terça-feira, 12 de outubro de 2010

Imagens turísticas do rio de Janeiro: memória, representação, identidade e sedução

Isabella Perrotta
PPHPBC/Cpdoc/FGV
Rio de Janeiro/RJ

Resumo:
Imagens participam da construção de identidades, imaginários e memórias. Desde que viajantes foram se transformando em turistas, a imagem funcionou tanto como representação e divulgação de lugares desconhecidos, quanto como memória para as experiências vivenciadas na viagem. Este artigo analisa imagens que participaram da construção do Rio de Janeiro como destino turístico, na passagem do século 19 para o 20. Especificamente, nos anúncios de hotelaria e nos postais da região portuária.
Abstract:
Images participate of the construction of identities, imaginary and memories. Since travelling were been transforming into tourism, the image functioned in such a way as representation of unknown places, as memory for the experiences lived in a trip. This article analyses images that had participated of the construction of Rio de Janeiro as touristic destination, in the passage of 19 th for the 20th century. Specifically, in advertisings of hotels and postcards of the port area.

Ainda hoje – mundo globalizado, de consumo acessível e bombardeado pela publicidade – as viagens estão mais no âmbito do ocasional ou do extraordinário, que do cotidiano. Viajar é justamente sair do dia-a-dia, e alguns lugares são visitados uma única vez na vida de uma pessoa. Por isso, as viagens sempre fomentaram a memória e estão associadas a objetos que estimulam a recordação. Objetos que levamos para casa como se estivéssemos levando um pouco do lugar visitado. Objetos que podemos presentear, também como se estivéssemos presenteando com um pedaço do lugar visitado.

Viajantes sempre desbravaram o mundo, mas a atividade turística é recente. Começa a se estruturar propriamente na Europa do século 19. O inglês Thomas Cook tem sido credenciado como um dos principais precursores do turismo organizado (de excursões). O que começou, sem fins lucrativos, com o planejamento da viagem de um grupo religioso, passa a ser, em 1845, sua atividade profissional logo oficializada com a empresa Thomas Cook and Son. Seus primeiros itinerários são pela Europa e, em 1872, promove sua primeira volta ao mundo. Thomas já era falecido, mas é a Cook and Son que traz, em junho de 1907, o primeiro grupo de turistas ao Rio de Janeiro, a bordo do navio a vapor Byron (BELCHIOR & POYARES,1987).

A partir da década de 1910 o Rio de Janeiro vai se constituindo em um “destino oficial” de turismo e, como tal, produz imagens para seduzir turistas e para fomentar recordações.

O conceito de turismo

Na passagem do século 19 para o 20 o conceito de turismo ainda não estava consolidado e as viagens ao Brasil eram majoritariamente motivadas por interesses comerciais e exploratórios. E a capital tropical de um império europeu despertava cada vez mais esses interesses...

Ainda em 1887, uma publicação brasileira – Impressões de Viagem Brazil-Europa – vai tratar a viagem enquanto fruição, tanto em relação ao europeu que visita o Brasil, como em relação ao Brasileiro na Europa.

O viajar hoje é indispensável ao espírito investigador, e por toda a parte o homem que se move sente que vive, e as impressões da viagem dão-lhe uma segunda educação.

Os que vêm visitar o novo mundo terão de admirar os grandes rios, serras e montes, colinas e várzeas, vastas florestas, de grandeza e esplendor como outra natureza não há superior.

Os que vão percorrer as terras da Europa aprenderão novos costumes e por toda parte admirarão também o esplendor da natureza e não menos o trabalho do homem. Marcando o progresso do século em que vivemos. Tudo é grande e belo aos olhos de quem viaja; por toda parte novas cenas se descortinam a seus olhos, e para a alma sempre novas impressões, como que a criatura que viaja sente-se livre, sem que nada o incomode. Tudo é alegria (GIOLMA, 1887)

