Revota da Chibata - Os marinheiros que resistiram
Os marinheiros que resistiram
Há cem anos um marujo comandou a revolta que aboliu o castigo das chibatas
CECILIA PRADA
Revista Problemas Brasileiros
Há cem anos um marujo comandou a revolta que aboliu o castigo das chibatas
CECILIA PRADA
“Naquela noite o clarim não pediria silêncio, mas sim combate.” A noite era a de 22 de novembro de 1910, e a frase é do marinheiro de primeira classe João Cândido Felisberto, único marujo no mundo que conseguiu comandar uma esquadra. Ele foi o líder de uma revolta que em cinco dias somente mudou a estrutura da marinha de guerra do Brasil, abolindo os castigos corporais e exigindo que os marinheiros fossem tratados como gente – “um homem que violentou a história”, na definição de um jornalista da época, Gilberto Amado. O movimento, cujo centenário comemoramos neste ano, foi até 1959 conhecido simplesmente como “A Revolta dos Marinheiros” – ano em que foi rebatizado como “A Revolta da Chibata” pelo jornalista e escritor Edmar Morel, ao lançar, com esse título, a mais importante obra escrita até hoje sobre o histórico episódio. Entre o povo, João Cândido passaria a ser conhecido como “o Almirante Negro” – o único de toda a nossa história naval. Uma figura legendária, lembrada até hoje na música O Mestre-Sala dos Mares, de João Bosco e Aldir Blanc: “Salve o Navegante Negro,/ Que tem por monumento/ As pedras pisadas do cais”.
Era uma noite de grandes festas de gala, a de 22 de novembro – o marechal Hermes da Fonseca, empossado presidente da República no dia 15, após derrotar em acirrada campanha seu oponente, o senador Ruy Barbosa, ainda tinha como única preocupação esgotar os eventos sociais em sua homenagem, jantares, espetáculos, recepções. Enquanto a bordo das belonaves estrangeiras fundeadas na baía da Guanabara, portuguesas e americanas, o oficialato recebia com banquetes os colegas brasileiros, o próprio presidente, acompanhado de todo o seu ministério, comparecia a uma deslumbrante recepção que lhe fora oferecida no Clube da Tijuca e entregava-se ao prazer de ouvir a ópera Tannhäuser, de Wagner. Um tiro de canhão subitamente cortou seu enlevo, e o de toda a cidade, seguido cinco minutos depois de outro, que deixaria vidraças quebradas, em Copacabana e no centro. “Há uma revolta na marinha”, foi o que se espalhou logo entre a população, trazendo de volta o histórico pavor de ser bombardeada do mar.
Várias vezes, desde sua fundação em 1565, o Rio de Janeiro correra esse risco. Basta lembrar que os corsários franceses Jean-François Duclerc e René Duguay-Trouin, apoiados pelo rei da França, tentariam, em 1710 e 1711 respectivamente, a aventura de invadir o Rio. O segundo deles chegou a instalar-se na cidade e pilhá-la durante dois meses, até o governador Francisco de Castro ser obrigado a negociar sua retirada mediante o pagamento de vultoso resgate em ouro. Em 1893/94 a Revolta da Armada chefiada por Custódio de Melo, contra o governo do marechal Floriano Peixoto, manteve pesado tiroteio com a artilharia dos fortes, em poder do exército. Houve uma sangrenta batalha na ponta da Armação, em Niterói, e em 1894 a capital do estado do Rio teve de ser transferida, até 1903, para Petrópolis.
Punidos os líderes da Revolta da Armada com rigor, o Marechal de Ferro tratou logo, porém, de apaziguar o brio da classe com a reestruturação da frota de guerra, sucateada após a Guerra do Paraguai. Em uma transação comercial de grande vulto, muito onerosa para o Tesouro Nacional, encomendou no exterior a chamada “frota de papel” – que de papel nada tinha (a ironia era com o papel-moeda) –, e contaria dali por diante com navios de vários portes, entre eles os maiores dreadnoughts (encouraçados) do mundo, o Minas Gerais e o São Paulo. Manobra surpreendentemente diplomática em governo de tão férreo militar, convenhamos – repetida também com muito êxito pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1956, quando comprou, sob críticas acerbas, um caríssimo porta-aviões britânico (rebatizado justamente de Minas Gerais), um “brinquedinho de luxo” para mais uma vez calar a boca descontente dos oficiais linha-dura da marinha e da aeronáutica.
