A chegada da energia elétrica no Rio de Janeiro
Luzes da ribalta
A chegada da energia elétrica no Rio de Janeiro foi recebida de modo contraditório, entre o encanto com a novidade e os protestos da população
Amara Silva de Souza Rocha
“Às nove horas da noite (...) a Avenida regurgitava e a iluminação era profusa, dir-se-ia o laboratório gigantesco de um eletricista maníaco, tão forte, tão demasiada até era a irradiação das lâmpadas! (...) Carruagens, pessoas, automóveis, tudo tumultuava numa ebriedade de viver!”
A cena, descrita pela revista Fon-Fon em 1909, mostra uma visão pulsante da paisagem urbana carioca, destacando a movimentada Avenida Central sob uma imponente iluminação elétrica. O Rio de Janeiro, capital da recém-fundada República, era o palco de reformas que visavam eliminar os ares provincianos e transformar a cidade em metrópole moderna. O advento da eletricidade encantou a população e deixou para trás a iluminação a gás e a tração animal nos bondes, mas também gerou novas contradições e conflitos.
Se por um lado a eletricidade encantou muita gente, independentemente da origem social, por outro tornou-se uma valiosa mercadoria cujo acesso não se realizou de forma homogênea. Uma seqüência de acontecimentos, que incluiu lobby de multinacional, especulação imobiliária e motim popular, revela algumas das contradições do processo de eletrificação e de modernização da cidade.
A Exposição Universal de 1889, em Paris, chamou a atenção do mundo para o potencial do uso da eletricidade, capaz de proporcionar mais luz e velocidade aos novos tempos. A nova tecnologia foi adotada rapidamente, de forma quase simultânea, nos EUA, na Europa e na América Latina, integrando o cenário das reformas urbanas da virada do século XX.
Na primeira década do século XX, a maior parte da população carioca estava concentrada nas áreas centrais, onde uma economia voltada para o abastecimento de alimentos dividia espaço com estabelecimentos bancários, casas comerciais e moradias. O afluxo crescente de migrantes e imigrantes à procura de trabalho e de melhores condições de vida agravava ainda mais os sérios problemas de infra-estrutura da capital. O saneamento da cidade era uma preocupação nacional. Vendedores ambulantes ofereciam de porta em porta mercadorias como leite, carnes e hortaliças provenientes de pequenas chácaras. A iluminação pública era precária e os bondes de tração animal provocavam contratempos, como a grande quantidade de excrementos dos cavalos que se acumulavam nas ruas, provocando mau cheiro e muitas reclamações.
Além disso, havia o interesse em reordenar o espaço urbano de forma a facilitar o fluxo dos grandes negócios imobiliários, financeiros e comerciais. Por conta de todos estes fatores, teve início um projeto de remodelação urbana, amparado pela doutrina da medicina social em vigor e inspirado nas reformas de Paris, então modelo incontestável de urbanismo. Entre os anos de 1902 e 1906, o prefeito Pereira Passos capitaneou uma verdadeira “cirurgia”, com o desmonte de morros, desapropriações e destruição de várias moradias, igrejas e outras construções. O objetivo da empreitada era abrir uma grande avenida que funcionaria como uma artéria, rasgando o centro da cidade e definindo novos rumos para o espaço urbano. Ao lado de todas essas reformas, a eletrificação e a nova iluminação foram importantes para compor o cenário da capital modernizada.
A iluminação dos espaços públicos cariocas sempre fora motivo de debate e de reclamações quando não correspondia às expectativas de cada época. A primeira forma de iluminação pública da cidade consistiu em lampadários de edifícios religiosos e dos nichos e oratórios existentes em algumas esquinas, nas quais a população acendia candeeiros de azeite de peixe ou velas de cera. O governo chegou a atribuir algumas vezes caráter de obrigatoriedade a este serviço originariamente voluntário, como no dia da execução de Tiradentes, quando foram afixados editais nas esquinas intimando todos os habitantes a acender luminárias por três dias em homenagem ao feito.
Com a transferência da Corte para o Rio de Janeiro, em 1808, o serviço de iluminação pública, como vários outros setores de infra-estrutura, passou a ser atribuição do intendente geral de Polícia. Convocada a colocar luminárias nas janelas de suas casas, a população contribuía para a iluminação das festas oficiais. Dois anos depois, o serviço foi entregue a um arrematante, que deveria manter acesos os lampiões a azeite de peixe. O combustível, na realidade, provinha quase todo do óleo de baleia, cuja presença era comum na Baía de Guanabara. A tarefa de acender os lampiões era executada por escravos que tinham o corpo encarnado de azeite, dormiam ao relento e eram fiscalizados por capatazes. Os negros acendedores tornaram-se figuras típicas da época.