O cenário carioca

Ao longo do século 19, depois da vinda da Coroa Portuguesa para o Brasil, o fluxo de imigrantes no país crescia, e o Rio de Janeiro era sua porta de entrada. Muitos viajantes-pesquisadores produziram farta documentação literária e iconográfica sobre a cidade e o país que, publicadas no exterior, despertavam interesse para com a terra exótica. Mas a viagem oceânica ainda cara e excepcional, as condições de insalubridade do Rio de Janeiro, e suas precárias estrutura urbanística e instalações hoteleiras, eram fatores desestimulantes ao turismo. Turismo totalmente estrangeiro. Por motivos econômicos, culturais e de infra-estrutura, não havia deslocamentos motivados pelo lazer, dentro do território brasileiro. Mas uma pequena elite já viajava para a Europa.

Se no outro tempo era grande essa antipatriótica falta de curiosidade, agora é muito pior: os paquetes a vapor e a facilidade das viagens ao Velho Mundo tiram-nos a vontade de passear o nosso, e é mais comum encontrar um fluminense que nos descreva as montanhas da Suíça e os jardins e palácios de Paris e Londres do que um outro que tenha perfeito conhecimento da história de algum dos nossos pobres edifícios, da crônica dos nossos conventos e de algumas das nossas romanescas igrejas solitárias, e até mesmo que nos fale com verdadeiro interesse dos sítios encantadores e das eminências majestosas que enchem de sublime poesia a capital do Brasil. Hoje em dia uma viagem a Lisboa é coisa mais simples do que um passeio ao Corcovado.

Entretanto, eu estou convencido de que se podia bem viajar meses inteiros pela cidade do Rio de Janeiro, achando-se todos os dias alimento agradável para o espírito e o coração.” (MACEDO, 1991 [1862]: 20)

No início do século 20, as transformações urbanísticas e o modismo do banho de mar vão valorizar as áreas litorâneas da cidade, onde foram construídos grandes hotéis. O Hotel Balneário, na Urca; o Copacabana Palace, em Copacabana e o Hotel Glória, na Glória. Empresas estrangeiras foram responsáveis por levar o bonde para locais que se tornaram valorizados pelo turismo – Leme, Copacabana, Jardim Botânico e Ipanema. O morro do Corcovado porém, que desde os tempos das charretes à cavalo já era uma atração turística, já tinha a sua estrada de ferro (Cosme Velho-Corcovado) desde 1885. Foi a primeira estrada de ferro construída no Brasil para atender a fins exclusivamente de turismo.

Alem dos hotéis-cassino à beira-mar, o perfil de montanhas, a Baía de Guanabara, o caminho aéreo para o Pão de Açúcar, a Cascatinha, a Floresta da Tijuca, o cais do porto (o antigo e o moderno), o centro urbanizado à la belle époque – incluindo o canal do Mangue, monumentos arquitetônicos como o Theatro Municipal e a Biblioteca Nacional, o Jardim Botânico e finalmente os festejos de carnaval e a praia mundana e urbana. Todos se tornariam famosos “cartões-postais do Rio”, ao longo da primeira metade do século 20.

Segundo Machado (2002), era desejo do governo brasileiro ver o Rio de Janeiro do início do século 20 – então uma das mais importantes metrópoles da América Latina – retratado em cartões postais, como uma cidade moderna e viável para atrair investimentos e visitantes. “Um bom cartão-postal do Rio de Janeiro não podia mostrar uma cidade imunda, pobre e feia, com ruas estreitas, becos e vielas, nem mostrar gente doente, abatida e mal vestida.” Foi necessária uma grande reforma urbana, que entre outras ações valorizou as áreas litorâneas, para que fosse possível mostrá-la como a cidade moderna e Belle Époque que, retratada por fotógrafos como Augusto Malta e Marc Ferrez, passou a estampar postais e a circular pelo mundo, despertando o interesse pelas paisagens cariocas.

A imagem e o turismo

Anúncios em jornais e revistas, cartões-postais e, posteriormente, cartazes foram as primeiras peças gráficas a serviço do turismo. O cartão-postal, surgido na Europa por volta de 1870, permitiu – em tempos ainda não globalizados – que a imagem das cidades circulassem pelo mundo, despertando interesse e atraindo o movimento turístico. Suas ilustrações privilegiaram as paisagens, reproduzindo inicialmente gravuras e, a partir do final do século 19, imagens fotográficas.