Naquela noite de novembro de 1910, podemos imaginar como teriam se levantado às pressas de seus banquetes e espetáculos os ministros, militares, parlamentares, diplomatas, e todas as suas emplumadas consortes, entreolhando-se desconfiados, estranhando o que pensavam ser mais uma vez o descontentamento eterno de oficiais da marinha. Então o orgulho da corporação ainda não estava satisfeito com o fato de o Brasil ter-se tornado a terceira potência naval do mundo?
Não podiam nem imaginar o outro espetáculo, de feitio muito mais popular, que acabara de ser encenado na baía da Guanabara: os quatro colossos de ferro, Minas Gerais, São Paulo, Deodoro e Bahia, posicionados em desafio perante a cidade, ofuscando-a com seus holofotes, atroando-a com intermitentes uivos de suas sirenes, anunciando que após breve luta em que alguns oficiais e o comandante Batista das Neves, do nosso maior encouraçado, tinham sido mortos, 2.379 marinheiros haviam decidido pôr um fim na situação de aviltamento em que viviam.
O movimento estava previsto para o dia 24 ou 25, mas teve um estopim inesperado: ao raiar da madrugada anterior, o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes recebera 250 chibatadas perante a tripulação formada no convés do Minas Gerais, ao rufar dos tambores que abafavam seus gritos. Em meio ao castigo, desmaiou. Mas a punição foi executada até o fim.
Tradições aviltantes
A prática dos castigos corporais e até mesmo da pena de morte era prevista nos estatutos da marinha de guerra das potências europeias e foi praticada até o final do século 19. Em 1910, ela só persistia na marinha brasileira. As terríveis condições de vida dos marujos foram expostas na literatura e no cinema – a obra-prima realizada em 1925 por Eisenstein, O Encouraçado Potemkin, retrata um episódio ocorrido em 1905 na Rússia czarista, semelhante em tudo à rebelião brasileira de 1910.
Na literatura, o tema aparece em obras notáveis, como as do polonês naturalizado britânico Joseph Conrad (1857-1924), e em Billy Budd, do americano Herman Melville (1819-1891), que foi também marinheiro. Por ter matado, acidentalmente, um contramestre, o belo jovem Billy Budd, da marinha real inglesa, é condenado e enforcado no próprio navio. A obra retrata os problemas de tensão emocional, violência e homossexualismo habituais na vida marítima, e o navio é tomado como um símbolo da sociedade da época e da própria condição humana – já foi adaptada para o cinema e o teatro, e tornou-se tema de uma ópera de Benjamin Britten. No Brasil, o romancista Adolfo Caminha (1867-1897), um dos principais autores do Naturalismo e ele próprio oficial da marinha, publicou na ocasião da revolta dos marinheiros artigos e um conto, “A Chibata”, que lhe valeram críticas ferozes e punições. No romance Bom Crioulo (1895), retrata um marinheiro negro a quem a paixão por um belo grumete acaba levando ao crime.
Em todas as nações, foi sempre na marinha que se revelou a maior diferenciação entre classes sociais – na brasileira, a um oficialato exclusivamente composto por brancos provindos das famílias mais aristocráticas, garbosos rapazes em uniformes impecáveis, bem nutridos e formados em escolas altamente especializadas, correspondia uma multidão de praças broncos, recrutados à força, na grande maioria negros ou mulatos, sujeitos a maus-tratos, mal alimentados, cevados no ódio de seus superiores, impossibilitados de fundar sua própria família e melhorar de vida.
