LITERATURA E HISTÓRIA MEDIEVAL ATRAVÉS DA VISÃO DE TÚNDALO (SÉCULO XII)
Adriana Maria de Souza Zierer (UEMA)
Pensar em Idade Média é pensar também sobre a religiosidade, aspecto central das sociedades daquele período, quando, segundo a doutrina cristã, o mais importante era a preocupação com a salvação da alma, sendo o mundo terreno visto pela Igreja como um lugar de passagem e o ser humano entendido como um viajante entre dois mundos, o homo viator.
Um elemento crucial para obter a salvação consistiria na purificação do corpo, daí o fato de que as virgens e os monges eram os modelos mais admirados socialmente, pois considerava-se que aqueles capazes de se afastar das tentações ou prazeres (como o sexo ou as bebidas) conseguiriam atingir o Paraíso. Para os outros restava sofrer as punições temporárias por seus pecados no Purgatório ou eternas no Inferno.
Segundo Jacques LE GOFF (1994, p. 13), as fontes privilegiadas para o entendimento do imaginário medieval são as artísticas e literárias. Jean Claude-SCHMITT numa conferência realizada na Universidade Federal Fluminense em 1997 qualificou o imaginário como a relação dos homens entre si, com Deus e com o invisível. O mesmo autor afirmou também num artigo da revista Signum que o imaginário é “uma realidade coletiva que consiste em narrativas míticas, ficções, imagens, compartilhadas pelos atores sociais. Toda sociedade, todo grupo produz um imaginário, sonhos coletivos garantidores de sua coesão e de sua identidade” (SCHMITT, 2001, p. 133).
Portanto, visando compreender o pensamento dos medievos acerca do Além-túmulo, sua relação com a religiosidade e seus medos e esperanças após a morte, nada melhor do que estudar uma fonte literária sobre uma viagem ou Visão. O relato em questão, a Visão de Túndalo, constitui-se num exemplum, isto é, uma narrativa de inspiração religiosa enumerando as glórias e tormentos do Além-túmulo, visando ser transmitida a um auditório e levar à conversão.
A obra foi produzida por volta de 1148 em latim ou gaélico pelo monge Marcos para a abadessa Gerturdes, de quem era confessor (Visão de Túndalo (VT), 1895, p. 97-98). Este exemplum é considerado “anônimo” e tinha por objetivo estimular os pecadores a voltarem-se mais a Deus, através de uma viagem, na qual um homem comum, não religioso atinge o Além, percorrendo o Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
No manuscrito, as descrições do Purgatório e Inferno ainda não se distinguem com clareza, pois, no momento da confecção do relato estava sendo construída pela Igreja a concepção mental de um terceiro lugar no Além, o Purgatório, onde os pecadores poderiam pagar suas penas antes de chegarem ao Paraíso (LE GOFF, 1993). Desta forma, o Reino dos Céus ficava ao alcance de todos os cristãos. Acreditava-se que um dos tormentos mais comuns ali sofridos era a passagem sucessiva de locais ardentes a gelados, do fogo ao frio intenso.
É interessante observarmos o estatuto social de Túndalo: não é um simples camponês, nem um clérigo eleito para chegar ao Paraíso, mas um cavaleiro. Quem eram os cavaleiros no século XII?
Nesta época o cavaleiro é o detentor dos instrumentos necessários para vencer o combate, graças à superioridade do cavalo, da armadura e das armas. Ele chega esta condição através de um rito, a sagração (adoubement), momento no qual após ter atingido sua educação militar e através de uma cerimônia, ascendia a posição de defensor da paz. Na França este grupo rapidamente se tornou hereditário ao receber feudos em troca dos serviços prestados, ocorrendo ali uma fusão entre cavalaria e nobreza (DUBY, 1997, p. 229-233).
Uma parte dos nobres, principalmente os não-primogênitos tornam-se cavaleiros sem fortuna girando ao redor de um grande senhor e prontos para aventurarem-se em guerras privadas, daí os estímulos externos das Cruzadas para controlá-los. Como não havia terras para todos, uma parte da nobreza passou a voltar-se para saques e guerras privadas.
Tentando solucionar este problema, a Igreja buscou estipular normas a serem adotadas pelos cavaleiros. Pela Paz de Deus (fins do século X), eles deveriam respeitar os camponeses, os clérigos, mercadores e os seus bens e pela Trégua de Deus (século XI) se absteriam de lutar entre a quinta à tarde e a segunda-feira pela manhã. A Igreja tentou também transformar o cavaleiro num miliciano de Deus, um defensor dos pobres, viúvas e do clero embora saibamos que isto não ocorria, e estimulou-os para fora da Europa nas Cruzadas contra os infiéis ou dentro da própria Europa contra os hereges (Ex: Cruzada contra os Cátaros) e muçulmanos (Reconquista da Península Ibérica).
O cavaleiro que fosse para a Cruzada recebia da Igreja o perdão por seus pecados. Para São Bernardo, o modelo de perfeição era o monge-cavaleiro e por isto ele deu grande apoio ao surgimento das Ordens Militares, como a dos Templários.
A partir de fins do século XI, a cavalaria sacralizou-se com a bênção da espada, o ritual da velada das armas e com o advento das Cruzadas. Na literatura foi construída uma imagem para o cavaleiro, a de leal, valente, cortês e generoso, pois a cavalaria como instituição ligada à nobreza desprezava a atividade produtiva e valorizava a largueza demonstrada em festins e torneios.