As imagens usadas pelo turismo constroem e/ou reforçam identidades (muitas vezes do âmbito do imaginário), e vendem peculiaridades. Mas, embora anúncios e postais tenham o mesmo objetivo – o de despertar o interesse por um lugar – suas linguagens comunicacionais são bem diferentes.

Enquanto o anúncio e o cartaz funcionam apenas como chamariz, o cartão-postal – que também funciona como publicidade para seu destinatário – tem ainda a função de lugar de memória (de acordo com a categoria de Pierre Nora, 1993). O postal é uma representação de uma experiência do presente, a ser evocada no futuro, quando passará a ser uma lembrança do passado. Indo além, podemos dizer que esta peça iconográfica contribui ainda para a monumentalização de aspectos ou lugares de uma cidade. E ainda: com o passar do tempo – vamos tratar aqui de imagens centenárias – estes passam da memória para a história. No mínimo, podem ser encarados como vestígios de história ou subsídios de pesquisa, à medida que exibem paisagens, prédios, traçados urbanos e até vestimentas que deixaram de existir. É claro que enquanto “lugar de memória”, as mensagens pessoais escritas nos cartões-postais também deveriam ser alvo de análise mas, no pequeno espaço deste trabalho, estamos considerando apenas as imagens e seus suportes e veículos.

Uma outra peça gráfica característica do setor turístico é o selo de bagagem (luggage label – como ficaram internacionalmente conhecidos), muito em voga em todo o mundo entre os anos 1930 e 50. Colado na bagagem dos clientes de grandes e sofisticados hotéis, os distintivos inicialmente serviam para que os próprios hotéis identificassem, facilmente, as malas de seus clientes nos portos e aduaneiras. Sem dúvida preencheriam também a função de lugar de memória, mas logo tais emblemas passaram a ter como função, explicitar o status social do viajante, exibindo em seus pertences as cidades e hotéis por onde passou.

Os souvenires turísticos que hoje são um extenso universo de objetos

que enfeitam paredes, estantes, e geladeiras nas mais remotas partes do globo ou circulam aderidos a corpos de diferentes gêneros, idades e etnias (Castro e Freire-Medeiros, 2006)

também devem ser considerados importantes lugares de memória, mas como surgiram num período posterior ao do nosso recorte temporal, não estão incluídos neste ensaio.

Aqui vamos examinar um pequeno grupo de anúncios publicitários e de cartões postais da passagem do século 19 para o 20. Os anúncios referem-se a hotéis (e seus restaurantes) e são as peças gráficas mais antigas que localizamos, no que diz respeito ao turismo no Rio de Janeiro. Os cartões-postais são fonte muito mais abundante e merecedora de uma considerável bibliografia, mas para este trabalho foram escolhidos alguns exemplares representativos de duas temáticas: hotéis e a área portuária do Rio de Janeiro.

Os hotéis, por serem serviço essencial para o desenvolvimento do turismo na cidade e por terem sido os primeiros, no setor, a se preocuparem com divulgação. A área portuária, por ser indissociável do viajante que entrava e saía da cidade por via marítima.

Estas imagens participaram da construção da identidade da cidade e também da memória que seus visitantes dela levavam. Identidade e memória são construções contínuas e a revitalização da história de um grupo [através de lugares de memória, por exemplo] obriga-o a redefinir a sua identidade (Nora, 1993: 19).

Falar em construção de identidade do Rio de Janeiro deste período, é lembrar que o seu contingente populacional era basicamente imigrante, e que a história da cidade era recente. Até 1808 o Rio era apenas uma colônia com pouquíssima infra-estrutura urbana. Apesar da imagem de exotismo que já tinha sido divulgada no exterior, a própria cidade não via sua natureza turística. Os hotéis do centro da cidade – como será visto no rol de anúncios selecionados – não queriam parecer pitorescos mas, ao contrário, dentro dos padrões internacionais.