No Brasil de 1910, o recrutamento baseava-se ainda no velho sistema do tempo do Império, o de uma verdadeira caçada entre as populações pobres, principalmente no nordeste do país, “a cargo de desumanas criaturas” que amontoavam homens como gado nos porões de navios equiparados aos dos “negreiros”, mal alimentados e sem condições de higiene. Em consequência, uma porcentagem alta deles morria até antes de chegar ao Rio de Janeiro – como descrevia o historiador cearense Ismael Pordeus já em 1825, pouco tempo depois de criada nossa marinha, sob o comando do almirante escocês lorde Cochrane. Tendo participado das lutas de independência, ele recebeu o título de marquês do Maranhão e aqui permaneceu por dois anos, estruturando a instituição pelos moldes britânicos. Cochrane recomendava que se recrutassem de preferência rapazes de 14 a 20 anos, mas autorizava o rebaixamento da idade mínima para 12, ou até mesmo 10 anos, “em caso de necessidade”. Numerosos eram também os embarques forçados de pais de família, e até de mais velhos. O tempo mínimo de serviço era de 15 anos, sendo as baixas extremamente dificultadas mesmo ultrapassado o prazo, devido à carência de praças.
João Cândido, um negro nascido em Encruzilhada do Sul (RS) em 1880 ou 1882 – as fontes divergem quanto à data –, fora uma exceção à regra: amava sua profissão e fora estimulado a alistar-se na marinha aos 13 anos por um oficial conhecido de sua família e seu protetor, o então capitão de fragata Alexandrino de Alencar, que mais tarde, como almirante, seria ministro da Marinha por três períodos. Tinha uma excelente folha de serviço, com promoções por mérito até o posto de praça de primeira, e integrou o grupo de pessoal escolhido para estagiar na Inglaterra durante a construção do Minas Gerais, para aprender seu manejo.
Quanto à chibata, não era um relho comum, desses que abusivamente se usam com animais. Era um requinte da maldade humana: uma corda mediana de linho atravessada por pequenas agulhas de aço das mais resistentes e colocada de molho para que inchasse, pois assim as agulhas nela se entranhavam e somente suas pontas apareciam. As 25 chicotadas estabelecidas como castigo máximo no regulamento naval costumavam ter seu número aumentado à vontade, chegando a 250 como no caso já descrito de Marcelino Menezes, que teve as carnes retalhadas – em A Revolta da Chibata, Morel transcreve depoimento ao Congresso do deputado federal comandante da marinha José Carlos de Carvalho, encarregado na época de averiguar como se processara a rebelião no Minas Gerais: “Mandaram vir à minha presença um praça que tinha sido castigado de véspera. Examinei esse praça e trouxe-o comigo para terra, para ser recolhido ao Hospital da Marinha. Senhor presidente, as costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.
No dia seguinte à proclamação da República, um decreto abolira a aplicação de castigos corporais, permitida durante o Império. Mas novo decreto, logo em abril de 1890, restabeleceu-os e criou uma Companhia Correcional cujo objetivo seria “submeter a um regime de disciplina especial os praças que forem de má conduta habitual e punir faltas em casos que não exijam conselho de guerra”. As faltas “leves” seriam punidas com solitária por três dias, a pão e água, as “leves repetidas”, da mesma forma, por seis dias, e as faltas “graves” com 25 chibatadas. O decreto foi assinado pelo ministro da Marinha, Eduardo Wandenkolk, cuja opinião pessoal era que “mais valia a chibatada como castigo ao réu confesso do que os maçantes e delongados conselhos de guerra”. E referendado – segundo documentação idônea levantada por Morel – pelo próprio Ruy Barbosa, então ministro da Fazenda, que em 1910, como senador, se arvoraria em paladino dos rebeldes e visceralmente contrário à “aviltante prática da chibata”.
Anistia e traição
Foram aqueles dias de grande tensão e de medidas urgentes: os canhões dos navios rebelados mantinham-se em riste, sob uma incômoda bandeira vermelha hasteada, apontados para a linda cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mas João Cândido, que se tornou um herói popular, conhecido como “o homem que não quis bombardear o Rio de Janeiro”, soube negociar com tranquilidade e sensatez com o governo e acabou por conseguir seus objetivos – a abolição da chibata e a anistia total para os revoltosos. Isso aconteceu logo no dia 25 de novembro, por um decreto do presidente da República, obtido pela pressão de congressistas que haviam inclusive usado de alguns artifícios para ganhar o apoio de quem realmente mandava no país, o cacique político Pinheiro Machado, que dirigia o Partido Republicano Conservador.
