Idade das Trevas: A idade da incerteza
Um grupo de arqueólogos acredita que, no século19, a história da Grécia antiga ganhou centenas deanos que simplesmente nunca existiram. Para provaro que estão dizendo, procuram respostas no Egito
por Ricardo Giassetti
A história tradicional conta que, entre 1200 a.C. e 700 a.C., a Grécia passou por uma Idade das Trevas. Logo após a famosa Guerra de Tróia, a exuberante civilização micênica, que vivia naquela região, praticamente regrediu à barbárie. O povo foi abandonando as cidades e partiu para o campo. Nesse êxodo, a arte da escrita acabou perdida. Nenhum registro foi preservado. Durante um bom tempo, isso foi consenso entre os estudiosos. Mas, nas últimas décadas, alguns arqueólogos tentam provar que tal época teria durado bem menos que 500 anos – ou talvez nem tenha existido. São os chamados revisionistas, que defendem a tese de que tudo foi causado por uma confusão feita no século 19. Afinal, até aquela época, ninguém tinha falado em uma Idade das Trevas. O termo foi adicionado à história grega somente no fim daquele período por egiptólogos ingleses.
Assim que o francês Jean-François Champollion começou a decifrar a escrita egípcia, na década de 1820, foi dada a largada para uma corrida maluca: investigando inscrições em templos e papiros, todo arqueólogo queria ser o descobridor de um novo faraó. Como guia para a tarefa, escolheram a lista do escriba Manetho, um rol de 30 dinastias de reis egípcios escrito no século 3 a.C. – encomendado pelo faraó Ptolomeu II, com o objetivo de estabelecer uma correlação entre as culturas egípcia e grega. A lista tinha uma linha temporal aparentemente completa do Egito. Já para os gregos, o período conhecido pelos estudiosos era bem menor. Segundo os revisionistas, esta seria a chave do problema: como a cronologia egípcia foi oficializada para reger a história antiga, o tempo dos gregos teve que ser “esticado” para ficar do mesmo tamanho. Como resultado, fizeram-se as trevas – ou melhor, inventaram a Idade das Trevas.
Há evidências que parecem sustentar o pensamento dos revisionistas. Um exemplo vem da literatura. Ao fim da Idade das Trevas, Homero escreveu os versos da Ilíada e da Odisséia, poemas que narram os eventos da Guerra de Tróia. Mas como ele teria conseguido descrever com detalhes os costumes e armas daquela época 500 anos depois do combate? E se durante esse intervalo não havia escrita, textos de outros autores também não poderiam ter servido como referência.
Uma possibilidade é que a história de Tróia tenha sido transformada em poemas e passado de boca em boca até chegar ao autor. “Homero, ou quem quer que tenha sido o autor de Ilíada e Odisséia, deu uma forma escrita a produtos diversificados da literatura oral que podem remontar à época micênica”, afirma Elaine Hirata, arqueóloga do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
De qualquer modo, por que Homero não compôs nenhum verso sobre os 500 anos posteriores à Guerra de Tróia? Uma Idade das Trevas deve representar algo marcante para um povo, mas esse período tampouco é mencionado pelos outros autores gregos. Para os revisionistas, portanto, seria muito mais lógico se esse intervalo – que coincidiu com a troca da escrita anterior por um novo alfabeto – fosse, na verdade, uma transição de algumas décadas e não um blecaute de cinco séculos.
Como se não bastasse, a lista de Manetho, usada como referência , também parece ter alguns furos. Documentos importantes do Egito foram roubados ou destruídos em invasões. Portanto, é quase certo que o escriba não tenha tido acesso a registros seculares. O rol pode ter sido aumentado de propósito, para ostentar a tradição egípcia e menosprezar a grega. E o recurso usado para forjar a exuberância teria sido a duplicação: faraós apareceriam na cronologia mais de uma vez, identificados por nomes diferentes. Traduções podem ter tornado o documento ainda mais impreciso. Por volta de 1700, o já célebre Isaac Newton, grande físico inglês, passou a contestar a lista de Manetho. Concluiu que os faraós Sesostris e Tutmés III eram a mesma pessoa – as conquistas militares dos dois soberanos eram exatamente iguais. A pesquisa dele serviu a alguns estudiosos do século 20, que iniciaram a revisão cronológica.
A voz dos revisionistas começou a ser ouvida nos anos 50, com o controverso psicanalista russo Immanuel Velikovsky. Seus livros, como Worlds in Collision e Ages in Chaos (“Mundos em colisão” e “Eras em caos”, ambos sem tradução para o português), mesclavam teorias da física, da química e da astronomia com mitologia, religião e história. Velikovsky era categórico: a cronologia egípcia estava inteiramente equivocada. E mais: para ele, a Idade das Trevas da Grécia sequer tinha ocorrido. Devido a idéias como essas, ele foi banido da comunidade científica e perseguido intelectualmente.
