O fascínio por este povo e sua tradição oral terminou por gerar vários estudos em que até mesmo as obras hoje conhecidas como parte de sua mitologia necessitam ser estudadas com cuidado, já que muitas fontes foram compiladas por monges cristãos. E a questão permanece: como eram os heróis irlandeses?
Por José Antônio Domingos
Muito se fala a respeito desse povo que historicamente é conhecido pelo que nos relata personalidades como Júlio César ou Deodoro da Sicília. Porém, como a chamada civilização celta possuía apenas tradição oral, sofreu duros golpes em sua trajetória, primeiro com os romanos e depois com a expansão do cristianismo e a supressão de seus cultos pagãos, tidos como hereges. O que temos de interessante pode nos auxiliar a buscar o que há de histórico e verdadeiro num povo que ocupou boa parte da Europa, com uma estrutura tribal, às vezes organizada também em clãs, que por sua vez possuíam uma espiritualidade própria, cultuando a natureza e um diversificado panteão de deuses. Os celtas nos deixaram pistas de sua cultura em mitos que chegaram aos nossos dias de diferentes maneiras. Essas histórias ficaram registradas por alguns dos meios mais conhecidos da época antiga, seja pelo trabalho dos chamados monges copistas da Idade Média, ou entre o povo que por mais tempo manteve viva sua cultura, os habitantes das regiões altas da Escócia e a da Irlanda.
Em 1762, surgia na Europa uma obra intitulada “Fingal”, um antigo poema épico, que seu autor, James Macpherson, disse ter origem no lendário bardo, Ossian (filho de Fingal) e que havia sido coletado da tradição oral dos camponeses de sua terra natal, as “Hilands” escocesas. Tanto “Fingal” quanto sua continuação, “Temora” (de 1796), acabaram traduzidos para as principais línguas europeias e, em pouco tempo, as elites literárias sucumbiam aos feitos de Ossian. Entusiasmaram-se com a obra autores como Goethe, Herder, Lamartine, Chateaubriand e, segundo alguns relatos, até mesmo Napoleão Bonaparte. Claro que muitas outras vozes surgiram para questionar a validade e a origem dos poemas, questionando a lisura do trabalho de Macpherson.
Quem mais se destacou nesta cruzada foi o escritor inglês Samuel Johnson. Em sua obra “A Jornada Para as Ilhas Ocidentais da Escócia” acusava abertamente Macpherson de falsário e dizia que nenhuma epopeia deste vulto poderia sobreviver no bárbaro idioma gaélico, principalmente pelo fato de não haver uma tradição escrita. Johnson morreu em 1784, mas o debate sobre a autenticidade ou falsidade dos ditos poemas ossianicos duraria ainda várias décadas.
Em 1796, após a morte de Macpherson, com o desejo de sanar de vez as dúvidas sobre a obra, a Highland Society of Scotland realizou uma extensa pesquisa com uma equipe de especialistas, visitando os locais onde o autor alegou ter encontrado seus textos e interrogando as pessoas que de alguma maneira pudessem ter colaborado com ele. Os resultados da pesquisa foram publicados em Edimburgo, em 1805, e os autores da investigação concluíram que, embora o poeta houvesse realmente colhido material autêntico, transmitido oralmente pelo povo das Terras Altas, de fato não havia uma epopeia como ele alegava haver traduzido.
Interessante notar que as baladas de “Fingal” acabaram sendo um presságio de uma outra avalanche literária que se propagou pela Europa com a publicação do primeiro volume intitulado “Kinder und Hausmärchen”, de Jacob e Wilhelm Grimm. Esta obra acabou impulsionando a recompilação de tradições populares de todas as partes e foi o começo de uma série de acontecimentos que acabaram levando um homem de talento a provar que os chamados bárbaros das Terras Altas escocesas possuíam uma literatura própria que, por tradição oral e escrita, fora transmitida de geração em geração ao longo de milênios.
Campbell John Francis Campbell, chamado em gaélico de “Ian Og Ile” (o jovem John de Islay) nasceu em 29 de dezembro de 1821 no seio da família Campbell de Shawfield, dona desde 1726 da Ilha de Islay, nas Hébridas Interiores. Sua família sempre se esforçou por manter o melhor relacionamento possível com o povo de suas terras e esse contato estreito acabou por influenciar muito a educação e personalidade do pesquisador que, dentre outras tradições, aprendeu o idioma gaélico.
