quinta-feira, 28 de outubro de 2010

A RELIGIÃO FUNERÁRIA NA GRÉCIA ANTIGA: CONCEPÇÕES A RESPEITO DA ALMA E DA VIDA NO ALÉM

Lápida funeraria grega, 100 a. C.[[]]Licurgo

Ivan Vieira Neto
Mestrando em História pelo Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Goiás.
Desenvolve pesquisa sobre História Antiga e religiosidades na Antigüidade e Antigüidade Tardia sob orientação da Profa. Dra. Ana Teresa Marques Gonçalves. Membro dos grupos de pesquisa LEIR e NEMED, filiados ao CNPq. Bolsista CAPES. Contato: vieira.ivanneto@gmail.com.

No primeiro capítulo de seu livro A cidade antiga, Fustel de Coulanges encerra o subtópico intitulado “crenças sobre a alma e a morte” afirmando que:
Foi talvez por via da morte que o homem pela primeira vez teve a idéia do sobrenatural e quis tomar para si mais do que lhe era legítimo esperar da sua qualidade de homem. A morte teria sido o seu primeiro mistério, colocando o homem no caminho de outros mistérios. Elevou o seu pensamento do visível ao invisível, do transitório ao eterno, do humano ao divino (COULANGES, 2000: 18).
A existência é por si mesma um fenômeno majestoso que a humanidade pode contemplar, mas não pode explicar. E a morte, por sua vez, encerra em si não apenas o existir, mas também os mistérios insondáveis sobre o que poderia existir do outro lado.
A humanidade, ainda na aurora de sua história, entendeu que a sua existência era uma dádiva magnífica e inexplicável, tanto mais quando se deu conta de que o tempo individual estava limitado aos anos de vida de cada homem ou mulher. Considerando o nascimento um fenômeno maravilhoso, o homem teve necessidade de explicar também a maravilha no seu oposto: a morte. A explicação mais aceitável para o fim seria um novo começo: quando o corpo morre, mas outra parte do indivíduo continua vivendo.
Certamente não queremos resolver aqui a questão da existência da alma humana, nem tampouco acertar qual o seu destino no além. Pretendemos analisar o problema fundamental da crença dos gregos na existência da alma e de um destino post-mortem.
Comumente encontramos afirmações de que os gregos não se preocupavam com a alma, que estavam mais interessados no kléos heróico, na memória gloriosa. Entretanto, temos muitos indícios de que os antigos gregos não só acreditavam na existência da alma, como também estavam preocupados com o seu destino ulterior, após a morte do corpo.
Não é por acaso que encontramos na Grécia, tanto no período clássico quanto no período helenístico, filosofias que pregavam determinada conduta moral e a observância de certas práticas como forma de alcançar uma recompensa espiritual após a morte.
Consoante Fustel de Coulanges, recuando temporalmente as nossas análises da história da Grécia e da Roma antigas, sempre encontraremos vestígios da crença indoeuropéia segundo a qual a vida não acabava com a morte (COULANGES, 2000: 7).
Mas se desde as populações indo-européias a idéia da alma existe, haveria um problema na maneira como os gregos entendiam esta alma? A julgar pela célebre passagem da Odisséia, quando Odisseu e Aquiles se encontram no Hades1 e o herói da Ilíada lamenta sua situação de falecido, talvez os gregos tenham considerado muito cedo que o mais importante nesta vida fosse o presente. Se esta suposição fosse verdadeira, filosofias tais quais o hedonismo e o epicurismo deveriam ter se desenvolvido muito antes do IV séc2.