A “natureza turística” de um lugar – assim como a identidade ou a memória – é uma construção histórica e cultural. Esse processo envolve a criação de um sistema integrado de significados através dos quais a realidade turística é estabelecida, mantida e negociada, e tem como resultado narrativas a respeito da cidade como destino turística. (Castro e Freire-Medeiros, 2006)

Os hotéis cariocas do século 19, eram pequenos e simples. Localizavam-se em geral no centro da cidade, funcionando em prédios adaptados e não construídos para esta função.

Segundo assinalaram os viajantes que escreveram sobre o Rio de Janeiro, os hotéis eram mais que medíocres e, também em pequeno número (de los rios filho, 2000: 279).

Estes estabelecimentos “inventaram” o hábito do carioca almoçar na rua com “mesas postas” ou serviços de “casas de pasto” (refeições tipo pensão) que eram sistematicamente anunciadas no jornal. Apesar de ter sido também um hotel – o Europa – o responsável pela introdução do serviço à francesa nas mesas do Rio de Janeiro (ibiden).

A medida que a cidade se sofisticava, e com ela sua natureza turística ia sendo construía, os hotéis melhoravam, oferecendo estruturas mais sofisticadas, incluindo os serviços para os residentes da cidade (como almoços, locação de salões de festas, jogos etc). Também afastando-se do centro e aproximaram-se do mar e das áreas mais bucólicas da cidade.

As Imagens

As fontes de análise deste trabalho são imagens, e existe a tentação de encará-las como realidade, principalmente quando são fotografias. Mas teremos o cuidado de não tomar ingenuamente as peças aqui examinadas como retratos absolutos de partes da cidade. Não podemos esquecer que elas pretendiam vender um Rio de Janeiro sedutor ou, pelo menos, interessante turisticamente. Burke (2004) demonstra que a iconografia histórica deve ser tratada como indícios ou fontes a serem interrogadas:

Eu continuo acreditando que os historiadores devem sempre utilizar imagens junto com outros tipos de evidência, e que precisam desenvolver métodos de “crítica das fontes” para imagens exatamente como o fizeram para os textos, interrogando estas “testemunhas oculares” da mesma forma que os advogados interrogam as testemunhas durante um julgamento. (Burke, 2004: ii)

O autor ressalta que as imagens podem ter sido criadas para comunicar uma mensagem própria e que é necessário ler suas entrelinhas, aprender algo que os artistas desconheciam estar ensinando – o que nem sempre os pesquisadores fazem. (ibiden: 18).

Para Burke, a representação iconográfica é quase sempre menos realista do que parece, e há que se levar em consideração a intenção do artista, do seu patrono ou chefe. Porém a vantagem do uso de imagem, como fonte, é a sua capacidade de fornecer evidências de aspectos da realidade social que as fontes textuais não deixam transparecer.

(…) o processo de distorção é, ele próprio, evidência de fenômenos que muitos historiadores desejam estudar, tais como mentalidades, ideologias e identidades. A imagem material ou literal é uma boa evidência da “imagem” mental ou metafórica do eu ou dos outros. (Burke, 2004: 37).

Em relação às imagens aqui apresentadas, cabe dizer que nos interessa não só o que estão mostrando (seu conteúdo), mas como estão mostrando (sua forma). Assim, a própria linguagem, narrativa e estética, dessa iconografia é também nosso objeto de análise, à medida que participam do discurso identitário e de convencimento.

O artista trabalha de forma subjetiva, elaborando seus próprios conceitos e usando seus sentimentos, seu estilo, sua memória, e até a memória de outros. Mas também pode produzir a serviço de interesses políticos ou econômicos. Chagas (2003) ressalta que os detalhes de uma pintura não são por acaso, pois tudo quer representar alguma coisa. “Tudo compõe o discurso do artista.” (ibiden: 161). Quase podemos dizer, então, que o artista é um operário na fabricação de um imaginário, autoral ou encomendado.

