Semente de Favela: jornalistas e o espaço urbano da Capital Federal nos primeiros anos da República – o caso do Cabeça de Porco (2)
Semente de Favela: jornalistas e o espaço urbano da Capital Federal nos primeiros anos da República – o caso do Cabeça de Porco (parte 2)
Richard Negreiros de Paula
Historiador formado pela Universidade Federal Fluminense; foi bolsista no Núcleo de Pesquisas em História Cultural da UFF; autor da monografia intitulada Semente de Favela: imprensa carioca e moradia popular em fins do XIX – o caso do Cabeça de Porco, orientada pela Profª Drª Martha Abreu . Atualmente é o editorchefe da revista Cantareira – w.historia.uff.br/cantareira.
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Sobre a inserção da opinião do jornalista no seu texto, Renato Ribeiro17 aponta que se partir “do texto e não do [assim chamado] contexto”, tais documentos seriam convertidos apenas em meros efeitos de um dado contexto, “quando muito são reflexos que exprimem tal ou qual aspecto social”, neste sentido, em vez de pensar o que o texto retrata, ou como ele refrata uma realidade ou problema, pensar o que ele concebe. Em outras palavras, busco descobrir quais foram as opiniões dos jornalistas sobre o Cabeça de Porco, sua demolição e, principalmente sobre seus proprietários e moradores.
O jornalista como leitor da cidade e protagonista da história. É sobre estes dois pilares que organizo meus argumentos sobre a atuação do jornalista e do jornal na demolição do Cabeça de Porco. Esclareço que embora um não exista sem o outro, há um limite que separa e regula a ação do jornalista e do jornal como instituição. Ou seja, como dito linhas acima, as opiniões do jornalista estão atreladas aos limites editoriais impostos pelo jornal, e este, ao jornalista - leia-se como sua competência, ética, formação, etc.
Para tentar compreender de que forma os jornais poderiam ter atuado como agentes na demolição do Cabeça de Porco, recorro ao exercício de fazer um breve levantamento de suas publicações precedentes à derrubada, analisando suas opiniões sobre os temas pertinentes a este estudo, como: salubridade pública, remodelação urbana e o papel à ser exercido pela administração municipal.
Entre janeiro e fevereiro de 1893 o Jornal do Brasil, que ainda podia ser considerado como oposição ao governo e ao sistema republicano, elaborou uma série de artigos intitulados: A Tarefa do Prefeito. Neles, o jornal desfiou suas convicções sobre como deveria agir o poder municipal na resolução dos problemas que eram enfrentados na cidade. Cabia ao prefeito a ‘missão’ de “corrigir os erros, os desmandos e a indisciplina”18 que imperavam na administração da cidade.17
O JB alerta que o prefeito deveria respeitar a Constituição da República e a lei que organizava o Distrito Federal. Segundo este, cabia ao prefeito o papel de administrador da cidade, entendido como uma pessoa que assume o cargo de gestor do Distrito Federal sem, no entanto, fazer política. Pois ele seria o responsável por “tornar profícua uma administração para que o que seja precisa ver-se desembaraçada das rugas da burocracia do expediente”. Não é novo este tipo de interpretação de como deveria agir um governante, “tal ordem de idéias iria saturar o ambiente intelectual do país nas décadas seguintes, e emprestar suporte ideológico para a ação ‘saneadora’ dos engenheiros e médicos que passariam a se encastelar e acumular poder na administração pública, especialmente após o golpe militar republicano de 1889”19.
Todavia, “a parte principal da tarefa do prefeito e, com ele, de todo o Conselho Municipal, é sem dúvida a questão da habitalidade”20. Assim expressou o jornalista do JB na primeira linha do A Tarefa do Prefeito de 31 de janeiro de 1893. A principal razão de se empreitarem mudanças no que concerne à questão habitacional, segundo o próprio jornalista, está diretamente ligado à necessidade do Brasil conquistar as “simpathias e bemquerenças” do estrangeiro, pois as capitais seriam as “salas de visitas das nações”.
