
Koch-Grünber voltaria ao Brasil em 1903, mais especificamente ao Amazonas e Rio Negro, onde descreveu danças e ritos fúnebres e registrou mais de 40 dialetos indígenas.
Em 1911 retorna a amazônia, dessa vez com uma máquina fotográfica e um fonógrafo, com a missão de viajar pelo norte do Brasil, em Roraima até a Venezuela. O relato do difícil trajeto rendeu-lhe Do Roraima ao Orinoco, um livro em 5 volumes com descrições sutis e detalhadas da vida e costumes das tribos regionais e suas dificuldades na lida com a chamada “civilização Brasileira”
Pela quarta vez, em 1924, Koch-Grünber voltou para o Brasil em missão de subir o rio Uraricoera até Serra Parrima. Porém, ao chegar ao povoado de Vista Alegre, no Rio Branco, o alemão sofre uma ataque súbito de malária que tirou-lhe a vida em 8 de outubro.
Revista Leituras da Historia
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