Velikovsky insistiu durante dez anos que algum teste de idade – como o carbono-14 – fosse feito com material vindo do Egito, mas nenhum museu quis liberar amostras. Somente em 1963 o Museu do Cairo permitiu que amostras da tumba de Tutancâmon fossem analisadas. O resultado dos testes, realizados pela Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, foi 1120 a.C. Isso representava dois séculos a menos do que a data aceita para a morte do faraó. Em 1971, o Museu Britânico também realizou um teste, usando folhas de palmeira e junco da sala de Tutancâmon. Surgiu uma idade bem mais recente: entre 899 e 846 a.C. Essas datas nunca foram publicadas como evidência científica. O museu limitou-se a declarar que as amostras foram contaminadas e que não faziam parte das relíquias do faraó.
Os resultados dessas datações mostraram que a cronologia egípcia estava aberta a controvérsias. Em 1974, um grupo de 80 pesquisadores britânicos fundou a SIS (sigla em inglês para Sociedade de Estudos Interdisciplinares) para investigar as teorias de Velikovsky, que viria a falecer em 1979. Entre eles estavam os historiadores Peter James e David Rohl. Ambos se afastaram da SIS em 1985, mas continuam fazendo pesquisas que contestam as datas da Idade das Trevas e do Egito antigo.
David Rohl é autor de A Test of Time (“Um teste de tempo”, inédito no Brasil), de 1995, tema de um documentário exibido pelo Channel 4 da TV inglesa. A obra tenta ajustar as datas do Egito às de acontecimentos da Bíblia. Entre as conclusões está a identificação de Ramsés II como o faraó citado no Livro do Êxodo. Já James escreveu Centuries of Darkness (“Séculos de escuridão”, sem tradução em português), de 1991, em que conclui que a Idade das Trevas teria que diminuir 250 anos. “Quando o livro foi lançado, a maioria dos especialistas nos deu as costas, pois a teoria é muito revolucionária”, diz um membro da equipe de James, o arqueólogo grego Nikos Kokkinos. Segundo ele, pelo menos um entre cinco egiptólogos atuais já aceita reduzir a Idade das Trevas em 50 a 100 anos. “Dois renomados professores publicaram artigos recentes afirmando que a data correta da Guerra de Tróia está no século 10 a.C., e não no 12 a.C. A cronologia agora é tratada de forma mais aberta.”
Mesmo estudiosos que não são revisionistas admitem que existem problemas na cronologia estabelecida no século 19. “A questão é altamente complexa. Nas fontes escritas muitas vezes encontramos profundas diferenças de datações em relação às fontes arqueológicas”, diz Elaine Hirata. “É necessário analisar caso a caso, levantar as fontes e confrontá-las.” Mas os equívocos não seriam tantos a ponto, por exemplo, de renegar a lista de Manetho. “É claro que pequenos erros foram identificados nela, mas continua sendo um padrão e tem funcionado”, afirma o historiador Júlio Gralha, do Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele vê com reservas a metodologia usada por alguns revisionistas, mas acha positivo que sejam feitos estudos interdisciplinares que comparem evidências sobre diferentes locais (como Grécia e Egito). “Nem sempre tudo converge. Para ser franco, parece divergir muito”, diz.
Tempo de revisar
A controvérsiasugere mudar até mesmo oinício da Idade do Ferro
O fim da Guerra de Tróia não representa só o início da Idade das Trevas, mas também o da Idade do Ferro, marco tecnológico usado para toda a humanidade (a fundição do metal permitiu desenvolver armas e ferramentas melhores que as da Idade do Bronze). Segundo os revisionistas, essa transição ocorreu mais recentemente do que se acredita. Veja ao lado as datações tradicionais para a Grécia e o Egito e as polêmicas sobre a Idade das Trevas e Tutancâmon.
Saiba mais
Livro
A Revolução da Escrita na Grécia e suas Conseqüências Culturais, Eric A. Havelock, Unesp/Paz e Terra, 1996 - O historiador inglês investiga a autoria da obra de Homero e o renascimento da escrita na Grécia.
SITE
www.thebritishmuseum.ac.uk/world/egypt/egypt.html - O Império Egípcio segundo o Museu Britânico, que tem a maior coleção sobre o tema fora do Cairo.