Em 1854, em meio a grande euforia popular, foi inaugurada a iluminação pública a gás, realizada por uma companhia do visconde de Mauá. Industrial, banqueiro, político e diplomata, Mauá foi um importante empreendedor capitalista do século XIX, investindo em vários setores, especialmente em serviços públicos. O Rio foi a primeira cidade brasileira a utilizar gás na iluminação pública. Para orgulho de seus habitantes, os jornais cariocas anunciavam que a intensidade da luz era superior à dos combustores de Londres. A população, que se mostrara temerosa durante a construção do gasômetro, vivia um clima de euforia e curiosidade diante do poder de iluminação do gás.
Ao contrário do que ocorreu com a iluminação a gás, a capital não foi a primeira cidade brasileira a utilizar eletricidade, sendo antecedida por várias outras cidades do interior do Rio, Minas Gerais e São Paulo. A primeira experiência oficial com energia elétrica foi iniciativa de D.Pedro II, que em 1879 – mesmo ano em que Thomas Edison, que inventou, entre outras coisas, a lâmpada incandescente, construiu a central elétrica para Nova York – inaugurou a iluminação da antiga Estação da Corte da Estrada de Ferro Central do Brasil. O diretor da estação na época era o jovem engenheiro Francisco Pereira Passos, que anos depois viria a ser o prefeito das reformas urbanas.
A expansão da eletricidade ocorrerá já no regime republicano, quando a cidade é promovida de município neutro da corte a distrito federal, passando a ser administrada pelos poderes municipal e federal. A superposição de atribuições deságua em conflitos nas concessões de serviços públicos, como iluminação e transporte público. A proprietária da concessão de fornecimento de iluminação pública era a Société Anonyme du Gaz (SAG), empresa belga que desde a sua fundação, em 1886, mantinha uma relação contratual direta com o governo imperial, e que por isso se recusou a aceitar a ingerência municipal. O impasse perdurou até 1899, quando o contrato foi finalmente revisto e a SAG manteve o privilégio para explorar a iluminação pública.
Mas a façanha de cumprir tal contrato, que já previa a substituição do gás por eletricidade, não seria da SAG. A concessão passou a ser alvo de acirrada disputa com a empresa canadense Light. Após obter apoio do presidente da República, Rodrigues Alves, e do prefeito Pereira Passos, o grupo Light fundou no Canadá, em 1904, a The Rio de Janeiro Tramway, Light and Power Co. Ltd. No intuito de monopolizar o setor, a companhia se dedicou a captar recursos no mercado financeiro internacional, visando adquirir empresas que possuíam concessões de energia elétrica.
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Em pouco tempo, a Light passou a controlar alguns dos principais serviços públicos da cidade, sendo apelidada, pejorativamente, de “polvo canadense”, que estendia seus tentáculos por todo o espaço urbano. Entre as concessões incorporadas estava o serviço telefônico da cidade e, décadas mais tarde, o de ônibus. Anos depois, a empresa viria a desenvolver uma campanha de marketing para melhorar sua imagem junto à população carioca.
Para assumir a concessão do serviço de iluminação pública da capital, a Light se torna proprietária indireta da SAG. A empresa belga enfrentava então sérias dificuldades financeiras que a impediam de cumprir a exigência de substituir gradativamente a iluminação a gás pela elétrica em sua área de concessão. O lobby do grupo Light junto ao prefeito Pereira Passos foi decisivo para que o governo federal se tornasse mais rigoroso e exigisse o cumprimento dos compromissos contratuais da SAG.
Em janeiro de 1903, a Inspetoria de Iluminação definiu quais as ruas e praças que iriam compor a primeira zona da cidade a receber iluminação elétrica. Cabia à SAG construir canalizações e uma usina geradora de energia. Em julho do mesmo ano, a companhia apresentou os projetos solicitados, porém o governo adiou indefinidamente sua aprovação.O lobby exercido pela Light nos bastidores dos poderes municipal e federal dificultava as condições de operação da companhia rival. Paralelamente às manobras políticas, o grupo canadense foi adquirindo o controle acionário da empresa belga, e em 1907, 90% das ações da SAG pertenciam à Light, que passava a controlar o fornecimento de energia elétrica para iluminação da cidade do Rio de Janeiro.