Os artistas operam como se soubessem que, nas suas obras, produzidas para fazer lembrar, não é a verdade o que está em jogo, e sim o acreditável, ainda que numa escala reduzida. Eles são agentes mediadores (gostaria de dizer “agentes de memória”) entre diferentes tempos, entre o acontecimento e a posteridade. Como mediadores individualizados e carregados de subjetividades eles se dirigem por meio dos indivíduos à coletividade; eles dialogam com o imaginário social. (Chagas, 2003:170)

Veremos adiante uma paisagem urbana, em frente ao Hotel Pharoux, que deve ter sido relativamente inventada, e também fotografias de embarcações que, sob determinado, ângulo exacerbam o conceito que desejam transmitir. São imagens seletivas que dirigem-se à coletividade e à posteridade, de forma imensurável (principalmente em se tratando de postais que viajavam o mundo). Por sua vocação para o além, postais, cartazes turísticos e selos de bagagem tornaram-se objetos de colecionismo – categoria que não será tratada aqui – ainda que as coleções também sejam lugares de memória.

Lugares de memória, na concepção de Nora (1993) têm necessariamente existência física e material, sendo seus principais exemplos: arquivos, bibliotecas, museus e pantheons. Por causa desta concretude, transferimos este conceito para os objetos. Especificamente objetos gráficos (imagens impressas). Objetos de memória de viagem.

É curioso que lugares físicos de memória, no sentido genuíno de Nora (1993) – como monumentos e museus – viram pontos turísticos e criam seus “objetos de memória” no sentido que estamos usando: postais e souvenires.

Lugares (ou objetos) de memória nascem e vivem do sentimento de que não há memória espontânea, da incerteza do futuro, da iminência do desaparecimento rápido e contínuo de tudo. Acessando, evidenciando e materializando memórias.

As primeiras imagens turísticas do Rio

Por motivos técnicos inerentes à sua reprodutibilidade, mas provavelmente também pela falta de uma cultura publicitária no segmento, os primeiros anúncios do negócio hoteleiro eram apenas de composição tipográfica, sem adornos ou ilustrações. Os textos – às vezes em língua estrangeira, justamente por dirigirem-se para o viajante ou imigrante – são bastante descritivos e destacam, com freqüência, o nome do proprietário, em geral europeu.

Podemos observar que os hotéis do centro da cidade, como o do Universo, oferecem menos atrativos e tentam conquistar outros clientes, além dos hóspedes, oferecendo serviço de refeições. Já o Murray’s Family, no Alto da Boa Vista (“a 1h e meia do Rio de Janeiro”) propaga as características da natureza aprazível, e em destaque, apresenta: sua localização, a Tijuca, e seu proprietário, John Murray.

Anúncio publicado no Jornal do Commercio, 9/7/1845.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987:54.

Anúncio publicado no Hand Book of Rio de Janeiro, 1887.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987:105

A gravura abaixo, de S.A.Sisson, c.1858, provavelmente era matriz de anúncio para jornal. É a representação do Hotel Pharoux, um dos mais famosos hotéis cariocas do século 19, que deu nome ao Cais Pharoux, nas suas proximidades, por onde desenbarcavam a maioria dos viajantes que chegavam de navio ao Rio de Janeiro.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987:62

A literatura diz que o hotel não era bom (de los rios filho, 2000), mas a arquitetura mostra-se bastante suntuosa e a cena urbana aprazível: homens e mulheres bens vestidos, mucamas, cães, um barquinho, um negro carregando água na cabeça e nada que lembre a possível balbúrdia de região portuária.

O texto em três línguas (inglês, francês, português - nesta ordem) chama à atenção para o fato do hotel dispor de banhos, bilhares e uma vasta sala de jantar “dominando a Baía de Guanabara”. A grande maioria dos hotéis da cidade não dispunham de sala de banhos (existiam casas só para isso) e, neste caso, este serviço é o destaque da fachada, também nas três línguas.