Revista Aventuras na História
Um grupo de arqueólogos acredita que, no século19, a história da Grécia antiga ganhou centenas deanos que simplesmente nunca existiram. Para provaro que estão dizendo, procuram respostas no Egito
por Ricardo Giassetti
A história tradicional conta que, entre 1200 a.C. e 700 a.C., a Grécia passou por uma Idade das Trevas. Logo após a famosa Guerra de Tróia, a exuberante civilização micênica, que vivia naquela região, praticamente regrediu à barbárie. O povo foi abandonando as cidades e partiu para o campo. Nesse êxodo, a arte da escrita acabou perdida. Nenhum registro foi preservado. Durante um bom tempo, isso foi consenso entre os estudiosos. Mas, nas últimas décadas, alguns arqueólogos tentam provar que tal época teria durado bem menos que 500 anos – ou talvez nem tenha existido. São os chamados revisionistas, que defendem a tese de que tudo foi causado por uma confusão feita no século 19. Afinal, até aquela época, ninguém tinha falado em uma Idade das Trevas. O termo foi adicionado à história grega somente no fim daquele período por egiptólogos ingleses.
Assim que o francês Jean-François Champollion começou a decifrar a escrita egípcia, na década de 1820, foi dada a largada para uma corrida maluca: investigando inscrições em templos e papiros, todo arqueólogo queria ser o descobridor de um novo faraó. Como guia para a tarefa, escolheram a lista do escriba Manetho, um rol de 30 dinastias de reis egípcios escrito no século 3 a.C. – encomendado pelo faraó Ptolomeu II, com o objetivo de estabelecer uma correlação entre as culturas egípcia e grega. A lista tinha uma linha temporal aparentemente completa do Egito. Já para os gregos, o período conhecido pelos estudiosos era bem menor. Segundo os revisionistas, esta seria a chave do problema: como a cronologia egípcia foi oficializada para reger a história antiga, o tempo dos gregos teve que ser “esticado” para ficar do mesmo tamanho. Como resultado, fizeram-se as trevas – ou melhor, inventaram a Idade das Trevas.
Há evidências que parecem sustentar o pensamento dos revisionistas. Um exemplo vem da literatura. Ao fim da Idade das Trevas, Homero escreveu os versos da Ilíada e da Odisséia, poemas que narram os eventos da Guerra de Tróia. Mas como ele teria conseguido descrever com detalhes os costumes e armas daquela época 500 anos depois do combate? E se durante esse intervalo não havia escrita, textos de outros autores também não poderiam ter servido como referência.
Uma possibilidade é que a história de Tróia tenha sido transformada em poemas e passado de boca em boca até chegar ao autor. “Homero, ou quem quer que tenha sido o autor de Ilíada e Odisséia, deu uma forma escrita a produtos diversificados da literatura oral que podem remontar à época micênica”, afirma Elaine Hirata, arqueóloga do Museu de Arqueologia e Etnologia da Universidade de São Paulo.
De qualquer modo, por que Homero não compôs nenhum verso sobre os 500 anos posteriores à Guerra de Tróia? Uma Idade das Trevas deve representar algo marcante para um povo, mas esse período tampouco é mencionado pelos outros autores gregos. Para os revisionistas, portanto, seria muito mais lógico se esse intervalo – que coincidiu com a troca da escrita anterior por um novo alfabeto – fosse, na verdade, uma transição de algumas décadas e não um blecaute de cinco séculos.
Como se não bastasse, a lista de Manetho, usada como referência , também parece ter alguns furos. Documentos importantes do Egito foram roubados ou destruídos em invasões. Portanto, é quase certo que o escriba não tenha tido acesso a registros seculares. O rol pode ter sido aumentado de propósito, para ostentar a tradição egípcia e menosprezar a grega. E o recurso usado para forjar a exuberância teria sido a duplicação: faraós apareceriam na cronologia mais de uma vez, identificados por nomes diferentes. Traduções podem ter tornado o documento ainda mais impreciso. Por volta de 1700, o já célebre Isaac Newton, grande físico inglês, passou a contestar a lista de Manetho. Concluiu que os faraós Sesostris e Tutmés III eram a mesma pessoa – as conquistas militares dos dois soberanos eram exatamente iguais. A pesquisa dele serviu a alguns estudiosos do século 20, que iniciaram a revisão cronológica.
A voz dos revisionistas começou a ser ouvida nos anos 50, com o controverso psicanalista russo Immanuel Velikovsky. Seus livros, como Worlds in Collision e Ages in Chaos (“Mundos em colisão” e “Eras em caos”, ambos sem tradução para o português), mesclavam teorias da física, da química e da astronomia com mitologia, religião e história. Velikovsky era categórico: a cronologia egípcia estava inteiramente equivocada. E mais: para ele, a Idade das Trevas da Grécia sequer tinha ocorrido. Devido a idéias como essas, ele foi banido da comunidade científica e perseguido intelectualmente.