Politicamente hábeis, os empresários da Light mantinham laços com a imprensa e relações estreitas com as elites cariocas. A empresa chegou a contribuir com recursos em negociações de compra e venda de jornais, como foi o caso da aquisição do O Jornal por Assis Chateubriand, que era advogado da Light e um dos seus mais ferrenhos defensores.
Após conquistar seu espaço, a companhia incorporou a eletricidade ao cenário da belle époque carioca, que teve como marco a inauguração definitiva da Avenida Central em 15 de novembro de 1905, rebatizada de Avenida Rio Branco em 1912, em homenagem ao ilustre barão falecido naquele ano. Com a abertura da Avenida Central, tornaram-se constantes os apelos para que a população freqüentasse o local também à noite, de forma a gozar dos benefícios da metrópole moderna e fazer do passeio à Avenida um programa familiar.
A freqüência, no entanto, não chegou a convencer aqueles que insistiam em dizer que havia uma contradição entre cidade civilizada e povo atrasado. Alguns cronistas da época sugerem que, após as reformas, a maioria dos habitantes já não combinava mais com a cidade. Na edição de outubro de 1914 da Fon-Fon, chega-se a afirmar que “a tristeza noturna da nossa rua contrasta violentamente com o feerismo da sua iluminação. Fique-se na própria Avenida (...) a hora habitual em que a concorrência esmorece, assim pelas onze da noite, depois da última sessão dos cinemas, facilmente se notará a desarmonia entre o lúgubre vazio da rua e a festividade excessiva da sua iluminação. Chega-se a ficar envergonhado e sente-se até uns fortes desejos íntimos de pedir sinceras desculpas à iluminação pública pelo abandono em que a deixam e pelo doloroso desprezo em que ela deve se sentir”.
A eletricidade remodelou o espaço urbano e tornou-se um recurso de investimento imobiliário, o que contribuiu para a valorização de áreas até então praticamente despovoadas. Copacabana e Ipanema, quando ainda eram “desertos e distantes areais”, foram fartamente iluminadas, enquanto outras áreas densamente povoadas muitas vezes não possuíam sequer iluminação a gás. Empresários do setor imobiliário trataram de adquirir terrenos ao terem acesso às informações privilegiadas sobre a geografia da eletrificação, ou até mesmo participaram de decisões na definição das zonas que seriam iluminadas. A própria Light se tornou proprietária de vários terrenos, para os quais conseguiu, gradativamente, estender a eletricidade.
Outra forma de interferência na vida urbana foi a eletrificação dos bondes. O governo planejava substituir os bondes de tração animal por novos bondes elétricos, como parte do projeto de urbanização e embelezamento da capital. O grupo Light se empenhou com êxito em obter o controle exclusivo sobre mais esse serviço.
O jornal Correio da Manhã pôs mais lenha na fogueira ao publicar artigos criticando abertamente a Light e conclamando a população a participar de um meeting no dia 11 de janeiro. A multidão de cerca de duas mil pessoas seguiu pelas ruas erguendo barricadas e incendiando carroças da Light. Diante de tal confusão, o comércio teve que fechar.
Os protestos duraram três dias e o Exército foi convocado a tomar as ruas. A Marinha recebeu ordens de manter navios de guerra de sobreaviso. Numerosas forças policiais fizeram a segurança dos escritórios e dependências da Light e os bondes que ainda circulavam eram escoltados por soldados. Vista de uma forma panorâmica, é marcante a violência deste conflito. Os manifestantes causaram prejuízos materiais consideráveis e a força policial reprimiu severamente o protesto, o que resultou em cinco mortos, sessenta e sete feridos e cento e vinte presos.
A cidade, apesar da farta iluminação elétrica concentrada em espaços valorizados e da aparência de grande metrópole, permanecia ainda mais contraditória do que antes. A estética moderna, ao mesmo tempo em que expunha um ideal almejado, tornava-se um espelho que continuava refletindo uma sociedade com “ares provincianos”. Essa visão fica clara para a própria elite, para a qual a cidade, apesar de “modernizada”, continuava misteriosa. Como dizia o texto publicado na Fon-Fon de 9 de março de 1912: “(...) numa mistura de tipos, vagabundos e homens de negócio, ninguém fala franco, antes recatadamente (...) tudo em contraste com a pompa berrante dos edifícios e dos candelabros de iluminação.”
Amara Silva de Souza Rocha é pesquisadora do Programa Avançado de Cultura Contemporânea da UFRJ e doutora em História pela mesma universidade com a tese “Nas ondas da modernização: uma história social do rádio e da televisão no Brasil nos anos 1950/1960”.
Revista de Historia da Biblioteca Nacional
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