As práticas funerárias dos indo-europeus
Os estudiosos da ancestral cultura indo-européia, em pesquisas que aliam filologia, história, arqueologia e estudos de mitologia comparada, certificam-nos que estas populações, em sua religião e também na tradição funerária, demonstravam uma preocupação especial com os mortos. Cultuadores de deuses solares, diurnos e sagrados, os indo-europeus também se preocuparam com a sacralização da morte, reservando aos seus mortos (e especialmente aos guerreiros mortos) ritos funerários específicos, inclusive com a provisão, para o túmulo, dos instrumentos necessários à vida no além.
Os ossos dos animais dométiscos envolvidos em uma pele eram muitas vezes sepultados com seus donos. As mulheres e filhos, considerados como bens pertencentes ao chefe de família, eram às vezes imolados, quando ele morria, para serem inumados juntos com a mesma finalidade (TERRA, 2001: 104).
Como nos explicam Fustel de Coulanges e João Evangelista M. Terra, desenvolveu-se entre os indo-europeus a crença na continuação desta vida após a morte.
No momento da morte a alma se desprendia do corpo mortal, mas continuava a sua vida nesta terra, associada ao seu cadáver e junto aos demais, os seres humanos viventes.
Considerou-se por muito tempo que o túmulo era não apenas o espaço em que se encerravam os corpos defuntos, mas também onde a alma passaria seus dias por toda a eternidade. Todos os bens mais preciosos ao morto deveriam ser depositados em seu túmulo, para que sob a terra continuasse a viver da mesma maneira que havia vivido sobre a terra (COULANGES, 2000: 9).
As populações indo-européias do período neolítico e da Idade do Bronze têm como principais características o nomadismo guerreiro e a sua organização patriarcal.
Muito cedo os indo-europeus desenvolveram o costume de sepultar junto dos mortos as suas armas, carros de guerra e seus tesouros, mas também praticaram o sacrifício de animais domésticos, cavalos, empregados e familiares, como descrito na citação acima.
Isto devido à crença de que esta vida continuava após a morte, inclusive com as mesmas necessidades e prazeres. Neste sentido, a alma não era um duplo ou uma parte do morto, era o próprio morto que passava a viver invisível em seu túmulo, cercado pelos mesmos bens dos quais se havia cercado durante a vida.
Se a arqueologia consegue atestar a preocupação com a alma humana através dos vestígios encontrados nos túmulos antigos, certamente podemos supor que as culturas descendentes das populações indo-européias devem apresentar em suas religiões preocupações semelhantes, no que tange aos ritos funerários. Entretanto, as práticas funerárias dos gregos também têm suas origens na cultura que floresceu em Creta antes que aqueus, eólios, jônios e dórios invadissem a Península Balcânica.
Precisamos recuar aos primórdios de ocupação humana na região das Cíclades para conhecer a preocupação que estas populações pré-helênicas, assentadas às margens do mar Egeu, tinham com os seus mortos. Em Religião grega na época clássica e arcaica (1993), Walter Burkert afirma que a civilização cretense praticava a inumação dos mortos, sepultados em construções circulares conhecidas como thóloi abobadados.
Podemos supor que os indo-europeus e as populações egenas compartilharam a crença na sobrevivência da alma humana após a morte. Aprofundaremos nesta discussão para explicar as origens ancestrais da crença helênica na alma humana, uma vez que precisamos traçar o caráter religioso do culto aos mortos entre os cretenses para determinarmos as suas influências no horizonte da religião funerária dos gregos.