Às 13 horas do dia 26, João Cândido ordenou a entrada na baía da pequena frota que comandava e que trazia ainda a bandeira vermelha arvorada. A um sinal do Minas, as bandeiras foram arriadas e substituídas pelo pavilhão nacional, em funeral – um clarim executou o toque de silêncio e, enquanto João Cândido fazia uma ligeira oração, foram prestadas homenagens aos mortos da insurreição, de ambos os lados. No dia 27, os novos comandantes designados assumiram seus postos, na mais completa ordem, nos quatro navios.
No dia seguinte, 28 de novembro, o governo fraudava já o acordo da anistia, com outro decreto que forçava a baixa da marinha, por exclusão, “dos praças cuja permanência se torna inconveniente à disciplina”. Alarmados, os marinheiros formam uma comissão para falar com os políticos que na véspera os apoiavam – os senadores Ruy Barbosa e Pinheiro Machado não os recebem. Ingênuo, João Cândido insistia para que seus companheiros se mantivessem tranquilos: “Fomos anistiados, somos cidadãos livres...”
Na madrugada de 4 de dezembro foram presos 22 marujos acusados de conspiradores. Na noite de 9 para 10 de dezembro os fuzileiros do Batalhão Naval, sediado na ilha das Cobras, sublevaram-se, mas sem ter ligação alguma com a revolta de João Cândido. Foram dominados, sofrendo um grande massacre, empreendido tanto por tropas legalistas como pelas próprias belonaves que 18 dias antes estavam rebeladas – a bordo do Minas Gerais tudo se mantinha em ordem, servindo João Cândido de elemento de ligação entre o oficialato e os praças. O “Diário de Notícias” informava que o forte da ilha das Cobras se transformara em um monte de ruínas, sepultando centenas de cadáveres – dos 600 soldados da guarnição só restavam 60. O restante do contingente morrera ou fugira. O governo pressionava a Câmara para impor o estado de sítio.
No próprio dia 10 João Cândido foi preso, com mais 17 marinheiros. No dia 24 foram todos lançados nas masmorras da ilha das Cobras, encaminhados por um ofício do Quartel-General da Marinha, que recomendava fossem postos “em prisão segura e separados dos demais, por serem elementos perigosos”. O grupo foi atirado em um minúsculo compartimento denominado “Prisão Solitária”, que, abafado e terrivelmente quente, não dava aos prisioneiros nem condições de respirar; além disso, os soldados jogavam de quando em quando cal virgem no local, a pretexto de desinfecção. Dentro de pouco tempo estavam todos mortos. Somente dois deles conseguiriam sobreviver: João Cândido e outro marujo, apelidado Pau da Lira. A cena dantesca da morte dos companheiros, forçados a beber a própria urina por causa da sede, lutando inutilmente para não sufocar com a poeira cáustica da cal, foi um pesadelo constante pelo resto da vida de João Cândido – que viveria até 1969. Ele só conseguiu sobreviver na masmorra por encontrar um orifício em um encanamento, ao qual se colou para respirar.
Mais um episódio da Rebelião da Chibata ocorreu na noite de Natal de 1910: no navio Satélite, do Loide Brasileiro, que zarpou do porto do Rio de Janeiro com uma carga de 293 detentos deportados para trabalhos forçados nos terríveis seringais da Amazônia, de onde quase ninguém conseguia voltar vivo, o governo incluíra muitos rebeldes tanto dos vasos de guerra como do Batalhão Naval. Nove deles, cujos nomes haviam sido previamente assinalados em vermelho, foram sumariamente fuzilados pela tripulação, e seus corpos lançados ao mar. Outros tombariam também assassinados mais tarde, envoltos no impenetrável mistério cúmplice das selvas.
Quanto a João Cândido, louco e tuberculoso, foi encaminhado ao Hospital dos Alienados da Praia Vermelha, em abril de 1911 – onde contou com a atenção especial do diretor da instituição, o pioneiro da psiquiatria brasileira professor Juliano Moreira. Durante o tratamento começou a ditar suas memórias a um companheiro do asilo. Mas quando, após três meses, um laudo dos médicos deu-o como indivíduo calmo, de memória bem conservada, perfeita faculdade de julgamento e consciente de seu estado, o governo resolveu devolvê-lo à prisão, onde permaneceu até novembro de 1912 – quando por fim foi submetido a um conselho de guerra que o absolveu e libertou.
