quarta-feira, 29 de julho de 2009

Mensagens do abandono


Mensagens do abandono
Bilhetinhos presos às roupas de bebês do século XVIII ajudam a esclarecer um antigo drama da infância brasileira: o das mães que abandonam os próprios filhos
Renato Pinto Venâncio

Em termos mundiais, o tema da infância conquistou adeptos entre historiadores profissionais desde a década de 1960. Um pioneiro nessa pesquisa foi Philippe Ariès, que traçou um quadro fascinante a respeito da condição da criança no Antigo Regime, sugerindo que o sentimento e valores de nossa época não se aplicam ao passado. No Brasil, investigações semelhantes a essa começaram a ser registradas nos anos 1980, embora haja casos isolados, como o de Gilberto Freyre, que no clássico Casa-grande & senzala (1936) traça um interessante painel da meninice senhorial e escrava, recorrendo a fontes documentais inéditas.

Um dos feitos dessa história social da infância foi o de descobrir que o abandono de crianças, sobretudo de recém-nascidos, tem raízes antigas. Na Europa, tal prática foi abundantemente registrada na literatura clássica. No final da Idade Média, principalmente após a Peste Negra (1348), o problema se agravou. O número de bebês pobres e órfãos se multiplicou, exigindo uma intervenção das instituições dos burgos e cidades medievais. Em Portugal, antes mesmo da colonização do Brasil, câmaras municipais e hospitais, como as Santas Casas da Misericórdia, começaram a criar formas de auxílio destinadas às crianças abandonadas. Por volta de 1550, os jesuítas dão início, no Novo Mundo, a uma ação pioneira junto às crianças indígenas, criando Colégios de Órfãos para receber curumins sem família.

Nos séculos seguintes, o problema se generaliza entre a população livre das vilas e cidades coloniais. Várias câmaras coloniais, conforme ocorreu nas capitanias da Bahia, Rio de Janeiro e Minas Gerais, começam a pagar famílias para acolher os denominados enjeitados ou expostos. Os hospitais, por sua vez, como se registra na Santa Casa de Salvador (1726) e na do Rio de Janeiro (1738), importam as portuguesas rodas dos expostos – tonéis de madeira giratórios, presos no meio da parede, unindo a rua ao interior do imóvel e preparados para acolher recém-nascidos abandonados.


Como é possível perceber, tratava-se de serviços assistenciais complexos e que podiam se estender até os meninos e meninas completarem sete anos de idade, quando então deviam ser empregados em serviços remunerados ou em troca de alimento e moradia. O abandono dizia respeito, fundamentalmente, às crianças brancas e pardas, de ambos os sexos. Além dos órfãos pobres, havia aqueles nascidos fora do casamento – em decorrência de relações fortuitas ou incestuosas, assim como de adultérios –, que eram deixados nas calçadas, entregues a vizinhos, ou ainda enviados a hospitais. As mães escravas raramente abandonavam os filhos, pois estes eram propriedades dos senhores, que encaravam no gesto uma forma de fuga e a perda de uma valiosa propriedade.

Um aspecto central dos estudos sobre a história da infância diz respeito ao “amor materno”. As mulheres que abandonavam os filhos manifestariam desamor em relação a eles, ou o gesto decorria de uma imposição de natureza econômica ou moral? A questão é delicada, pois na sociedade colonial quase todas as mulheres – na maior parte africanas ou destas descendentes – eram analfabetas, não deixando por isso mesmo relatos a respeito de seus sentimentos; ademais, é bastante provável que muitos bebês fossem órfãos, sendo enjeitados justamente por não terem mães que deles cuidassem.

Os raros indícios de que dispomos dizem respeito aos bilhetes presos às roupas das crianças abandonadas. Trata-se de uma fonte documental bastante interessante, mas que deve ser analisada com olhos críticos. É muito provável que os bilhetes fossem escritos por homens, principalmente padres, sensibilizados com a situação da criança desamparada.


Esse monopólio eclesiástico da escrita – infelizmente para os historiadores – apaga as marcas do multiculturalismo inerente à sociedade colonial, formada por europeus, africanos e indígenas. Além disso, esses bilhetes talvez não fossem, por assim dizer, “sinceros”, e pretendessem apenas neutralizar as péssimas expectativas dos vereadores ou dos administradores de hospitais coloniais, que viam no abandono uma mostra de irresponsabilidade e de falta de amor materno. Uma idéia expressa na escrita de um provedor da Santa Casa carioca, no início do século XIX, que falava a respeito da roda dos expostos: dando jazigo aos meninos, favorecem os desvarios das mães, e concorrem para apagar de seus corações o amor filial -- origem de todos os cuidados -- de que necessita a infância.