Velikovsky insistiu durante dez anos que algum teste de idade – como o carbono-14 – fosse feito com material vindo do Egito, mas nenhum museu quis liberar amostras. Somente em 1963 o Museu do Cairo permitiu que amostras da tumba de Tutancâmon fossem analisadas. O resultado dos testes, realizados pela Universidade da Pensilvânia, nos Estados Unidos, foi 1120 a.C. Isso representava dois séculos a menos do que a data aceita para a morte do faraó. Em 1971, o Museu Britânico também realizou um teste, usando folhas de palmeira e junco da sala de Tutancâmon. Surgiu uma idade bem mais recente: entre 899 e 846 a.C. Essas datas nunca foram publicadas como evidência científica. O museu limitou-se a declarar que as amostras foram contaminadas e que não faziam parte das relíquias do faraó.
Os resultados dessas datações mostraram que a cronologia egípcia estava aberta a controvérsias. Em 1974, um grupo de 80 pesquisadores britânicos fundou a SIS (sigla em inglês para Sociedade de Estudos Interdisciplinares) para investigar as teorias de Velikovsky, que viria a falecer em 1979. Entre eles estavam os historiadores Peter James e David Rohl. Ambos se afastaram da SIS em 1985, mas continuam fazendo pesquisas que contestam as datas da Idade das Trevas e do Egito antigo.
David Rohl é autor de A Test of Time (“Um teste de tempo”, inédito no Brasil), de 1995, tema de um documentário exibido pelo Channel 4 da TV inglesa. A obra tenta ajustar as datas do Egito às de acontecimentos da Bíblia. Entre as conclusões está a identificação de Ramsés II como o faraó citado no Livro do Êxodo. Já James escreveu Centuries of Darkness (“Séculos de escuridão”, sem tradução em português), de 1991, em que conclui que a Idade das Trevas teria que diminuir 250 anos. “Quando o livro foi lançado, a maioria dos especialistas nos deu as costas, pois a teoria é muito revolucionária”, diz um membro da equipe de James, o arqueólogo grego Nikos Kokkinos. Segundo ele, pelo menos um entre cinco egiptólogos atuais já aceita reduzir a Idade das Trevas em 50 a 100 anos. “Dois renomados professores publicaram artigos recentes afirmando que a data correta da Guerra de Tróia está no século 10 a.C., e não no 12 a.C. A cronologia agora é tratada de forma mais aberta.”
Mesmo estudiosos que não são revisionistas admitem que existem problemas na cronologia estabelecida no século 19. “A questão é altamente complexa. Nas fontes escritas muitas vezes encontramos profundas diferenças de datações em relação às fontes arqueológicas”, diz Elaine Hirata. “É necessário analisar caso a caso, levantar as fontes e confrontá-las.” Mas os equívocos não seriam tantos a ponto, por exemplo, de renegar a lista de Manetho. “É claro que pequenos erros foram identificados nela, mas continua sendo um padrão e tem funcionado”, afirma o historiador Júlio Gralha, do Núcleo de Estudos da Antiguidade da Universidade Estadual do Rio de Janeiro. Ele vê com reservas a metodologia usada por alguns revisionistas, mas acha positivo que sejam feitos estudos interdisciplinares que comparem evidências sobre diferentes locais (como Grécia e Egito). “Nem sempre tudo converge. Para ser franco, parece divergir muito”, diz.
Tempo de revisar
A controvérsiasugere mudar até mesmo oinício da Idade do Ferro
O fim da Guerra de Tróia não representa só o início da Idade das Trevas, mas também o da Idade do Ferro, marco tecnológico usado para toda a humanidade (a fundição do metal permitiu desenvolver armas e ferramentas melhores que as da Idade do Bronze). Segundo os revisionistas, essa transição ocorreu mais recentemente do que se acredita. Veja ao lado as datações tradicionais para a Grécia e o Egito e as polêmicas sobre a Idade das Trevas e Tutancâmon.
Saiba mais
Livro
A Revolução da Escrita na Grécia e suas Conseqüências Culturais, Eric A. Havelock, Unesp/Paz e Terra, 1996 - O historiador inglês investiga a autoria da obra de Homero e o renascimento da escrita na Grécia.
SITE
www.thebritishmuseum.ac.uk/world/egypt/egypt.html - O Império Egípcio segundo o Museu Britânico, que tem a maior coleção sobre o tema fora do Cairo.
Revista Aventuras na História
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