O culto aos mortos na Grécia pré-helênica
Durante o chamado período minóico, sete séculos anterior aos tempos de Homero, a civilização que se desenvolveu em Creta viveu sua época de maior esplendor econômico e cultural. Neste período é característica a construção de grandes thóloi, destinados a sepultar grupos inteiros de indivíduos, ao mesmo tempo em que tinham função de santuários para o culto tumular. Entre as práticas mais comuns deste culto funerário estavam cerimônis de dança ao redor dos túmulos dos mortos.
Nestes santuários tumulares identificou-se também a presença de altares dedicados aos rituais de sacrifícios aos mortos, nos quais há vestígios de cinzas e ossos de animais.
Touros e cavalos domesticados eram sacrificados, incinerados e enterrados junto ao seu dono falecido, pois acreditava-se que o fogo e o sacrifício tinham o poder de purificar o thólos no qual o corpo seria depositado (BURKERT, 1993: 82).
Mais uma vez prevalece a crença de que esta vida perpetua-se após a morte e que os vivos precisam prover, durante os rituais funerários, aquilo de que o morto necessitará em sua vida póstuma. Desde os tempos mais primitivos acreditou-se que ao corpo mortal estaria vinculada uma alma imortal, que sobreviveria à morte do corpo.
Sua função exclusiva era o prolongamento da existência humana.
Desta crença primitiva surgiu a necessidade da sepultura, o túmulo com o qual os gregos preocuparam-se tanto enquanto praticavam a inumação quanto quando a cremação tornou-se uma prática difundida. Mesmo nas ocasiões em que o corpo era incinerado na pira, seus restos eram cuidadosamente separados e colocados em urnas funerárias. O túmulo sempre existiu, estejam nele depoisitados os corpos ou as urnas, pois se acreditava que serviria ao morto como uma casa, sua morada para a eternidade.

Religião funerária na Grécia antiga
Encontramos em Fustel de Coulanges a constatação da importância da sepultura, uma vez que as almas daqueles cujos corpos não fossem enterrados estariam condenadas a padecer de diversos sofrimentos e a errar constantemente sobre a terra, assombrando os vivos e prejudicando suas plantações e colheitas. Por certo que as cerimônias fúnebres não se destinavam a amenizar a dor dos vivos, mas a apaziguar as almas dos mortos e a tornar seus espíritos felizes e propícios (COULANGES, 2000: 10).
Esta crença em almas vacantes, que perambulavam pela terra arruinando as plantações, assustando os rebanhos e trazendo as doenças às casas dos homens, muito cedo deve ter sido abandonada pela religião oficial das cidades-estado, quando o culto aos mortos converteu-se em um culto à humanidade pretérita divinizada.
Impreterivelmente, as oferendas de alimento e bebida aos mortos assumiram uma obrigatoriedade moral dos vivos com os falecidos, que por sua própria condição eram detentores de poderes mágicos. O morto era considerado um deus encerrado no túmulo.
Como afirmou Cícero, os homens que abondanaram esta vida terrena deveriam ser considerados divinos. Possivelmente este aspecto divinal dos falecidos é uma parte da herança indo-européia, uma vez que é comum às religiões dos helenos, latinos, sabinos, etruscos e também às populações arianas da Índia antiga. (COULANGES, 2000: 15).

O culto oficial e as religiosidades pessoais
Embora este culto aos mortos estivesse largamente difundido em toda a Grécia, sabemos que os banquetes e festins públicos eram os acontecimentos mais importantes para a religião oficial. O culto cívico dedicava-se à manutenção das relações entre a cidade e as divindades, momento em que toda a comunidade tomava parte no festejo.
Fundamentalmente, tais eventos preocupavam-se com o sacrifício e o culto aos deuses, sendo essencialmente um momento de sua comunhão com os vivos.
O calendário festivo dos cultos oficiais atentava às necessidades da comunidade, a sociedade dos vivos, os que ainda não eram divinos e precisavam do favor dos deuses.
Paul Veyne, em sua contribuição para o primeiro volume da A história da vida privada, afirmou que “entre os antigos, normas de vida e exercícios espirituais formavam a essência da filosofia, não da religião, e a religião estava mais ou menos separada das idéias sobre a morte e o além” (VEYNE, 1989: 201).
E muitas filosofias preocuparam-se com a questão da alma, da morte e do além.
Esta era a função das religiosidades locais, não-oficias, e também dos cultos de mistérios, que segundo a definição de Walter Burkert, em Antigos cultos de mistérios, constituíam um complemento à religião oficial ao oferecer respostas para as questões com as quais o culto cívico não se preocupava. Desta forma, os indivíduos encontravam nessas filosofias populares a tranqüilização para as suas expectativas quanto ao seu destino após a morte. Uma vez estabelecida uma relação mais intimista no culto a determinada divindade, esse indivíduo participaria do séquito de eleitos do deus ou da deusa, que em retribuição lhe oferecia a esperança de um destino póstumo mais feliz3.
Aos iniciados era obrigatória a observação de determinadas práticas, abstenções e rituais de purificação. Tais cuidados visavam purificar a alma de sua existência corpórea e garantir a convivência harmoniosa dos homens, entre si e com a divindade.