Devido à sua posição de importância dentro da sociedade e pela ligação com a nobreza, acredito que Túndalo, um cavaleiro, tenha sido o escolhido pela Igreja para exemplificar aos demais fiéis como seriam as penas do Inferno e a possibilidade do arrependimento para se atingir a salvação e ascender ao Paraíso.
Tanto no começo quanto no fim do relato aparece fortemente explicitado o objetivo da jornada de Túndalo, isto é, sua experiência seria contada para que os medievais se arrependessem dos pecados e levassem uma vida mais virtuosa, de acordo com a concepção da Igreja:
Começase a Estoria dhuun Caualeyro a que chamauan Tungulu ao qual foron mostradas uisibilmente (...) todas as penas do inferno e do purgatorio. E outrosi todos os beens e glorias que ha no sancto parayso. (...) Esto lhe foi demonstrado por tal que se ouuesse de correger e emmendar dos seos peccados e de suas maldades.” (o grifo é meu) (VT, p. 101).
É importante observar o objetivo didático da narrativa, pois a Visão de Túndalo visa ser uma espécie de manual de comportamento do “bom cristão” que com o exemplo do pecador Túndalo seria igualmente capaz de se corrigir e emendar as suas possíveis faltas.
Um aspecto interessante é observar as palavras que aparecem logo nas primeiras páginas do texto: penas, inferno, demônio, tormentos, trevas, fogo, anjo, luz, Deus, almas, temor, açoites. Deste modo, fica bastante claro o objetivo do texto de doutrinação da sociedade.
No fim da narrativa, o pecador se regenera e passa a adotar todas as atitudes aconselhadas pela Igreja: “partio tudo o que auia e deu aos pobres. (...) E conselhou nos que fizessemos bem e uiuessemos a boa uida e sancta. E pregou as palauras [da sancta scriptura] muy afficadamente (...) com gran deuoçon.” (VT, p. 120)
Mas que tipo de cavaleiro seria Túndalo? Um nobre secundogênito sem terras, causador de instabilidade social? Não. Percebemos logo no princípio da narrativa que ele era de “boa linhagem” e que após o seu arrependimento, entregou todos os seus bens aos pobres, o que indica sua alta condição social, exemplo por isto mesmo de conduta a ser seguida pelo resto da nobreza para salvação de suas almas.
Por quais tormentos passou que o levaram a tomar esta decisão? Túndalo experimenta a morte por um período de três dias, ocasião em que um anjo vem buscá-lo para uma jornada no Além. Os demônios pretendem levar a alma do cavaleiro pecador, mas são impedidos pelo anjo, pois Túndalo teria ainda a chance de arrepender-se de suas faltas e conseguir a salvação. Os principais pecados de Túndalo, pelos quais devia “purgar” nesta viagem, eram comuns aos medievais e muito criticados pelos oratores, como, por exemplo, o apego aos prazeres mundanos, como a luxúria (RICHARDS, 1993, p. 33-52), e o não cumprimento de obrigações cristãs, como dar esmolas aos pobres e freqüentar assiduamente as missas.
Quando os demônios vêm cercá-lo e Túndalo apela ao anjo, este reclama que sempre o acompanhara todos os dias de sua vida e que até então o cavaleiro não lhe dera ouvidos (tu nunca quiseste creer meus conselhos. Nen fazer a minha uoontade) (VT, p. 110).
A obra procura mostrar que Deus é bom e piedoso. Assim, o pecador não sofreria tantos castigos quanto na verdade merecia porque o objetivo do Criador era de que Túndalo se arrependesse e conseguisse a salvação. Segundo o ser celestial: “Deus ha de ti piedade e non padeceras tantas penas quantas mereciste. mais passaras por muytos tormentos e depois desto tornaras ao corpo. Por corregeres tua uida.” (VT, p. 102-103)
No Purgatório o nobre sofre vários tormentos, como o de ser tragado por um monstro que come e vomita as almas (VT, p. 107-108). A alma e o anjo descem cada vez mais, até que chegam ao nível mais profundo do subsolo. Lá está o demônio, o Príncipe das Trevas em pessoa, o qual possui unhas enormes afiadas como lanças, e que proporciona os piores tormentos aos condenados (VT, p. 110-111). O sofrimento deles é infinito e ininterrupto.
É importante observar que o relato sobre Túndalo influenciou outros autores, como Dante Alighieri, que escreveu a Comédia no século XIV. Inspirado nas punições sofridas por Túndalo, Dante explica com detalhes os sofrimentos principalmente dos usurários nos círculos do Inferno.
No caso de Túndalo, o anjo o acompanha, mas deixa que ele sofra um pouco as penas de que era culpado, nas quais é torturado juntamente com os avaros, ladrões, glutões, fornicadores e luxuriosos, penas essas associadas aos sete pecados capitais (luxúria, inveja, gula, preguiça, ira, avareza e vaidade).
Uma das punições sofridas pelo cavaleiro é a relacionada aos ladrões quando é obrigado a passar por uma ponte com pregos carregando uma vaca, que no passado havia roubado de um vizinho. No meio do caminho encontra outro condenado carregando um feixe de trigo e nenhum dos dois quer dar passagem ao outro, pois aquele que caísse encontraria em baixo o fogo ardente. Assim, ambos choram e se acusam mutuamente de seus pecados. O ente celeste salva Túndalo, cura seus pés e eles prosseguem o caminho.