Autor perseguido
Jornalista cearense que se destacou na reportagem investigativa e em denúncias de impacto, Edmar Morel (1912-1989) atuou em vários órgãos de imprensa dos Diários Associados e também no “Jornal do Brasil” e em “O Globo”. Foi um dos fundadores da “Última Hora” e durante quatro décadas foi dirigente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Recebeu vários prêmios importantes de jornalismo. Sofreu implacável perseguição da marinha por seu livro A Revolta da Chibata, e após o golpe de 1964 teve seus direitos políticos cassados. Foi impedido de continuar a trabalhar na grande imprensa e exonerado do cargo público concursado que exercia.
Era uma noite de grandes festas de gala, a de 22 de novembro – o marechal Hermes da Fonseca, empossado presidente da República no dia 15, após derrotar em acirrada campanha seu oponente, o senador Ruy Barbosa, ainda tinha como única preocupação esgotar os eventos sociais em sua homenagem, jantares, espetáculos, recepções. Enquanto a bordo das belonaves estrangeiras fundeadas na baía da Guanabara, portuguesas e americanas, o oficialato recebia com banquetes os colegas brasileiros, o próprio presidente, acompanhado de todo o seu ministério, comparecia a uma deslumbrante recepção que lhe fora oferecida no Clube da Tijuca e entregava-se ao prazer de ouvir a ópera Tannhäuser, de Wagner. Um tiro de canhão subitamente cortou seu enlevo, e o de toda a cidade, seguido cinco minutos depois de outro, que deixaria vidraças quebradas, em Copacabana e no centro. “Há uma revolta na marinha”, foi o que se espalhou logo entre a população, trazendo de volta o histórico pavor de ser bombardeada do mar.
Várias vezes, desde sua fundação em 1565, o Rio de Janeiro correra esse risco. Basta lembrar que os corsários franceses Jean-François Duclerc e René Duguay-Trouin, apoiados pelo rei da França, tentariam, em 1710 e 1711 respectivamente, a aventura de invadir o Rio. O segundo deles chegou a instalar-se na cidade e pilhá-la durante dois meses, até o governador Francisco de Castro ser obrigado a negociar sua retirada mediante o pagamento de vultoso resgate em ouro. Em 1893/94 a Revolta da Armada chefiada por Custódio de Melo, contra o governo do marechal Floriano Peixoto, manteve pesado tiroteio com a artilharia dos fortes, em poder do exército. Houve uma sangrenta batalha na ponta da Armação, em Niterói, e em 1894 a capital do estado do Rio teve de ser transferida, até 1903, para Petrópolis.
Punidos os líderes da Revolta da Armada com rigor, o Marechal de Ferro tratou logo, porém, de apaziguar o brio da classe com a reestruturação da frota de guerra, sucateada após a Guerra do Paraguai. Em uma transação comercial de grande vulto, muito onerosa para o Tesouro Nacional, encomendou no exterior a chamada “frota de papel” – que de papel nada tinha (a ironia era com o papel-moeda) –, e contaria dali por diante com navios de vários portes, entre eles os maiores dreadnoughts (encouraçados) do mundo, o Minas Gerais e o São Paulo. Manobra surpreendentemente diplomática em governo de tão férreo militar, convenhamos – repetida também com muito êxito pelo presidente Juscelino Kubitschek em 1956, quando comprou, sob críticas acerbas, um caríssimo porta-aviões britânico (rebatizado justamente de Minas Gerais), um “brinquedinho de luxo” para mais uma vez calar a boca descontente dos oficiais linha-dura da marinha e da aeronáutica.
Naquela noite de novembro de 1910, podemos imaginar como teriam se levantado às pressas de seus banquetes e espetáculos os ministros, militares, parlamentares, diplomatas, e todas as suas emplumadas consortes, entreolhando-se desconfiados, estranhando o que pensavam ser mais uma vez o descontentamento eterno de oficiais da marinha. Então o orgulho da corporação ainda não estava satisfeito com o fato de o Brasil ter-se tornado a terceira potência naval do mundo?