Mesmo que as mensagens do abandono não tenham sido escritas pelas mães, ou tenham sido influenciadas pelas expectativas institucionais, é impossível que não refletissem minimamente os sentimentos maternos. De outra forma, por que as mulheres se dariam ao trabalho de procurar homens alfabetizados para escrever o texto que acompanharia seus filhos?

Trata-se, portanto, de testemunhos indiretos, mas reveladores de um aspecto crucial da história da infância, conforme veremos nos textos transcritos desses bilhetes, colhidos nos Arquivos das Santas Casas da Misericórdia de Salvador e do Rio de Janeiro. Essas instituições, entre 1726 e 1938, acolheram milhares de crianças na roda dos expostos, embora um número ínfimo delas tenham sido acompanhadas por bilhetes.

Em quase todos os escritos clamava-se pelo bom tratamento dos filhos. Muitos se inquietavam diante do futuro espiritual dos pequeninos. Era comum a solicitação de que o batismo fosse administrado ou confirmado, por ter sido aplicado de maneira incompleta. Eis, por exemplo, o que afirma um bilhete de 9 de janeiro de 1759: “(...) esta menina chama-se Rita, está batizada em casa por sacerdote e se lhe faltam os Santos Óleos (...)”.


A garantia do precoce batizado não era apenas um gesto religioso, como também de amor. De acordo com a mentalidade da época, as crianças que faleciam logo após a cerimônia iam direto para o céu e se tornavam anjinhos. Em seus sermões e confissões, os padres não se cansavam de repetir esse princípio. Alexandre de Gusmão, pregador jesuíta e autor da Arte de criar bem os filhos na idade da puerícia (1685), afirma em relação a um casal muito pobre, que batizou os filhos e resistiu a abandoná-los: “Cousa maravilhosa! Foram-lhes morrendo pouco a pouco todos os filhos, que Deus levou para si quase todos na idade da inocência (...) e eles ficaram muito agradecidos a Deus por tão assinalada Mercê”.

A preocupação dos familiares de enjeitados também se expressava através da indicação do nome da criança. No Brasil dos séculos XVIII e XIX, a transmissão dos “sobrenomes” não era regulamentada. Os pais, manifestando preocupação em relação ao futuro espiritual dos seus descendentes, utilizavam a liberdade para atribuir sobrenomes religiosos aos filhos. Eis o que dizem dois escritos, datados de 29 de maio de 1782 e de 13 de outubro de 1783: “(...) vai esse menino que já é batizado, chama-se Antônio José de Deus; (...) trouxe um bilhete que dizia já estar batizado, chama-se Antônio de Santa Bárbara”.

O nome também podia ser um meio de facilitar a futura localização da criança. Para tanto, bastava escolher uma onomástica que fugisse à monótona cadência de marias, josés e joões, comum à tradição popular colonial: “(...) trouxe bilhete em que dizia estar batizado com o nome de Praxedes”; “(...) trouxe carta em que declara se achar batizada em perigo de vida com o nome de Leopoldina”; “(...) trouxe bilhete em que declara se achar batizado com o nome de Sérvulo (...)”. Muitos escritos guardam ainda as angústias e sofrimentos dos corações daqueles que eram obrigados a recorrer à roda dos expostos: “(...) remeto este menino branco chamado Antônio José Coelho, para tratá-lo e tê-lo com o maior cuidado que puder”; “(...) morreu sua mãe e por pobreza e falta de leite se enjeita esta batizada chamada Joaquina, e por cita esmola ficamos pedindo a Deus pela saúde e vida decente”.


A preocupação com o futuro das crianças também se refletia na menção à origem racial das mesmas. Em alguns casos, chegava-se mesmo ao extremo, indicando-se a ascendência não-judaica (não-cristã-nova) do enjeitado: “por esmola e caridade me recebam este menino (...) porque é branco, legítimo e cristão-velho”. O temor em relação à escravidão, por sua vez, levava mães a explicitarem a condição de ex-escravo, ou seja, “forro”, do recém-nascido: “(...) trouxe bilhete do teor seguinte (...) Theodora Maria da Glória, filha natural já batizada com quatro meses, forra. Deus a tenha para seu Santo Serviço”; “(...) o mande batizar que é forro que Deus lhe dará o pago”; “(...) trouxe bilhete de teor seguinte (...) Esta crioula de nome Bernarda já está batizada na Freguesia da Penha, é forra”.