É interessante pensar no impacto que tais imagens teriam no público medieval que ouvia as histórias. Certamente as pessoas de então refletiam muito sobre as suas ações e sentiam muito medo das possíveis aflições futuras.
A purificação no período medieval é sempre vista através do sofrimento físico, como os santos mártires que sofreram pela fé cristã. Da mesma forma, as recompensas e castigos no Além são hierarquizados, dependendo do merecimento de cada um, como, por exemplo, atesta a obra Da Hierarquia Celeste, do pseudo-Dionísio Aeropagita sobre a hierarquia dos anjos no Céu (DUBY, 1982, p. 135-141).
Depois de sofrer algumas torturas no Purgatório e Inferno, Túndalo e o anjo partem para cima, rumo à luz e ao Paraíso. Encontram um campo florido e uma fonte capaz de garantir a vida eterna. Logo depois encontram pessoas que estão num pré-Paraíso, por não serem maus nem completamente bons.
A visão do Paraíso no relato segue a idéia de hierarquia de Gregório Magno que, inspirado numa passagem bíblica do profeta Ezequiel, divide os cristãos em três categorias, os conjugati (casados), os continentes (os religiosos) e os predicatores (os clérigos seculares) (VAUCHEZ, 1985, p. 48). De fato, o cavaleiro encontra o Paraíso dividido em três estágios. No Muro de Prata, viviam os castos no casamento. No Muro de Ouro, encontravam-se os monges e monjas e os construtores das igrejas. Todos haviam sido mártires da defesa da fé cristã e por isso, cada um tinha na cabeça coroas de ouro com pedras preciosas.
Na melhor parte do Paraíso, o Muro das Pedras Preciosas, estavam as nove ordens de anjos, os patriarcas, os profetas da Bíblia, os apóstolos de Jesus e as virgens. Também aí encontramos a presença de um santo irlandês, São Patrício, mencionado na narrativa devido ao seu papel fundamental na implantação do cristianismo na Irlanda[1], terra natal do autor da Visão.
Podemos observar em todas as Visões o uso dos órgãos dos sentidos para aproximar o relato do interlocutor, que na maioria das vezes ouvia a narrativa ao invés de lê-la. Além do fato de a maioria da população medieval ser iletrada, a leitura era vista comumente como atividade fatigante, sendo a “literatura” conhecida por meio de recitadores e de pregadores religiosos (ZUMTHOR, 1993, p. 55-80).
Por exemplo, são abundantes as impressões visuais, olfativas e auditivas, tanto no Inferno e Purgatório quanto no Paraíso. Ouvem-se terríveis gritos de sofrimento, ou cânticos maravilhosos, sente-se um fedor horrível ou aromas agradáveis de flores e árvores frutíferas. Além disso, temos a visão aterradora do Inferno escuro e a visão agradável do Paraíso envolta sempre num clima aprazível estabelecido num belo jardim, com objetos ricos como o ouro e as pedras preciosas.
O tato também é muito importante nos relatos através das inúmeras torturas vivenciadas pelos pecadores, torturas essas que deformam e dilaceram os corpos, num sofrimento interminável o que pode ser atestado por determinados verbos na narrativa como atormentar, padecer, espedaçar, derreter, ferver. No Paraíso, porém, as mãos tocam flores, frutos, pássaros, objetos preciosos e os corpos são cobertos por vestes brancas.
O paladar é igualmente utilizado para enfatizar a oposição Paraíso e Inferno, pois os seres do Paraíso bebem das águas cristalinas e comem os frutos abundantes, enquanto que os do Inferno sofrem privações. Sobre a abundância alimentar que caracteriza o Paraíso, é interessante lembrar que a sociedade medieval passava por várias crises alimentares. O ápice da felicidade era, então, a obtenção de alimentos de forma contínua e sem a necessidade do trabalho — também considerado um castigo de Deus.
É importante lembrar que trabalho vem de labor, palavra associada a vocábulos negativos em latim como sudor e dolor, conforme salientou Georges DUBY (1982, p. 76). Por isso, existem relatos medievais sobre espaços perfeitos, como a Cocanha, um país imaginário paradisíaco onde choviam pudins do céu e corriam rios de leite e vinho (FRANCO JR, 1998), narrativa que até hoje é conhecida no nordeste brasileiro através do poema de cordel chamado Viagem a São Sarué (CAMÊLO, 2004)[2].
A descrição do Paraíso, palavra que significa “jardim cercado” (BAUER, 1988, p. 802), lembra muito a do Éden, onde Adão e Eva viviam em abundância, num clima agradável. Com o pecado original e a expulsão, os seres humanos tiveram que trabalhar para obter o sustento e o seu maior desejo passa a ser o de atingir um lugar caracterizado pela fartura.
A Visão de Túndalo foi traduzida em português, por volta do século XV, por monges do mosteiro cisterciense de Alcobaça, o que indica que os elementos da narrativa persistiram sendo identificados com os sentimentos religiosos das populações na chamada Longa Duração.
As motivações da tradução da obra neste período foram principalmente o medo da morte e a tentativa de conhecer os espaços do Além em Portugal, num período logo após a Peste Negra e marcado pela guerra (Guerra com Castela até 1411) quando os indivíduos temiam pelo seu destino após a morte. O cavaleiro da época era ainda uma categoria social de grande destaque na sociedade portuguesa.