Diferindo em muito do exemplo anterior, os próximos três anúncios seguem estilos semelhantes, apontando para uma linguagem alegórica, mais publicitária, onde se sobrepõem informações diferentes. Nota-se a influência das artes gráficas européias que preconizavam o estilo Art Noveau: letras desenhadas manualmente formando curvas, retratos em ovais, composição orgânica. Todos os elementos fazendo parte de uma mesma matriz de gravura.

Anúncio publicado na revista Mequetrefe nº70, 1876.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987:154

Mais uma vez nota-se que os cafés e restaurantes dos hotéis são um atrativo para os moradores locais. Da cornucópia do Hotel Portugal saem ítens do seu cardápio: fiambre, panqueca, goiabada, guisados, vinhos, licores etc. (A cornucópia é em geral representada com frutas e flores, simbolizando fartura ou fortuna).

O Hotel Cruzeiro traz a palavra “Café” na sua própria designação, além da chamada: “Ricos salões para comedorias e Café”. As ilustrações mostram as estrelas do cruzeiro do sul (então, um forte elemento identitário), detalhes da decoração que quer parecer sofisticada; ao fundo, um garçom servindo e nos primeiros planos um par de cavalheiros conversando e fumando e um casal tomando chá, sugerindo a agradabilidade do local.

Anúncio publicado na revista Mequetrefe nº 130, 1877.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987:147

O Hotel Argentino destaca a figura de um cozinheiro. As chamadas de texto enfatizam a localização na “rua principal e no ponto mais central da cidade, perto dos bondes” (rua do Ouvidor), “salas e quartos para solteiros e famílias”, “banhos quentes e frios e de chuva” (provavelmente o chuveiro), “cozinha francesa, portuguesa e italiana. Almoços e jantares à lista e à mesa redonda” (à la carte ou tipo buffet).

Nos três anúncios os nomes J.D.S. de Brito, Monteiro Bretas e Salvador Garlucci em bom destaque sugerem ser o nome dos proprietários, com a aparente intenção de personificar o negócio.

O próximo conjunto de três anúncios mostram mudanças estéticas e técnicas. Há uma evidente preocupação com a mudança de tipografias para as diferentes informações do texto, e as molduras e adornos já são matrizes tipográficas, em estilo Art Noveau bem definido.

Anúncio publicado na revista Mequetrefe nº 132, 1877.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987:144.

O texto do Grande Hotel Metrópole chama à atenção para o fato de situar-se “nas faldas do Corcovado”, ser “ocupado na quase totalidade por estrangeiros” e ter “banhos quentes e frios”.

Anúncio publicado no Álbum de Vistas, Comércio e Indústria do Rio de Janeiro, 1900.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 83

O anúncio do Hotel Guanabara refere-se aos banhos quentes e frios, e também à proximidade do banho de mar, na praia da Lapa, mas o destaque é para o fato de ser o prédio “expressamente edificado para recebimento de hóspedes e famílias” – um fato praticamente inédito. O texto do anúncio do Hotel dos Estrangeiros, no Catete, com seus 120 quartos e salão para banquete de 300 talheres, destaca ser este “o mais importante do Brasil, e o que rivaliza em comodidade, asseio, conforto e tratamento com os melhores hotéis da Europa e América”.

Anúncio publicado no Álbum O País, 1902.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 84

Anúncio publicado no Álbum O País, 1902.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 74

E a hotelaria descobre o cartão-postal... Alguns chegaram a ser produzidos a partir de desenhos, mas é evidente que a qualidade comunicacional da fotografia é mais convincente, principalmente nos quatro casos seguintes onde, evidentemente, o objeto de convencimento não são a estrutura ou serviços oferecidos e sim suas localizações. Segundo BELCHIOR e POYARES (1987) a região das Paineiras era considerada a mais salubre e encantadora do Rio de Janeiro.