Os melhores exemplos do abandono como forma de amor talvez sejam os de escravas que enjeitavam os próprios filhos na esperança de que eles fossem considerados livres. Conforme mencionamos, tais casos foram raramente documentados, mas existiram: “(...) se entregou esta criança ao Senhor Mestre de Campo Antônio Estanislau, por se averiguar ser verdadeiramente seu Senhor e ficar esta Santa Casa livre de pagar sua criação, por fugir a Mãe da Casa do dito Senhor e parir fora, pela confissão que a dita fez”; “(...) mandou-se entregar a Júlia Telles da Silva Lobo, um seu escravo menor de nome Thomé que fora lançado à roda dos expostos”.

O abandono não era encarado como uma manifestação de falta de responsabilidade. Alguns escritos chegavam ao paradoxo de apresentar o gesto como uma forma de amor, em nada prejudicial à vida da criança. É o que lemos em um bilhete datado de 19 de agosto de 1760 : “(...) rogo a Vossa Mercê queira ter a bondade de mandar criar este menino com todo o cuidado e amor (...)”; “é este menino filho de Pais Nobres e Vossa Mercê fará a honra de lhe criar em casa que não seja muito pobre e que tem escravas que costumam criar essas crianças (...)”.


Eventualmente, tais bilhetes atribuíam o abandono à impossibilidade moral de pais e mães solteiras, adúlteras ou religiosas, manterem o filho. A confissão dos “amores ilegítimos” era, no entanto, feita de maneira velada, conforme se registrou na mesma data acima mencionada: “(...) acompanha a esta a um menino para Vossa Mercê (...) a quem por mercê e honra de Deus pertence tomar conta dessas crianças quando nascem de pessoas recolhidas e que são família que tem Pai e por causa deste impedimento se não podem criar”. Reconhecia-se discretamente o nascimento ilegítimo, antevendo-se como tal situação era constrangedora: “(...) trouxe uma carta pedindo que por seus pais serem impedidos, e estarem para casar, se crie a dita menina com todo zelo, que breve a mandarão buscar, e que igualmente lhe pusessem o nome de Antônia”.

Os impedimentos morais, a condenação à mãe solteira certamente contribuíam para a multiplicação de abandonados, contudo, esse estava longe de ser o único motivo para se justificar o recurso à roda nos expostos. Nos três exemplos a seguir, registrados entre 1758 e 1830, enjeitados considerados brancos foram acompanhados de escritos alegando pobreza e indigência como causa do abandono: “(...) vai esta menina já batizada e chama Ana e pelo Amor de Deus se pede a Vossa Mercê a queira mandar criar atendendo a pobreza de seus pais”; “(...) vai este menino para essa Santa Casa pela indigência e necessidade de seus Pais”; “(...) as duas meninas portadoras desta carta foram deixadas por necessidade de sua mãe em casa de uma pobre, que vive de esmolas dos fiéis, e por isso que elas vêm agora procurar asilo desta Casa da Santa Misericórdia”.

Por ocasião do parto de gêmeos, a simples menção ao duplo nascimento era apresentada como justificativa do abandono: “(...) trouxe bilhete (...) declara ser gêmeo e pede-se chame Manoel”. Além de acolher bebês pobres e bastardos, a roda dos expostos também recebia numerosos órfãos: “(...) remeto esta menina para a Santa Casa da Misericórdia para se criar, é forra e não tem pai nem mãe, nem pessoa que se doa dela, ainda não está batizada, está pagã; “(...) trouxe bilhete dizendo (...) a menina já é batizada e chama-se Bibiana e por sua mãe morrer é que chegou a este destino”; “(...) este menino já foi batizado pelo Reverendo Cura da Sé e chama-se Izidio, e por falecer sua mãe, roga-se aos Senhores que por caridade o queiram criar”.


Os testemunhos acima mostram que o abandono de crianças decorria de imposições morais e econômicas. Assim, os enjeitados tinham origem na moral patriarcal dos senhores de engenho da Bahia e do Rio de Janeiro e também eram frutos das conseqüências do sistema econômico que sustentava estes segmentos sociais; conseqüência da miséria comum à vida da imensa maioria da população livre e liberta da época. Mulheres brancas da elite e ex-escravas sofriam ao abandonar os próprios filhos. O gesto não expressava, por assim dizer, um modelo familiar alternativo, em que o amor maternal estivesse verdadeiramente ausente. H

Renato Pinto Venâncio é professor da Universidade Federal de Ouro Preto (MG), diretor do Arquivo Público Mineiro, doutor pela Universidade de Paris IV – Sorbonne e autor de Famílias abandonadas – Assistência à criança de camadas populares no Rio de Janeiro e em Salvador – séculos XVIII e XIX (Papirus, 1999).

Revista de Historia da Biblioteca Nacional

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