Com o Rio de Janeiro não havia de ser diferente, chegando a ser comparado com Viena, Berlim, Londres, Nova York e, sobretudo, Paris. Afinal, era forte a idéia de que “esta capital pela sua situação, pela sua importância comercial e política podia ser foco de atração para nacionais e estrangeiros”21. Obviamente o autor não defendeu a vinda de nacionais e estrangeiros pobres, pois a Capital Federal já estava repleta deles, a cidade deveria assim, melhorar para atrair mais investimentos e riquezas internas e externas.
Quanto à massa pobre que reside na cidade, o autor reconheceu a falta de condições para a digna sobrevivência destas pessoas.
“Não só aos abastados devemos atender, e o bem estar das classes apenas remediadas ou mesmo de todo pobre deve merecer atenção e a solicitude dos poderes municipais. Ora, a essas classes, que formam a enorme maioria da nossa população urbana, principalmente não oferece esta capital as condições de conforto e bem estar relativos que deve aqueles poderes empenhar-se em dar-lhes”22.
A constatação acima, nos abre duas chaves de leitura possíveis. A primeira refere-se ao Estado, que deveria atuar mais decididamente na melhoria das condições da classe pobre para mantê-la inserida no centro urbano. A outra leitura possível nos remete à possibilidade da retirada dessas classes pobres para a periferia da cidade, distante do centro.
Dentro do panteão de reivindicações sugeridas pelo autor – alargamento de ruas, rasgamento de avenidas, serviço eficiente de água e esgoto, dentre outras – existe uma em especial, que nos abre uma pista sobre as chaves de leitura descritas acima. Segundo o mesmo texto “os bondes fazem-nos perder um tempo precioso, perda tanto mais sensível quando servindo aos arrabaldes deviam principalmente ser útil aos que fora da cidade procurassem habitações e qualidade de vida mais barata”. Ou seja, cabia ao poder municipal tornar os subúrbios viáveis à moradia da classe pobre, para assim, assegurar maiores possibilidades de se retirar estes pobres do centro da Capital Federal.
O JB também argumentou que o prefeito iria “encontrar prevenidos e levantados contra si mil interesses feridos pela sua decidida resolução de cortar os abusos que, desde muito, deram triste fama à nossa municipalidade”23. Dessa forma, podemos crer que dentre os demais interesses feridos, estão os dos donos dos cortiços.
Outro jornal que também deu início a uma campanha por mudanças no planejamento urbano do Rio de Janeiro foi a Gazeta de Notícias, que no dia 18 de janeiro de 1893, deu início a uma série denominada “Melhoramentos da Cidade”. Tratava-se de colunas publicadas na primeira página, publicadas nos dias 18, 19, 22, 23, e 26 de janeiro de 1893. Todas sem assinatura do autor – exceto a publicada no dia 22 de janeiro, que foi assinada pelo Dr. Sabino Pessoa, representante da City Improvments – e, em geral, eram bem destacadas entre as demais colunas.
Na primeira edição, o autor foi enfático ao afirmar a necessidade do velho ser substituído pelo novo. A cidade com características remanescentes do antigo regime deveria abandonar seu primitivismo e adaptar-se ao novo: a República. “Estas ruas, já que é assim que chamam, são ainda as da primitiva, quando esta capital era ainda um burgo colonial, sem sombra sequer da importância colossal e do extraordinário movimento que o tempo lhe deu”24.
O autor incorporou o argumento higienista ao da necessidade de serem substituídas as características da cidade ligada ao regime anterior com a civilidade oferecida pela “cidade desejada” pelos republicanos. Com isso, ele adjetiva as ruas como “repugnantes” e “hediondas”. Segundo a Gazeta, “fato e fato incontestável é que a nossa opulenta capital oferece, particularmente no seu centro, um aspecto repugnante e hediondo, que não condiz com as nossas pretensões de povo civilizado”.
As referências estrangeiras são amplamente utilizadas, tanto na Gazeta de Notícias quanto no JB, o autor se vale da experiência de outros países para justificar a necessidade de transformação. Berlim, Viena e Paris são novamente citadas como modelos de cidades civilizadas. Esta última um caso especial, pois o autor aconselhou Barata Ribeiro a se espelhar nos atos de Haussmann – “célebre prefeito do Sena” – para modificar a cidade.