Cartão-postal, c.1900, Hotel Vista Alegre, na rua do Aqueduto – atual Almirante Alexandrino.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 105

Cartão-postal, c.1900, Hotel Internacional.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 105

Cartão-postal, c. 1903, Grand Hotel Internacional, na rua do Aqueduto - atual Almirante Alexandrino.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 80

Cartão-postal c.1905 - Hotel das Paineiras, na encosta do Corcovado.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 109)

O hotel Avenida, inaugurado em 1908 na Av. Rio Branco, com 220 quartos, foi considerado a pedra fundamental da moderna hotelaria brasileira e provavelmente investiu mais que as empresas mais modestas, na sua promoção e publicidade. Os dois cartões postais abaixo são de 1915 e reproduzem imagens fotográficas. O primeiro, apresenta texto em francês anunciando sua capacidade para 500 pessoas e sua localização central “na avenida mais bonita da América do Sul.”

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 140

O segundo exibe uma panorâmica da av. Beira-Mar e a Glória, vendendo a imagem de uma cidade moderna e arejada.

Reprodução: BELCHIOR e POYARES, 1987: 140

Além dos hotéis e das vistas mais bonitas da cidade, a área portuária do Rio foi muito retratada em postais. Apesar de não ter uma vista encantadora, necessariamente era um lugar por onde o turista teria circulado e, mais tarde, olhando tais imagens, certamente lembraria da vivência ali passada.

Além da geografia do local, são retratadas as situações de trabalho, os mercados, e a movimentação da população que provavelmente caracterizavam aspectos bem diferentes da Europa. Talvez até caracterizando-se numa atração em si...

Imagens mostram embarcações fundeadas na Baía de Guanabara, cercadas por pequenos barcos que iam ao seu encontro para transportar os passageiros para os cais Pharoux ou o dos Mineiros (ambos na região do Largo do Paço – atual Praça XV), pois não existia cais com profundidade na cidade.

Região da Praça XV de Novembro e Ilha das Cobras a partir do Morro do Castelo c.1900.

Editor não identificado, coleção Laire José Giraud. Reprodução Gerodetti e Cornejo, 2006: 18.

Vista do Mercado da Praia do Peixe (proximidades da atual Praça XV onde eram vendidos peixes, frutas e até macaco e jacaré), provavelmente antes de 1904 quando foi parcialmente destruído por incêndio.

Editor não identificado, coleção João Emílio Gerodetti. Reprodução: Gerodetti e Cornejo, 2006: 18.

Circa1905. Editor não identificado, coleção Laire José Giraud. Reprodução Gerodetti e Cornejo, 2006: 18

A modernização do porto, que então passaria a atracar grandes vapores e paquetes, pode não se configurar num ponto turístico, mas certamente significa que a cidade está se modernizando e se aparelhando para receber seus visitantes. O porto, então, continua sendo um assunto para cartão-postal. Um postal, de 1909, retrata a estrutura flutuante utilizada na construção do novo cais do porto do Rio, outro mostra seu resultado, depois da inauguração.

Editor não identificado, coleção João Emílio Gerodetti, publicado em Gerodetti e Cornejo, 2006.

Editor não identificado, coleção João Emílio Gerodetti, publicado em Gerodetti e Cornejo, 2006.

Com esse pequeníssimo grupo de imagens, pode-se perceber um pouco o processo de construção do discurso turístico da cidade e a construção da sua identidade, num momento em que se espelha em referências (gráficas inclusive) européias.

No início do século 2O, o turismo programado vai tornando-se moda na Europa. Novos, distantes e pitorescos destinos são procurados. As viagens oceânicas se intensificam com luxuosos navios cruzando o Mediterrâneo e o Atlântico. As estações termais e o banho de mar, antes com fins terapêuticos, tornam-se sofisticados centros de prazer. A maioria dos hotéis cariocas são gerenciados por estrangeiros que, aos poucos, tentam mostrar profissionalismo, edificando prédios próprios para o fim, melhorando suas estruturas e aprendendo a usar narrativas de convencimento.