Com a ascensão da Dinastia de Avis ao poder, muitos nobres opositores viram-se obrigados a deixar o reino e outros de linhagens de menos importância ascenderam socialmente. A nobreza neste período era dividida em ricos-homens, cavaleiros-fidalgos, infanções e escudeiros. Os ricos-homens eram os vassalos diretos do rei, que recebiam dele rendimentos e deviam fornecer um certo número de lanças. Podiam provir da nobreza ou ali entrar através da compra do cargo, pois D. João I (1385-1433) tinha a necessidade de aumentar as fileiras deste grupo com indivíduos de sua confiança (MORENO, 1998, p. 116). Elementos da antiga nobreza como os infanções vinham diminuindo em número devido à alta taxa de mortalidade e à diminuição da natalidade neste grupo. Outra categoria de nobres eram os cavaleiros, possuidores de propriedades nas áreas rurais, que só podiam tornar-se fidalgos após a terceira geração[3]. Havia também os escudeiros, elementos da nobreza inferior que não conseguiam atingir o grau de cavaleiro devido à insuficiência de bens. Boa parte da nobreza da época foi impulsionada às Grandes Navegações como forma de controle de sua turbulência e em busca de novos rendimentos.
Como é possível observar, no século XV a figura do cavaleiro em Portugal ainda ocupa um lugar muito importante na sociedade e a busca da salvação permanece como uma grande preocupação dos fiéis. Neste sentido, A Visão de Túndalo no século XV continua a exercer o papel de exemplo de salvação coletiva da sociedade através da salvação individual do cavaleiro.
Um dos motivos de arrependimento do nobre, além do fato de haver vivenciado certas torturas e obtido algumas Glórias de Deus durante a sua Visão, foi que também encontrou muitos dos seus parentes e amigos no Inferno (VT, p. 111).
Um outro elemento característico da religiosidade cristã e mencionado na obra é que os maus são capazes de ver a felicidade dos bons para se sentirem piores com o que perderam; já os bons vêem as penas dos maus para sentirem maior felicidade.
Portanto, fica bastante claro em obras como a Visão de Túndalo o papel doutrinador da Igreja através das narrativas que mostravam os elementos do Paraíso e Inferno no sentido de orientar a conduta dos cristãos e levá-los a adotar medidas capazes de preservar o corpo, evitar as tentações e garantirem no futuro a salvação das almas.
FONTE
Visão de Túndalo. Ed. F. M. Esteves Pereira. Revista Lusitana, 3, 1895, p. 97-120.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
BAUER, Johannes B. Dicionário de Teologia Bíblica. São Paulo: Edições Loyola, 1988, v. II.
CAMÊLO, Júlia Constança P. “Prazer, Juventude e Felicidade na Poesia Popular”. In: Outros Tempos. Revista de História da Universidade Estadual do Maranhão. V. 1, 2º semestre de 2004. http://www.outrostempos.v10.com.br/
DUBY, Georges. “Chevalerie” In: Dictionnaire du Moyen Âge. Histoire et Société. Paris: Encyplopaedia Universalis/Albin Michel, 1997.
FRANCO JR., Hilário. Cocanha: a História de um País Imaginário. São Paulo: Companhia das Letras, 1998.
LE GOFF, Jacques. “Além”. In: Dicionário Temático do Ocidente Medieval. São Paulo: EDUSC/Imprensa Oficial do Estado, 2002, v. I, p. 21-33.
LE GOFF, Jacques. O Imaginário Medieval. Lisboa: Editorial Estampa, 1994.
LE GOFF, Jacques. O Nascimento do Purgatório. Lisboa: Editorial. Estampa, 1993.
LOUREIRO, Klítia e SCARAMUSSA, Ziza. O Diabo e suas Representações Simbólicas em Ramon Llull e Dante Alighieri (séculos XIII e XIV). In: FIDORA, Alexander e Pastor, Jordi Pardo(Coord.). Expresar lo divino: Lenguaje, arte y mística. Mirabilia 2. Revista de História Antiga e Medieval, 2003, p. 177-192. Disponível na Internet: Mirabilia 2 (2002) http://www.revistamirabilia.com/
LOYN, Henry R. (Org.) Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990.
RICHARDS, Jeffrey. Sexo, Desvio e Danação: As Minorias na Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1993.
SCHMITT, Jean-Claude. Os Vivos e os Mortos na Sociedade Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1999.
SCHMITT, Jean-Claude. “A Imaginação Eficaz”. In: Signum. Revista da ABREM. Associação Brasileira de Estudos Medievais. São Paulo: Fapesp, número 3, 2001, p. 133-150.
VAUCHEZ, André. La Espiritualidad del Occidente Medieval. Madrid: Catedra, 1985.
ZUMTHOR, Paul. A Letra e a Voz. A “Literatura” Medieval. São Paulo: Companhia das Letras, 1993.
MORENO, Humberto Baquero. “As Quatro Ordens da Sociedade Quatrocentista” In: Revista Tempo nº 5. Rio de Janeiro: Sette Lettras, 1998, p. 107-119.