Além disso, a Gazeta alerta sobre o perigo de haver mais demora em iniciarem-se as obras, “porque cada dia se estão levantando novas construções custosas em ruas estreitas e forçosamente condenadas; a demora portanto acarretará indenizações cada vez mais onerosas para a municipalidade, e isto é preciso evitar”. Ou seja, o autor lança uma frontal investida contra os princípios liberais vigentes durante o Império, que durante sua permanência enquanto sistema de governo garantiu maiores direitos à propriedade privada.
Desta forma ele defende uma maior intervenção do Estado Republicano no que concerne ao espaço particular dentro da urbe do Distrito Federal.
Quanto ao problema sobre a fonte de onde será extraída a renda necessária para execução das obras, o jornalista da Gazeta crê que pela importância da cidade não faltarão recursos. Porém, se acaso as somas forem insuficientes, ele aponta que “não há mal algum que ela saque um pouco sobre o futuro”. Nesta questão, o exterior é novamente lembrado como exemplo a ser seguido, pois “responderemos aos tíbios, que Haussmann em Paris também encontrou a mesma objeção, e todavia ele venceu, e a França de hoje rende homenagens ao célebre prefeito do Sena”25.
Seguindo em nossa análise, resta-nos avaliar a atuação do Jornal do Commercio, que tinha como característica marcante a sua manifestação de apoio ao governo. Contudo, ao contrário dos outros dois jornais analisados anteriormente, o Jornal do Commercio não criou colunas ou séries de reportagens voltadas para os temas explicitados acima: salubridade pública, remodelação e o papel a ser exercido pela administração municipal. Ou seja, não criou meios para publicar suas opiniões de forma sistemática. Mas, isso não quer dizer que não tenha tornado públicas suas idéias sobre o assunto.
No dia 25 de janeiro de 1893, saiu à circulação sua matéria intitulada “salubridade pública”, que ocupou a metade da coluna do canto direito. Nesta, o Jornal do Commercio, falando em nome de toda a imprensa, e utilizando praticamente os mesmos argumentos do Jornal do Brasil e da Gazeta de Notícias, deixou bem claro seu posicionamento político frente às ações desempenhadas pelo governo.
“A imprensa não põe dúvida que no centro da capital existam grandes focos de infecção; nunca se opôs a medidas, por mais enérgicas que fossem, tendentes a eliminá-las a bem da saúde pública. Pelo contrário, tem sido sempre solícita em chamar a atenção dos poderes competentes para este ponto e dando-lhes todo o apoio que careçam para cabal desempenho de suas tarefas. (...) E nesse empenho encontra a imprensa sempre do seu lado, pronta a apoiá-lo, desde que não saia da trilha traçada pelas leis, que tudo devem prever ”26.
Dessa forma, o Jornal do Commercio, se posicionando como um ‘porta-voz’ de toda a imprensa, expôs seu posicionamento e dos demais jornais em apoiarem as ações governamentais “por mais enérgicas que fossem”, conquanto não extrapolem os limites da lei. Nesta guerra, os jornais aqui analisados haviam escolhido o seu lado. Foi o lado do governo.
Enquanto os governantes elaboravam meios para lhes proporcionarem possibilidades de ações mais enérgicas, a imprensa da época, transmissora de uma opinião que encarnava o papel de visão legítima e, que funcionou como elemento de arregimentação de opinião pública, reivindicou ações imediatas para modificações do ambiente urbano. De forma geral, os jornais analisados leram a cidade como possuidora de uma arquitetura não compatível com a “cidade desejo” da República, onde quase sempre lançavam mão do arsenal ideológico dos higienistas como base para suas argumentações, vislumbrando cidades – bem como seus administradores - do exterior, principalmente Paris, como exemplos de cidade ideal.