Imagens da morte na mitologia e na literatura
Como os demais aspectos da religião helênica, as concepções que os gregos tiveram sobre a alma e a morte estiveram condicionadas à sua experiência mitológica, uma vez que os relatos míticos ditavam aos vivos as esperanças em relação à existência.
Já citamos aqui a famosa passagem da Odisséia, na qual que Odisseu escuta Aquiles lamentar-se da sua condição de morto. Devido a esta passagem, tornou-se comum acreditar que os gregos valorizavam o presente e nutriam expectativas pela vida na terra, uma vez que tinham a sombria descrição feita por Aquiles como única alternativa para o além, uma existência estéril e bucólica no Hades.
Em nossas pesquisas a respeito das religiosidades greco-helenísticas, freqüentemente temos encontrado referências à preocupação do homem grego (helenístico e também romano) em relação ao destino da alma. Em uma comunicação apresentada no II Colóquio de Pesquisas da História, ocorrido na Faculdade de História da Universidade Federal de Goiás em junho de 20094, discutimos exaustivamente os símbolos que aparecem no Hino Homérico a Deméter como prenúncio do caráter funerário do mito e soteriológico dos Mistérios de Elêusis.
O hino denuncia a morte como o mais certo destino para toda a humanidade, mas ao mesmo tempo anuncia que há, através da iniciação no culto àquelas duas deusas, a esperança de salvação da alma. Ao contrário da religião cristã, na qual o que está em cheque não é a existência da alma, mas a sua redenção ou condenação eterna, encontramos na soteriologia mistérica a oferta da salvação como continuação da vida terrena, nada mais que um prolongamento da própria existência em um lugar especial.
O que encontramos no pensamento grego, a despeito de toda a sua pluralidade, parece-nos uma sofisticação das crenças de seus antecessores indo-europeus e cretenses.
A religião funerária preocupou-se com a própria vida, não com a punição ou gratificação póstuma de um indivíduo por seus crimes e virtudes em vida. A intenção é, afinal, conceder à humanidade a continuação desta existência, por si mesma incrível.

Conclusão
Tentamos demonstrar neste artigo como a preocupação com a alma humana e o seu destino post-mortem existiram no pensamento grego, mesmo enquanto um aparente descaso parecia se lhe impor. João Evangelista M. Terra, estudando a filosofia de Platão, concluiu que o verdadeiro objetivo da vida (para os platônicos) era viver em função da virtude e livrar-se dos condicionamentos materiais. Desta forma, morrer seria apenas uma parte da vida e também uma realização humana. Por outro lado, já que a imortalidade era prerrogativa dos deuses, a imortalidade da alma era uma concessão de participação na existência divina (TERRA, 2001: 487).
Enquanto a reprodução é uma necessidade inata e instintiva de todos os animais irracionais, a racionalidade humana também se impôs a necessidade da sua própria sobrevivência através dos séculos. A pretensão de preservar os conhecimentos e as descobertas da humanidade, aliada ao temor em relação ao desconhecido que é a morte, criou nos homens uma vontade de viver que aspirou (e ainda aspira) à eternidade.
E uma vez que nossos corpos estão fadados ao destino inexorável da morte, esperamos que alguma parte de nós possa sobreviver de alguma forma e extender a nossa existência para sempre. Certamente foi neste sentido que descobrimos a alma, nossa parcela imortal e incorruptível capaz de sobreviver à morte e ao tempo.

Revista Alétheia

Um comentário:

Márcio dos Santos disse...

E esse notebook que a menina da escultura está segurando?