ZIERER, Adriana. “Paraíso versus Inferno: A Visão de Túndalo e a Viagem Medieval em Busca da Salvação da Alma (Século XII)”. In: FIDORA, Alexander e PASTOR, Jordi Pardo (coord). Expresar lo Divino: Lenguage, Arte y Mística. Mirabilia. Revista de História Antiga e Medieval. São Paulo: Instituto Brasileiro de Filosofia e Ciência Raimundo Lúlio/J.W. Goethe-Universität Frankfurt/Universitat Autònoma de Barcelona, v.2, 2003, p. 137-162. Disponível na Internet: Mirabilia 2 (2002). http://www.revistamirabilia.com/
ZIERER, Adriana. “Literatura e Imaginário: Fontes Literárias e Concepções Acerca do Além Medieval nos Séculos XII e XIII”. In: Outros Tempos. Revista de História da Universidade Estadual do Maranhão. V. 1, 2º semestre de 2004.
http://www.outrostempos.v10.com.br/
ZIERER, Adriana M.S. Paraíso, Escatologia e Messianismo em Portugal à Época de D. João I. Tese de Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004.
[1] São Patrício (390-461) foi missionário, tendo papel decisivo na introdução do cristianismo na Irlanda. A ele é atribuída a conversão dos irlandeses, mas já está provado que alguns missionários haviam trabalhado antes dele no local, sendo a atuação de Patrício realizada no norte e centro do território. Ver LOYN, Henry R. (Org.) Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 201.
[2] Sobre a adaptação da narrativa para os tempos atuais associando a Cocanha com São Saruê, um paraíso no nordeste brasileiro contado na literatura de cordel pelo poeta Camilo, cf. CAMÊLO, Júlia Constança P. “Prazer, Juventude e Felicidade na Poesia Popular”. In: Outros Tempos. Revista de História da Universidade Estadual do Maranhão. V. 1, 2º semestre de 2004. http://www.outrostempos.v10.com.br/
[3] A partir de meados do século XIV muitos eram provenientes da cavalaria-vilã. Ibid., pp. 117-118.
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Adriana Maria de Souza Zierer (UEMA)
Pensar em Idade Média é pensar também sobre a religiosidade, aspecto central das sociedades daquele período, quando, segundo a doutrina cristã, o mais importante era a preocupação com a salvação da alma, sendo o mundo terreno visto pela Igreja como um lugar de passagem e o ser humano entendido como um viajante entre dois mundos, o homo viator.
Um elemento crucial para obter a salvação consistiria na purificação do corpo, daí o fato de que as virgens e os monges eram os modelos mais admirados socialmente, pois considerava-se que aqueles capazes de se afastar das tentações ou prazeres (como o sexo ou as bebidas) conseguiriam atingir o Paraíso. Para os outros restava sofrer as punições temporárias por seus pecados no Purgatório ou eternas no Inferno.
Segundo Jacques LE GOFF (1994, p. 13), as fontes privilegiadas para o entendimento do imaginário medieval são as artísticas e literárias. Jean Claude-SCHMITT numa conferência realizada na Universidade Federal Fluminense em 1997 qualificou o imaginário como a relação dos homens entre si, com Deus e com o invisível. O mesmo autor afirmou também num artigo da revista Signum que o imaginário é “uma realidade coletiva que consiste em narrativas míticas, ficções, imagens, compartilhadas pelos atores sociais. Toda sociedade, todo grupo produz um imaginário, sonhos coletivos garantidores de sua coesão e de sua identidade” (SCHMITT, 2001, p. 133).
Portanto, visando compreender o pensamento dos medievos acerca do Além-túmulo, sua relação com a religiosidade e seus medos e esperanças após a morte, nada melhor do que estudar uma fonte literária sobre uma viagem ou Visão. O relato em questão, a Visão de Túndalo, constitui-se num exemplum, isto é, uma narrativa de inspiração religiosa enumerando as glórias e tormentos do Além-túmulo, visando ser transmitida a um auditório e levar à conversão.
A obra foi produzida por volta de 1148 em latim ou gaélico pelo monge Marcos para a abadessa Gerturdes, de quem era confessor (Visão de Túndalo (VT), 1895, p. 97-98). Este exemplum é considerado “anônimo” e tinha por objetivo estimular os pecadores a voltarem-se mais a Deus, através de uma viagem, na qual um homem comum, não religioso atinge o Além, percorrendo o Purgatório, o Inferno e o Paraíso.
No manuscrito, as descrições do Purgatório e Inferno ainda não se distinguem com clareza, pois, no momento da confecção do relato estava sendo construída pela Igreja a concepção mental de um terceiro lugar no Além, o Purgatório, onde os pecadores poderiam pagar suas penas antes de chegarem ao Paraíso (LE GOFF, 1993). Desta forma, o Reino dos Céus ficava ao alcance de todos os cristãos. Acreditava-se que um dos tormentos mais comuns ali sofridos era a passagem sucessiva de locais ardentes a gelados, do fogo ao frio intenso.
É interessante observarmos o estatuto social de Túndalo: não é um simples camponês, nem um clérigo eleito para chegar ao Paraíso, mas um cavaleiro. Quem eram os cavaleiros no século XII?
Nesta época o cavaleiro é o detentor dos instrumentos necessários para vencer o combate, graças à superioridade do cavalo, da armadura e das armas. Ele chega esta condição através de um rito, a sagração (adoubement), momento no qual após ter atingido sua educação militar e através de uma cerimônia, ascendia a posição de defensor da paz. Na França este grupo rapidamente se tornou hereditário ao receber feudos em troca dos serviços prestados, ocorrendo ali uma fusão entre cavalaria e nobreza (DUBY, 1997, p. 229-233).
Uma parte dos nobres, principalmente os não-primogênitos tornam-se cavaleiros sem fortuna girando ao redor de um grande senhor e prontos para aventurarem-se em guerras privadas, daí os estímulos externos das Cruzadas para controlá-los. Como não havia terras para todos, uma parte da nobreza passou a voltar-se para saques e guerras privadas.