O Cabeça de Porco, maior cortiço, possuidor de todos os vícios veementemente combatidos, antítese da forma de morar baseada na higiene e na disciplina, constituiu-se marcadamente como um símbolo do que deveria ser eliminado e modificado. Exemplo concreto do contra-senso que existia entre a cidade real e a cidade desejada pelos jornais e homens do governo.
Numa primeira leitura das fontes, temos a impressão de que a ação do governo estava sendo executada pelo bem da salubridade coletiva, afinal, não foram poucas as vezes em que o cortiço foi denominado de “foco de infecção”, cujas super habitadas “casinhas sem ar nem luz” exalavam “miasmas mortíferos”. Afinal, foi a própria Inspetoria de Higiene a responsável pelo aval da demolição do cortiço.
Porém, como quase tudo na História, esta idéia deve ser relativizada. As intenções pela demolição iam muito além da vontade ‘puramente técnica’ de sanear a cidade, pois Barata Ribeiro era um professor da Faculdade de Medicina do Rio de Janeiro, cuja tese de doutoramento intitulava-se “Quais as medidas necessárias que devem ser aconselhadas para impedir o desenvolvimento e propagação da febre amarela na cidade do Rio de Janeiro”, onde concluía que o único destino a ser dado aos cortiços era a demolição, devemos voltar nossas atenções para o fato de que os jornais deixaram transparecer os ganhos políticos que seriam obtidos com a vitória sobre o Cabeça de Porco.
Podemos perceber, mesmo considerando que seja característica marcante do campo jornalístico se constituir como um lugar de relações de força, que os três jornais foram unânimes quanto às razões pelas quais pediram ações por parte do governo, pois os três se mostraram diante de uma cidade insalubre e deficiente em atender as demandas geradas pela República. Além dessas exigências, tanto o JB quanto a Gazeta de Notícias e o Jornal do Commercio, que de acordo com as conclusões de Werneck Sodré eram marcadamente diferentes em suas linhas editoriais, buscaram, de maneira bastante parecida, sensibilizar seus leitores quanto as necessidades de se empreender tais transformações no espaço urbano do Rio de Janeiro.
Se quanto às razões sobre as transformações no espaço urbano, houve, de certa forma, unanimidade entre os jornalistas, o mesmo não pode ser afirmado quando se trata das opiniões destes sobre a força do governo. Por exemplo, no dia 26 de janeiro de 1893, poucas horas antes de se executar a demolição do célebre cortiço, o Jornal do Brasil publicou nota sobre o assunto. Nesta, o autor punha em xeque a realização das intenções do prefeito, pois “não [crê] na vitalidade das administrações que pretendem esmagar esta cabeça de porco, mais forte, mais escarninha que a cabeça da serpente. Mais uma vez o governo, eterno, representado nos seus representantes efêmeros, pretendeu decepar esta cabeça suinamente escandalosa. Mal formulava o desejo, sucumbia, em ânsias mortais o representante da autoridade (...) esta é a cabeça que nem a República pode decepar [grifos meus]”27.
Suas suspeitas da incapacidade de atuação do governo frente à força do Cabeça de Porco não eram infundadas. Pois não foram poucas as tentativas dos governos em demolir o cortiço. Todas sem êxito. Por outro lado, o Jornal do Commercio, devotando seu apoio ao governo republicano do Distrito Federal, no dia 26 de janeiro de 1893 noticiou que “não podemos deixar de reconhecer a atividade que tem desenvolvido o Dr. Barata Ribeiro no empenho de melhorar esta cidade; mas S. Ex. não se deve arreceiar da imprensa como obstáculo desse desiteratum”28.
Mesmo com esta discrepância quanto a confiança na competência do governo, podemos verificar a ocorrência de mais uma unanimidade na opinião dos três jornais analisados, e esta era a idéia que talvez buscavam passar aos seus leitores. Segundo eles, o cortiço gracejava com a ordem pública, não levava a sério os interesses da coletividade. Isto lhe conferia o caráter de ser prejudicial a todos, levando crer que sua extinção fosse imprescindível, pois várias foram as vezes que ele “zombou da administração pública (...)”29.
Revista Cantareira - UFF
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