Campbell estudou em Eton, na Universidade de Edimburgo, e ingressou no ramo da advocacia inglesa, mais tarde assumindo como secretário do Duque de Argyll. Seu interesse por recompilar tradições populares começou em 1847, buscando na memória os contos que havia escutado na infância. Após conhecer George Webbe Dasent, que traduziu para o inglês uma compilação de contos noruegueses, Campbell foi encorajado por ele a continuar a juntar histórias e formou uma rede de pessoas que percorreram as Highlands em busca de informantes. Essas pessoas anotaram os relatos que eram enviados a Londres, onde o pesquisador organizou e traduziu o material.
Quadro do século XIX, de Anne-Louis Girodet de Roussy- Trioson, que mostra Ossian (ao centro) recebendo os espíritos de heróis franceses |
Houve várias pessoas que se mostraram de valor extraordinário para sua pesquisa, como Hector MacLean, seu preceptor, que resolveu ajudá-lo, além de Hector Urquhart, zelador da propriedade de Ardkinglass, de quem recebeu pelo correio muitos relatos. Especialmente valiosa foi a colaboração de John Dewar (originário de Cowall, Argullshire) que, já em idade avançada, ainda trabalhava como lenhador para o Duque de Argyll. Era uma pessoa singular, autodidata, sabia escrever em sua língua materna (o gaélico) e, a seu modo e com suas limitações, também conhecia inglês. Advindo da cultura que havia produzido os contos, sua colaboração mostrou-se perfeita.
Todo este trabalho de pesquisa acabou resultando numa coleção de quatro volumes e, mesmo com todos os problemas, Campbell decidiu imprimir em gaélico a maioria desses relatos. Entre os meses de agosto e setembro de 1860, parte para as Terras Altas com o primeiro volume de sua obra e, pela primeira vez, mantém contato com as pessoas que haviam narrado os contos. Em outubro aparece a primeira versão de “Contos Populares das Terras Altas Ocidentais”, um feito impressionante, já que o trabalho de pesquisa havia se iniciado apenas um ano e meio antes. A primeira edição teve uma excelente acolhida e em 1862 apareceram os dois outros volumes. O quarto não tinha contos, apenas ensaios sobre a tradição e cultura popular, sendo que o mais importante trata da questão ossiânica.
Campbell esforçou-se por manter os contos da maneira como foram transmitidos, já que havia toda uma controvérsia sobre o trabalho de Mcpherson, além de apontar detalhes sobre cada relato.
Embora o poeta houvesse realmente colhido material autêntico, transmitido oralmente pelo povo das Terras Altas, de fato não havia uma epopeia como ele alegava haver traduzido
Ossian sonha em quadro de 1813 do pintor Jean Auguste Dominique Ingres |
Influência Celta
É importante notar que a Escócia e a Irlanda mantiveram ao longo de séculos estreitos vínculos históricos e culturais. No século V de nossa era, o reino de Dál Riada, no Ulster, expandiu-se além da Irlanda, ocupando um extenso território nas Hébridas Interiores (região escocesa de Argyll). Na época, a maior parte da atual Escócia era habitada pelos pictos, que assim como os invasores irlandeses, eram um povo celta. As colônias gaélicas fincaram sólidas raízes na região. No século IX, o Dál Riada do Ulster havia praticamente deixado de existir e o reino escocês de mesmo nome florescia, continuando a expandir-se.
Em 843, o rei Cináed Mac Ailpín (Kenneth MacAlpin) acabou por submeter tanto os pictos quanto os anglos e os bretões que habitavam suas terras, passando dali por diante, todo o reino a ser conhecido como Escócia (Scotland) ou “terra dos irlandeses”, o que deixa bem claro quais eram a língua e cultura então dominantes. Durante a baixa Idade Média, principalmente a partir do reinado de Malcolm III (1058-1093), a língua e a cultura gaélica foram se diluindo no sul daquele reino por conta da forte influência inglesa. No entanto, elas permaneceram com força nas “Terras Altas” e nas ilhas, sobretudo enquanto foi mantido o estreito vínculo com a Irlanda, em especial com a província de Ulster.
Em 1601, os ingleses finalmente conseguiram quebrar a resistência dos irlandeses e a província do Ulster foi colonizada com êxito pelos invasores. A relação entre os países se interrompeu quase por completo e o gaélico escocês, até então um dialeto do irlandês, começou a se distanciar de sua língua-mãe. Enquanto na Irlanda a aristocracia nativa era obrigada a se exilar, nas Terras Altas, a sociedade e cultura gaélicas se mantiveram ainda por mais de um século. Assim, os poetas e narradores profissionais continuaram exercendo seu ofício na Escócia e nas Hébridas até o princípio do século XVIII.