Tentando solucionar este problema, a Igreja buscou estipular normas a serem adotadas pelos cavaleiros. Pela Paz de Deus (fins do século X), eles deveriam respeitar os camponeses, os clérigos, mercadores e os seus bens e pela Trégua de Deus (século XI) se absteriam de lutar entre a quinta à tarde e a segunda-feira pela manhã. A Igreja tentou também transformar o cavaleiro num miliciano de Deus, um defensor dos pobres, viúvas e do clero embora saibamos que isto não ocorria, e estimulou-os para fora da Europa nas Cruzadas contra os infiéis ou dentro da própria Europa contra os hereges (Ex: Cruzada contra os Cátaros) e muçulmanos (Reconquista da Península Ibérica).
O cavaleiro que fosse para a Cruzada recebia da Igreja o perdão por seus pecados. Para São Bernardo, o modelo de perfeição era o monge-cavaleiro e por isto ele deu grande apoio ao surgimento das Ordens Militares, como a dos Templários.
A partir de fins do século XI, a cavalaria sacralizou-se com a bênção da espada, o ritual da velada das armas e com o advento das Cruzadas. Na literatura foi construída uma imagem para o cavaleiro, a de leal, valente, cortês e generoso, pois a cavalaria como instituição ligada à nobreza desprezava a atividade produtiva e valorizava a largueza demonstrada em festins e torneios.
Devido à sua posição de importância dentro da sociedade e pela ligação com a nobreza, acredito que Túndalo, um cavaleiro, tenha sido o escolhido pela Igreja para exemplificar aos demais fiéis como seriam as penas do Inferno e a possibilidade do arrependimento para se atingir a salvação e ascender ao Paraíso.
Tanto no começo quanto no fim do relato aparece fortemente explicitado o objetivo da jornada de Túndalo, isto é, sua experiência seria contada para que os medievais se arrependessem dos pecados e levassem uma vida mais virtuosa, de acordo com a concepção da Igreja:
Começase a Estoria dhuun Caualeyro a que chamauan Tungulu ao qual foron mostradas uisibilmente (...) todas as penas do inferno e do purgatorio. E outrosi todos os beens e glorias que ha no sancto parayso. (...) Esto lhe foi demonstrado por tal que se ouuesse de correger e emmendar dos seos peccados e de suas maldades.” (o grifo é meu) (VT, p. 101).
É importante observar o objetivo didático da narrativa, pois a Visão de Túndalo visa ser uma espécie de manual de comportamento do “bom cristão” que com o exemplo do pecador Túndalo seria igualmente capaz de se corrigir e emendar as suas possíveis faltas.
Um aspecto interessante é observar as palavras que aparecem logo nas primeiras páginas do texto: penas, inferno, demônio, tormentos, trevas, fogo, anjo, luz, Deus, almas, temor, açoites. Deste modo, fica bastante claro o objetivo do texto de doutrinação da sociedade.
No fim da narrativa, o pecador se regenera e passa a adotar todas as atitudes aconselhadas pela Igreja: “partio tudo o que auia e deu aos pobres. (...) E conselhou nos que fizessemos bem e uiuessemos a boa uida e sancta. E pregou as palauras [da sancta scriptura] muy afficadamente (...) com gran deuoçon.” (VT, p. 120)
Mas que tipo de cavaleiro seria Túndalo? Um nobre secundogênito sem terras, causador de instabilidade social? Não. Percebemos logo no princípio da narrativa que ele era de “boa linhagem” e que após o seu arrependimento, entregou todos os seus bens aos pobres, o que indica sua alta condição social, exemplo por isto mesmo de conduta a ser seguida pelo resto da nobreza para salvação de suas almas.
Por quais tormentos passou que o levaram a tomar esta decisão? Túndalo experimenta a morte por um período de três dias, ocasião em que um anjo vem buscá-lo para uma jornada no Além. Os demônios pretendem levar a alma do cavaleiro pecador, mas são impedidos pelo anjo, pois Túndalo teria ainda a chance de arrepender-se de suas faltas e conseguir a salvação. Os principais pecados de Túndalo, pelos quais devia “purgar” nesta viagem, eram comuns aos medievais e muito criticados pelos oratores, como, por exemplo, o apego aos prazeres mundanos, como a luxúria (RICHARDS, 1993, p. 33-52), e o não cumprimento de obrigações cristãs, como dar esmolas aos pobres e freqüentar assiduamente as missas.
Quando os demônios vêm cercá-lo e Túndalo apela ao anjo, este reclama que sempre o acompanhara todos os dias de sua vida e que até então o cavaleiro não lhe dera ouvidos (tu nunca quiseste creer meus conselhos. Nen fazer a minha uoontade) (VT, p. 110).
A obra procura mostrar que Deus é bom e piedoso. Assim, o pecador não sofreria tantos castigos quanto na verdade merecia porque o objetivo do Criador era de que Túndalo se arrependesse e conseguisse a salvação. Segundo o ser celestial: “Deus ha de ti piedade e non padeceras tantas penas quantas mereciste. mais passaras por muytos tormentos e depois desto tornaras ao corpo. Por corregeres tua uida.” (VT, p. 102-103)
No Purgatório o nobre sofre vários tormentos, como o de ser tragado por um monstro que come e vomita as almas (VT, p. 107-108). A alma e o anjo descem cada vez mais, até que chegam ao nível mais profundo do subsolo. Lá está o demônio, o Príncipe das Trevas em pessoa, o qual possui unhas enormes afiadas como lanças, e que proporciona os piores tormentos aos condenados (VT, p. 110-111). O sofrimento deles é infinito e ininterrupto.