Não podiam nem imaginar o outro espetáculo, de feitio muito mais popular, que acabara de ser encenado na baía da Guanabara: os quatro colossos de ferro, Minas Gerais, São Paulo, Deodoro e Bahia, posicionados em desafio perante a cidade, ofuscando-a com seus holofotes, atroando-a com intermitentes uivos de suas sirenes, anunciando que após breve luta em que alguns oficiais e o comandante Batista das Neves, do nosso maior encouraçado, tinham sido mortos, 2.379 marinheiros haviam decidido pôr um fim na situação de aviltamento em que viviam.
O movimento estava previsto para o dia 24 ou 25, mas teve um estopim inesperado: ao raiar da madrugada anterior, o marinheiro Marcelino Rodrigues Menezes recebera 250 chibatadas perante a tripulação formada no convés do Minas Gerais, ao rufar dos tambores que abafavam seus gritos. Em meio ao castigo, desmaiou. Mas a punição foi executada até o fim.
Tradições aviltantes
A prática dos castigos corporais e até mesmo da pena de morte era prevista nos estatutos da marinha de guerra das potências europeias e foi praticada até o final do século 19. Em 1910, ela só persistia na marinha brasileira. As terríveis condições de vida dos marujos foram expostas na literatura e no cinema – a obra-prima realizada em 1925 por Eisenstein, O Encouraçado Potemkin, retrata um episódio ocorrido em 1905 na Rússia czarista, semelhante em tudo à rebelião brasileira de 1910.
Na literatura, o tema aparece em obras notáveis, como as do polonês naturalizado britânico Joseph Conrad (1857-1924), e em Billy Budd, do americano Herman Melville (1819-1891), que foi também marinheiro. Por ter matado, acidentalmente, um contramestre, o belo jovem Billy Budd, da marinha real inglesa, é condenado e enforcado no próprio navio. A obra retrata os problemas de tensão emocional, violência e homossexualismo habituais na vida marítima, e o navio é tomado como um símbolo da sociedade da época e da própria condição humana – já foi adaptada para o cinema e o teatro, e tornou-se tema de uma ópera de Benjamin Britten. No Brasil, o romancista Adolfo Caminha (1867-1897), um dos principais autores do Naturalismo e ele próprio oficial da marinha, publicou na ocasião da revolta dos marinheiros artigos e um conto, “A Chibata”, que lhe valeram críticas ferozes e punições. No romance Bom Crioulo (1895), retrata um marinheiro negro a quem a paixão por um belo grumete acaba levando ao crime.
Em todas as nações, foi sempre na marinha que se revelou a maior diferenciação entre classes sociais – na brasileira, a um oficialato exclusivamente composto por brancos provindos das famílias mais aristocráticas, garbosos rapazes em uniformes impecáveis, bem nutridos e formados em escolas altamente especializadas, correspondia uma multidão de praças broncos, recrutados à força, na grande maioria negros ou mulatos, sujeitos a maus-tratos, mal alimentados, cevados no ódio de seus superiores, impossibilitados de fundar sua própria família e melhorar de vida.
No Brasil de 1910, o recrutamento baseava-se ainda no velho sistema do tempo do Império, o de uma verdadeira caçada entre as populações pobres, principalmente no nordeste do país, “a cargo de desumanas criaturas” que amontoavam homens como gado nos porões de navios equiparados aos dos “negreiros”, mal alimentados e sem condições de higiene. Em consequência, uma porcentagem alta deles morria até antes de chegar ao Rio de Janeiro – como descrevia o historiador cearense Ismael Pordeus já em 1825, pouco tempo depois de criada nossa marinha, sob o comando do almirante escocês lorde Cochrane. Tendo participado das lutas de independência, ele recebeu o título de marquês do Maranhão e aqui permaneceu por dois anos, estruturando a instituição pelos moldes britânicos. Cochrane recomendava que se recrutassem de preferência rapazes de 14 a 20 anos, mas autorizava o rebaixamento da idade mínima para 12, ou até mesmo 10 anos, “em caso de necessidade”. Numerosos eram também os embarques forçados de pais de família, e até de mais velhos. O tempo mínimo de serviço era de 15 anos, sendo as baixas extremamente dificultadas mesmo ultrapassado o prazo, devido à carência de praças.