Os últimos bardos hereditários que se tem notícia pertenciam à linhagem dos MacVuirich, sendo que um de seus membros, Donald, seguia ativo em 1707. Eles estavam a serviço dos MacDonald de Clanranald, ainda que previamente haviam sido bardos dos senhores das ilhas, governantes do reino independente que durante vários séculos controlou as Hébridas e parte das Terras Altas. Porém, como na Irlanda, o que deveria ser uma tradição popular, viu-se enriquecida com os poetas profissionais quando o anglicismo galopante de seus antigos patronos obrigou os bardos a se misturarem com o povo. Da mesma maneira que seus irmãos irlandeses, os camponeses das Terras Altas e das Hébridas, cuja tradição Campbell compilou, eram um povo castigado pela história.
A sociedade gaélica tradicional sobreviveu mais de um século depois que os ingleses subjugaram a Irlanda. Enquanto os caudilhos gaélicos gozaram de alguma autonomia, a tradição se manteve, apesar de, desde o final da Idade Média, as famílias nobres perderem cada vez mais terreno frente aos ingleses. A data catastrófica para os irlandeses foi 1746, quando as tropas do rei George II sufocaram a última insurreição importante dos partidários da dinastia Stewart, com a repressão aos que apoiaram a coroa do rei Carlos Eduardo implacável e com efeitos devastadores por todos os clãs das “Terras Altas”, mesmo para os que não haviam participado do levante.
Ossian invoca os deuses com sua harpa em quadro de 1801 do pintor François Pascal Simon Gérard |
Uma dura legislação foi imposta, proibindo os camponeses, dentre outras coisas, de levar armas, tocar gaita ou usar sua vestimenta tradicional, sob pena de morte. Pela primeira vez em muito tempo a ordem se impôs nos distritos montanheses da Escócia, privando de sentidos um meio de vida baseado em parte pelas constantes hostilidades entre os clãs e pela relação paternalista que havia entre os chefes destes clãs e seus súditos.
Os poucos aristocratas de autêntica cultura gaélicas que restaram deram as costas à cultura e língua de seus antepassados, voltando os olhos para Londres. O golpe final surgiu quando no final do século XVIII, os assentados nas Terras Altas descobriram que a melhor maneira de lucrar com seus latifúndios era expulsando os camponeses que cultivavam a terra e convertendo-a em pasto para ovelhas. A retirada em massa de famílias que haviam vivido durante séculos naquelas terras deu-se de maneira feroz e implacável, e continuou assim até 1886. Foi após todos estes acontecimentos que Campbell entabulou seu trabalho. Na época era crescente o interesse pelas histórias, mitos e lendas e não raro, ocasiões em que os feitos e guerras de heróis, como Fionn Mac Cumhail e seus guerreiros, eram narrados, às vezes, durante várias noites.
Campbell esforçou-se por manter os contos da maneira como foram transmitidos, já que havia toda uma controvérsia sobre o trabalho de Macpherson, além de apontar detalhes sobre cada relato
O Filho do Mar
A seguir, veremos um dos contos colhidos por Campbell, chamado “O Filho do Mar”.
Era uma vez, um grande cavaleiro da Irlanda que tinha três filhas. Um dia, elas foram se banhar e uma adormeceu. Ao acordar estava com uma sensação estranha e percebeu que, não muito distante, uma foca havia se afastado.
Então ela se descobriu grávida e quando seu filho nasceu, viu que era peludo como uma cabra. Foi enviado para a escola onde foi educado e recebeu o nome de MacCuain, que significa “Filho do Mar”. Ele se tornou comerciante e prosperou, a ponto de comprar um povoado do reino.
Um dia, o rei foi caçar em suas terras e, ao chegar no povoado do Filho do Mar, este lhe disse que não tinha direito de caçar. O rei respondeu que tinha tal objetivo em todas as terras do reino e não viu outra alternativa senão marcar o dia para a batalha.
Tanto o rei quanto o Filho do Mar começaram a reunir homens para a luta. Mas este último conhecia melhor o local que o soberano e reuniu mais homens que seu adversário. A batalha foi brutal e o rei perdeu, sendo depois perseguido. O perdedor chegou à casa de um ferreiro e dentro dela encontrou uma bela jovem, filha daquele trabalhador, e que estava sozinha. Tomado por sua beleza, o monarca começou a beijá-la e acabaram se entusiasmando um com o outro. Quando o ferreiro voltou, perguntou à filha:
- O que aconteceu? Quando saí tinha ares de donzela, porém, agora, tem ares de mulher grávida.