É importante observar que o relato sobre Túndalo influenciou outros autores, como Dante Alighieri, que escreveu a Comédia no século XIV. Inspirado nas punições sofridas por Túndalo, Dante explica com detalhes os sofrimentos principalmente dos usurários nos círculos do Inferno.
No caso de Túndalo, o anjo o acompanha, mas deixa que ele sofra um pouco as penas de que era culpado, nas quais é torturado juntamente com os avaros, ladrões, glutões, fornicadores e luxuriosos, penas essas associadas aos sete pecados capitais (luxúria, inveja, gula, preguiça, ira, avareza e vaidade).
Uma das punições sofridas pelo cavaleiro é a relacionada aos ladrões quando é obrigado a passar por uma ponte com pregos carregando uma vaca, que no passado havia roubado de um vizinho. No meio do caminho encontra outro condenado carregando um feixe de trigo e nenhum dos dois quer dar passagem ao outro, pois aquele que caísse encontraria em baixo o fogo ardente. Assim, ambos choram e se acusam mutuamente de seus pecados. O ente celeste salva Túndalo, cura seus pés e eles prosseguem o caminho.
É interessante pensar no impacto que tais imagens teriam no público medieval que ouvia as histórias. Certamente as pessoas de então refletiam muito sobre as suas ações e sentiam muito medo das possíveis aflições futuras.
A purificação no período medieval é sempre vista através do sofrimento físico, como os santos mártires que sofreram pela fé cristã. Da mesma forma, as recompensas e castigos no Além são hierarquizados, dependendo do merecimento de cada um, como, por exemplo, atesta a obra Da Hierarquia Celeste, do pseudo-Dionísio Aeropagita sobre a hierarquia dos anjos no Céu (DUBY, 1982, p. 135-141).
Depois de sofrer algumas torturas no Purgatório e Inferno, Túndalo e o anjo partem para cima, rumo à luz e ao Paraíso. Encontram um campo florido e uma fonte capaz de garantir a vida eterna. Logo depois encontram pessoas que estão num pré-Paraíso, por não serem maus nem completamente bons.
A visão do Paraíso no relato segue a idéia de hierarquia de Gregório Magno que, inspirado numa passagem bíblica do profeta Ezequiel, divide os cristãos em três categorias, os conjugati (casados), os continentes (os religiosos) e os predicatores (os clérigos seculares) (VAUCHEZ, 1985, p. 48). De fato, o cavaleiro encontra o Paraíso dividido em três estágios. No Muro de Prata, viviam os castos no casamento. No Muro de Ouro, encontravam-se os monges e monjas e os construtores das igrejas. Todos haviam sido mártires da defesa da fé cristã e por isso, cada um tinha na cabeça coroas de ouro com pedras preciosas.
Na melhor parte do Paraíso, o Muro das Pedras Preciosas, estavam as nove ordens de anjos, os patriarcas, os profetas da Bíblia, os apóstolos de Jesus e as virgens. Também aí encontramos a presença de um santo irlandês, São Patrício, mencionado na narrativa devido ao seu papel fundamental na implantação do cristianismo na Irlanda[1], terra natal do autor da Visão.
Podemos observar em todas as Visões o uso dos órgãos dos sentidos para aproximar o relato do interlocutor, que na maioria das vezes ouvia a narrativa ao invés de lê-la. Além do fato de a maioria da população medieval ser iletrada, a leitura era vista comumente como atividade fatigante, sendo a “literatura” conhecida por meio de recitadores e de pregadores religiosos (ZUMTHOR, 1993, p. 55-80).
Por exemplo, são abundantes as impressões visuais, olfativas e auditivas, tanto no Inferno e Purgatório quanto no Paraíso. Ouvem-se terríveis gritos de sofrimento, ou cânticos maravilhosos, sente-se um fedor horrível ou aromas agradáveis de flores e árvores frutíferas. Além disso, temos a visão aterradora do Inferno escuro e a visão agradável do Paraíso envolta sempre num clima aprazível estabelecido num belo jardim, com objetos ricos como o ouro e as pedras preciosas.
O tato também é muito importante nos relatos através das inúmeras torturas vivenciadas pelos pecadores, torturas essas que deformam e dilaceram os corpos, num sofrimento interminável o que pode ser atestado por determinados verbos na narrativa como atormentar, padecer, espedaçar, derreter, ferver. No Paraíso, porém, as mãos tocam flores, frutos, pássaros, objetos preciosos e os corpos são cobertos por vestes brancas.
O paladar é igualmente utilizado para enfatizar a oposição Paraíso e Inferno, pois os seres do Paraíso bebem das águas cristalinas e comem os frutos abundantes, enquanto que os do Inferno sofrem privações. Sobre a abundância alimentar que caracteriza o Paraíso, é interessante lembrar que a sociedade medieval passava por várias crises alimentares. O ápice da felicidade era, então, a obtenção de alimentos de forma contínua e sem a necessidade do trabalho — também considerado um castigo de Deus.