João Cândido, um negro nascido em Encruzilhada do Sul (RS) em 1880 ou 1882 – as fontes divergem quanto à data –, fora uma exceção à regra: amava sua profissão e fora estimulado a alistar-se na marinha aos 13 anos por um oficial conhecido de sua família e seu protetor, o então capitão de fragata Alexandrino de Alencar, que mais tarde, como almirante, seria ministro da Marinha por três períodos. Tinha uma excelente folha de serviço, com promoções por mérito até o posto de praça de primeira, e integrou o grupo de pessoal escolhido para estagiar na Inglaterra durante a construção do Minas Gerais, para aprender seu manejo.
Quanto à chibata, não era um relho comum, desses que abusivamente se usam com animais. Era um requinte da maldade humana: uma corda mediana de linho atravessada por pequenas agulhas de aço das mais resistentes e colocada de molho para que inchasse, pois assim as agulhas nela se entranhavam e somente suas pontas apareciam. As 25 chicotadas estabelecidas como castigo máximo no regulamento naval costumavam ter seu número aumentado à vontade, chegando a 250 como no caso já descrito de Marcelino Menezes, que teve as carnes retalhadas – em A Revolta da Chibata, Morel transcreve depoimento ao Congresso do deputado federal comandante da marinha José Carlos de Carvalho, encarregado na época de averiguar como se processara a rebelião no Minas Gerais: “Mandaram vir à minha presença um praça que tinha sido castigado de véspera. Examinei esse praça e trouxe-o comigo para terra, para ser recolhido ao Hospital da Marinha. Senhor presidente, as costas desse marinheiro assemelhavam-se a uma tainha lanhada para ser salgada”.
No dia seguinte à proclamação da República, um decreto abolira a aplicação de castigos corporais, permitida durante o Império. Mas novo decreto, logo em abril de 1890, restabeleceu-os e criou uma Companhia Correcional cujo objetivo seria “submeter a um regime de disciplina especial os praças que forem de má conduta habitual e punir faltas em casos que não exijam conselho de guerra”. As faltas “leves” seriam punidas com solitária por três dias, a pão e água, as “leves repetidas”, da mesma forma, por seis dias, e as faltas “graves” com 25 chibatadas. O decreto foi assinado pelo ministro da Marinha, Eduardo Wandenkolk, cuja opinião pessoal era que “mais valia a chibatada como castigo ao réu confesso do que os maçantes e delongados conselhos de guerra”. E referendado – segundo documentação idônea levantada por Morel – pelo próprio Ruy Barbosa, então ministro da Fazenda, que em 1910, como senador, se arvoraria em paladino dos rebeldes e visceralmente contrário à “aviltante prática da chibata”.
Anistia e traição
Foram aqueles dias de grande tensão e de medidas urgentes: os canhões dos navios rebelados mantinham-se em riste, sob uma incômoda bandeira vermelha hasteada, apontados para a linda cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Mas João Cândido, que se tornou um herói popular, conhecido como “o homem que não quis bombardear o Rio de Janeiro”, soube negociar com tranquilidade e sensatez com o governo e acabou por conseguir seus objetivos – a abolição da chibata e a anistia total para os revoltosos. Isso aconteceu logo no dia 25 de novembro, por um decreto do presidente da República, obtido pela pressão de congressistas que haviam inclusive usado de alguns artifícios para ganhar o apoio de quem realmente mandava no país, o cacique político Pinheiro Machado, que dirigia o Partido Republicano Conservador.
Às 13 horas do dia 26, João Cândido ordenou a entrada na baía da pequena frota que comandava e que trazia ainda a bandeira vermelha arvorada. A um sinal do Minas, as bandeiras foram arriadas e substituídas pelo pavilhão nacional, em funeral – um clarim executou o toque de silêncio e, enquanto João Cândido fazia uma ligeira oração, foram prestadas homenagens aos mortos da insurreição, de ambos os lados. No dia 27, os novos comandantes designados assumiram seus postos, na mais completa ordem, nos quatro navios.
No dia seguinte, 28 de novembro, o governo fraudava já o acordo da anistia, com outro decreto que forçava a baixa da marinha, por exclusão, “dos praças cuja permanência se torna inconveniente à disciplina”. Alarmados, os marinheiros formam uma comissão para falar com os políticos que na véspera os apoiavam – os senadores Ruy Barbosa e Pinheiro Machado não os recebem. Ingênuo, João Cândido insistia para que seus companheiros se mantivessem tranquilos: “Fomos anistiados, somos cidadãos livres...”