Ela não contou o que acontecera, mas o rei explicou o ocorrido e pediu ao pai da moça que a escondesse, pois uma vez que soubessem que esperava um filho dele, seus perseguidores a matariam. Naquela noite, a moça sonhou com a morte do rei e também com uma grande árvore que se estendia por toda casa e a cobria. O rei interpretou como um prenúncio de que gente de sua estirpe reconquistaria o reino.
Seus perseguidores vieram e o executaram, tal qual fora previsto. Então, o Filho do Mar ficou com todo o reino para si. O ferreiro tratou de ocultar a filha e, como sua esposa também estava grávida, quando ambas deram à luz, a filha teve um menino e a esposa, uma menina.
O novo rei deixou a menina com sua filha e a mandou para longe, criando o menino como se fosse seu próprio filho. Quando o garoto atingiu os 18 anos, aconteceu que o Filho do Mar fora acometido por um tipo de delírio, mudando completamente seu semblante. O povo acorria para zelar por ele à noite.
Chegara a vez do ferreiro velar pelo Filho do Mar, mas seu filho adotivo quis ir em seu lugar. Diante das circunstâncias, o rapaz soube então que era filho do rei de direito, morto pelo atual soberano. Quando soube, o garoto insistiu que tinha mais motivos então para ir. Uma vez no local, o Filho do Mar foi acometido de um novo delírio e suas faces se transformaram, com seus olhos saltando do rosto. Todos fugiram, exceto o rapaz.
O Filho do Mar quis saber por que ele não fugira. O moço respondeu que o rei estava tão deformado que parecia o próprio monstro marinho, por isso não fora embora. De alguma maneira, o soberano reconheceu o Filho do Rei. Então simplesmente fugiu. Durante a fuga, então, o filho do verdadeiro rei o perseguiu até chegar a Glen Arm, onde viviam os Fiann.
Fionn Mac Cumhail o encontrou e o contratou para servir à mesa, já que ele havia dito que era um criado em busca de um amo. Chegaram a um acordo que duraria um ano e um dia. Os Fiann estavam obrigados a dar uma festa para o rei usurpador uma vez por ano, e no final daquele período proposto se prepararam para uma grande jornada.
O filho do verdadeiro soberano deveria ficar ali até que a Festa do Rei usurpador acabasse. Mas o rapaz afirmou que não poderia ficar, pois era o real herdeiro daquele reino. Ao saber disso, todos os Fiann juraram que dariam a vida para protegê-lo. Durante a festa o Filho do Mar reconheceu o Filho do Rei e disse aos Fiann que queria sua cabeça.
Marcaram um dia para a batalha, onde o Filho do Rei derrotou o Filho do Mar com a ajuda dos Fiann numa luta brutal. Assim, o Filho do Rei passou a ocupar o trono de seu pai, e o ferreiro, sua esposa e sua filha prosperaram.
As Fontes Irlandesas
As três principais fontes manuscritas da mitologia irlandesa são o “Lebor na hUidre”, de fins do século XI, hoje na Biblioteca da Real Academia Irlandesa; o “Livro de Leinster”, do início do século XII, parte do acervo da Biblioteca do Trinity College, em Dublin; e, por fim, o manuscrito “Rawlinson B 502”, também conhecido como Rawl, da Biblioteca Bodleiana na Universidade Oxford.
Outras fontes importantes incluem quatro manuscritos originários da região oeste da Irlanda datadas dos séculos XIV e XV: “O Livro Amarelo de Lecan”, “O Grande Livro de Lecan”, “O Livro de Many” e “O Livro de Ballymote”. O primeiro está no Trinity College, os outros três na Academia Real.
Apesar da importância histórica dessas fontes, os pesquisadores alertam para sempre questionar as circunstâncias de sua produção, uma vez que são obras copiadas por monges cristãos, o que resultaria na evemerização de alguns deuses. Muitas fontes surgidas mais tarde podem ter sido parte de um esforço de propaganda que objetivava criar uma história para o povo da Irlanda que fosse uma espécie de correspondência à mitologia dos conquistadores de Roma.
JOSÉ ANTÔNIO DOMINGOS é pesquisador e palestrante de cultura celta e irlandesa
Revista Leituras da História
Um comentário:
parabéns pelo blog.
www.rogerinh0.blogspot.com
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