É importante lembrar que trabalho vem de labor, palavra associada a vocábulos negativos em latim como sudor e dolor, conforme salientou Georges DUBY (1982, p. 76). Por isso, existem relatos medievais sobre espaços perfeitos, como a Cocanha, um país imaginário paradisíaco onde choviam pudins do céu e corriam rios de leite e vinho (FRANCO JR, 1998), narrativa que até hoje é conhecida no nordeste brasileiro através do poema de cordel chamado Viagem a São Sarué (CAMÊLO, 2004)[2].
A descrição do Paraíso, palavra que significa “jardim cercado” (BAUER, 1988, p. 802), lembra muito a do Éden, onde Adão e Eva viviam em abundância, num clima agradável. Com o pecado original e a expulsão, os seres humanos tiveram que trabalhar para obter o sustento e o seu maior desejo passa a ser o de atingir um lugar caracterizado pela fartura.
A Visão de Túndalo foi traduzida em português, por volta do século XV, por monges do mosteiro cisterciense de Alcobaça, o que indica que os elementos da narrativa persistiram sendo identificados com os sentimentos religiosos das populações na chamada Longa Duração.
As motivações da tradução da obra neste período foram principalmente o medo da morte e a tentativa de conhecer os espaços do Além em Portugal, num período logo após a Peste Negra e marcado pela guerra (Guerra com Castela até 1411) quando os indivíduos temiam pelo seu destino após a morte. O cavaleiro da época era ainda uma categoria social de grande destaque na sociedade portuguesa.
Com a ascensão da Dinastia de Avis ao poder, muitos nobres opositores viram-se obrigados a deixar o reino e outros de linhagens de menos importância ascenderam socialmente. A nobreza neste período era dividida em ricos-homens, cavaleiros-fidalgos, infanções e escudeiros. Os ricos-homens eram os vassalos diretos do rei, que recebiam dele rendimentos e deviam fornecer um certo número de lanças. Podiam provir da nobreza ou ali entrar através da compra do cargo, pois D. João I (1385-1433) tinha a necessidade de aumentar as fileiras deste grupo com indivíduos de sua confiança (MORENO, 1998, p. 116). Elementos da antiga nobreza como os infanções vinham diminuindo em número devido à alta taxa de mortalidade e à diminuição da natalidade neste grupo. Outra categoria de nobres eram os cavaleiros, possuidores de propriedades nas áreas rurais, que só podiam tornar-se fidalgos após a terceira geração[3]. Havia também os escudeiros, elementos da nobreza inferior que não conseguiam atingir o grau de cavaleiro devido à insuficiência de bens. Boa parte da nobreza da época foi impulsionada às Grandes Navegações como forma de controle de sua turbulência e em busca de novos rendimentos.
Como é possível observar, no século XV a figura do cavaleiro em Portugal ainda ocupa um lugar muito importante na sociedade e a busca da salvação permanece como uma grande preocupação dos fiéis. Neste sentido, A Visão de Túndalo no século XV continua a exercer o papel de exemplo de salvação coletiva da sociedade através da salvação individual do cavaleiro.
Um dos motivos de arrependimento do nobre, além do fato de haver vivenciado certas torturas e obtido algumas Glórias de Deus durante a sua Visão, foi que também encontrou muitos dos seus parentes e amigos no Inferno (VT, p. 111).
Um outro elemento característico da religiosidade cristã e mencionado na obra é que os maus são capazes de ver a felicidade dos bons para se sentirem piores com o que perderam; já os bons vêem as penas dos maus para sentirem maior felicidade.
Portanto, fica bastante claro em obras como a Visão de Túndalo o papel doutrinador da Igreja através das narrativas que mostravam os elementos do Paraíso e Inferno no sentido de orientar a conduta dos cristãos e levá-los a adotar medidas capazes de preservar o corpo, evitar as tentações e garantirem no futuro a salvação das almas.
FONTE
Visão de Túndalo. Ed. F. M. Esteves Pereira. Revista Lusitana, 3, 1895, p. 97-120.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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LOUREIRO, Klítia e SCARAMUSSA, Ziza. O Diabo e suas Representações Simbólicas em Ramon Llull e Dante Alighieri (séculos XIII e XIV). In: FIDORA, Alexander e Pastor, Jordi Pardo(Coord.). Expresar lo divino: Lenguaje, arte y mística. Mirabilia 2. Revista de História Antiga e Medieval, 2003, p. 177-192. Disponível na Internet: Mirabilia 2 (2002) http://www.revistamirabilia.com/
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ZIERER, Adriana M.S. Paraíso, Escatologia e Messianismo em Portugal à Época de D. João I. Tese de Doutorado. Niterói: Universidade Federal Fluminense, 2004.
[1] São Patrício (390-461) foi missionário, tendo papel decisivo na introdução do cristianismo na Irlanda. A ele é atribuída a conversão dos irlandeses, mas já está provado que alguns missionários haviam trabalhado antes dele no local, sendo a atuação de Patrício realizada no norte e centro do território. Ver LOYN, Henry R. (Org.) Dicionário da Idade Média. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1990, p. 201.
[2] Sobre a adaptação da narrativa para os tempos atuais associando a Cocanha com São Saruê, um paraíso no nordeste brasileiro contado na literatura de cordel pelo poeta Camilo, cf. CAMÊLO, Júlia Constança P. “Prazer, Juventude e Felicidade na Poesia Popular”. In: Outros Tempos. Revista de História da Universidade Estadual do Maranhão. V. 1, 2º semestre de 2004. http://www.outrostempos.v10.com.br/
[3] A partir de meados do século XIV muitos eram provenientes da cavalaria-vilã. Ibid., pp. 117-118.
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