Essas narrativas são eletivas – mostra-se ou deixa-se de mostrar o que se quer – fortalecem a identidade da cidade enquanto destino turístico e constituem um repertório de memória enquanto “estoque material daquilo que nos é impossível lembrar”. (Nora, 1993: 15)

Identidades são criadas e estas inventam suas tradições, que tanto podem resultar em lembranças como em esquecimento. A medida em que desaparece a memória tradicional, ou naturalmente outras coisas vão ganhando espaço nas nossas referências, é como se tivéssemos que juntar provas ou acumular vestígios, “testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis [grifo nosso] do que foi” e não poderia ir. (Nora, 1993: 15)

Lugares de memória são lugares em três sentidos simultâneos, porém em graus diversos: material, funcional e simbólico.

É material por seu conteúdo demográfico; funcional por hipótese, pois garante, ao mesmo tempo, a cristalização da lembrança e sua transmissão; mas simbólico por definição visto que caracteriza por um acontecimento. (Nora, 1993: 22)

O lugar de memória é uma ilusão de eternidade. A indústria do turismo cria objetos físicos para “ancorar a memória” (Nora, 1993: 9), significa dizer que tendo-se passado o tempo da intimidade da vivência de uma memória, passa-se a viver sob o olhar de história reconstruída.

Numa excursão turística é comum não dar tempo de ver “tudo”. O cartão postal é lugar de memória capaz de evocar um ponto turístico que se quer foi visitado, ou uma vista, um ângulo que nunca foi presenciado. Revendo as lembranças da viagem, chega-se a acreditar que estivemos naquele museu ou naquela parte da cidade. As descrições dos outros, e a vivência que tivemos misturam-se. A memória coletiva parece-nos individual. A memória individual é um ponto de vista da memória coletiva que depende de tempo, espaço e dos quadros sociais (Halbwachs, 1990).

As recordações de viagens – fotografias, postais, souvenires – evocam memórias: de experiências vividas, de lugares e de temporalidade. A princípio estes objetos dizem respeito à alguém. Podem dizer respeito a um grupo que troca experiências e memórias. Mas, ao longo do tempo, passam de mão em mão, servem aos colecionadores e historiadores. Deixando de ser o “eterno presente” – memória – para transformarem-se em “representação do passado” – história – (NORA, 1993: 9), e deles faremos uso para descobrir, em nossas pesquisas, alguma coisa que ainda não foi revelada...

Bibliografia:

Belchior, Elysio e Poyares, Ramon. Pioneiros da Hotelaria no Rio de Janeiro. Senac Nacional. Rio de Janeiro, 1987.

Burke, Peter. Testemunha ocular. Bauru, EDUSC, 2004.

Castro, Celso e Freire-Medeiros, Bianca. “A cidade e seus souvenirs: o Rio de Janeiro para turista ter” – no prelo, 2006.

De Los Rios Filho, Adolfo. O Rio de Janeiro Imperial. Rio de Janeiro, Topbooks, 2000.

Chagas, Mário. “Memória política e política de memória” in Abreu, Regina e Chagas, Mário (orgs). Memória e patrimônio: ensaios contemporâneos, Rio de Janeiro, DP&A, 2003.

Gerodetti, João Emílio e Cornejo, Carlos. Navios e portos do Brasil nos cartões-postais e álbuns de lembranças. São Paulo, Solaris. 2006.

Giolma, E.M. Impressões de viagem Brazil-Europa. Ida e volta – Livro-Guia de Viagem. Rio de Janeiro: Typographia Perseverança, 1887.

Halbwachs, M. A memória coletiva, São Paulo,Vértice, 1990.

Macedo, Joaquim Manuel de. Um passeio pela cidade do Rio de Janeiro. Rio de Janeiro – Belo Horizonte: Livraria Garnier, 1991 [1862 e 1863]

Machado, Marcello de Barros Tomé. “Cartões-postais - A produção do espaço turístico do Rio de Janeiro na modernidade” in Revista Geo-paisagem (www.feth.ggh.br/cartões-postais.htm). Vol.1, nº1, 2002.

Nora, Pierre.“Entre a memória e a história: a problemática dos lugares”, Projeto História, São Paulo, PUC-SP, n.10, dez.1993.http://cpdoc.fgv.br/mosaic

Fundação Getúlio Vargas

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