Na madrugada de 4 de dezembro foram presos 22 marujos acusados de conspiradores. Na noite de 9 para 10 de dezembro os fuzileiros do Batalhão Naval, sediado na ilha das Cobras, sublevaram-se, mas sem ter ligação alguma com a revolta de João Cândido. Foram dominados, sofrendo um grande massacre, empreendido tanto por tropas legalistas como pelas próprias belonaves que 18 dias antes estavam rebeladas – a bordo do Minas Gerais tudo se mantinha em ordem, servindo João Cândido de elemento de ligação entre o oficialato e os praças. O “Diário de Notícias” informava que o forte da ilha das Cobras se transformara em um monte de ruínas, sepultando centenas de cadáveres – dos 600 soldados da guarnição só restavam 60. O restante do contingente morrera ou fugira. O governo pressionava a Câmara para impor o estado de sítio.
No próprio dia 10 João Cândido foi preso, com mais 17 marinheiros. No dia 24 foram todos lançados nas masmorras da ilha das Cobras, encaminhados por um ofício do Quartel-General da Marinha, que recomendava fossem postos “em prisão segura e separados dos demais, por serem elementos perigosos”. O grupo foi atirado em um minúsculo compartimento denominado “Prisão Solitária”, que, abafado e terrivelmente quente, não dava aos prisioneiros nem condições de respirar; além disso, os soldados jogavam de quando em quando cal virgem no local, a pretexto de desinfecção. Dentro de pouco tempo estavam todos mortos. Somente dois deles conseguiriam sobreviver: João Cândido e outro marujo, apelidado Pau da Lira. A cena dantesca da morte dos companheiros, forçados a beber a própria urina por causa da sede, lutando inutilmente para não sufocar com a poeira cáustica da cal, foi um pesadelo constante pelo resto da vida de João Cândido – que viveria até 1969. Ele só conseguiu sobreviver na masmorra por encontrar um orifício em um encanamento, ao qual se colou para respirar.
Mais um episódio da Rebelião da Chibata ocorreu na noite de Natal de 1910: no navio Satélite, do Loide Brasileiro, que zarpou do porto do Rio de Janeiro com uma carga de 293 detentos deportados para trabalhos forçados nos terríveis seringais da Amazônia, de onde quase ninguém conseguia voltar vivo, o governo incluíra muitos rebeldes tanto dos vasos de guerra como do Batalhão Naval. Nove deles, cujos nomes haviam sido previamente assinalados em vermelho, foram sumariamente fuzilados pela tripulação, e seus corpos lançados ao mar. Outros tombariam também assassinados mais tarde, envoltos no impenetrável mistério cúmplice das selvas.
Quanto a João Cândido, louco e tuberculoso, foi encaminhado ao Hospital dos Alienados da Praia Vermelha, em abril de 1911 – onde contou com a atenção especial do diretor da instituição, o pioneiro da psiquiatria brasileira professor Juliano Moreira. Durante o tratamento começou a ditar suas memórias a um companheiro do asilo. Mas quando, após três meses, um laudo dos médicos deu-o como indivíduo calmo, de memória bem conservada, perfeita faculdade de julgamento e consciente de seu estado, o governo resolveu devolvê-lo à prisão, onde permaneceu até novembro de 1912 – quando por fim foi submetido a um conselho de guerra que o absolveu e libertou.
Autor perseguido
Jornalista cearense que se destacou na reportagem investigativa e em denúncias de impacto, Edmar Morel (1912-1989) atuou em vários órgãos de imprensa dos Diários Associados e também no “Jornal do Brasil” e em “O Globo”. Foi um dos fundadores da “Última Hora” e durante quatro décadas foi dirigente da Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Recebeu vários prêmios importantes de jornalismo. Sofreu implacável perseguição da marinha por seu livro A Revolta da Chibata, e após o golpe de 1964 teve seus direitos políticos cassados. Foi impedido de continuar a trabalhar na grande imprensa e exonerado do cargo público concursado que exercia.
Revista Problemas Brasileiros
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