Êxodo: a longa odisséia humana
Atrás de comida, terra ou trabalho, a humanidade se move. Desde os caçadores da Pré-História até as hordas de refugiados da atualidade, o homem sempre esteve em busca de um lugar para viver melhor
por Celso Miranda
Nomadismo, fugas em massa, invasões militares, expedições comerciais e colonizações construíram o mundo como nós conhecemos. A primeira dessas viagens tirou da África nossos ancestrais e os espalhou pelo mundo. Há 1,7 milhão de anos, o clima do planeta deu um refresco, o que ocasionou o aumento da população e, conseqüentemente, da fome. E o Homo ergaster pôs o pé na estrada. Depois dele, sucessivas levas de hominídeos – cada vez mais evoluídos – seguiram avançando em busca de melhores condições de vida, até alcançar a Europa, onde, segundo o paleontólogo Richard Leakey, autor de A Origem da Espécie Humana, a presença do homem data de 700 mil anos atrás.
Já em tempos de homem moderno (Homo sapiens sapiens), ocorreu o povoamento do continente americano, um dos episódios mais polêmicos dessa longa história. A tese mais aceita entre os especialistas diz que os primeiros americanos eram caçadores, que há uns 15 mil anos deixaram a Ásia e atravessaram o estreito de Bering, no extremo norte do continente americano. Segundo a antropóloga Sheila Mendonça, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, esses homens já conheciam o fogo e produziam ferramentas. Cobertos de peles, deslocavam-se atrás de mamutes, bisões e cavalos em pequenos grupos de 30 a 40 indivíduos. Desconheciam a agricultura e o pastoreio e viviam da coleta de frutos, da caça e da pesca.
Outras teorias sobre a chegada do homem na América têm ganhado força, nos últimos anos, como a da travessia do Pacífico por polinésios. É o que acredita o paleoparasitólogo Adauto Araújo, também da Fiocruz. “Ovos de parasitas comuns entre asiáticos foram encontrados em sítios arqueológicos americanos, mostrando que deve ter havido uma outra rota de penetração no continente, já que sob as baixas temperaturas do norte esses parasitas não teriam sobrevivido”, diz Adauto.
A pé ou navegando o Pacífico, os homens venceram uma aventura e tanto. A natureza exploradora dos “sapiens” e sua capacidade migratória foi um dos fatores de seu sucesso como espécie.
Terra para plantar
Por volta de 8000 a.C., durante o período neolítico, ocorreu a chamada Revolução Agrícola. Com o recuo das geleiras e a melhor definição do clima, os animais (e, com eles, nós mesmos) não tinham mais que andar tanto para conseguir alimentos e passaram a se concentrar em determinadas regiões. O homem começou a conviver mais com os animais e surgiram as primeiras criações de porcos, carneiros e bois. A agricultura surgiu a seguir, quando os homens observaram que algumas sementes que usavam para se alimentar germinavam quando caíam em solo apropriado.
O domínio das técnicas de agricultura deu uma baita vantagem a esses grupos, que rapidamente cresceram e se espalharam. Em busca de terra, eles chegaram às planícies entre os rios Tigre e Eufrates (no atual Iraque), aos vales dos rios Nilo, no Egito, e Amarelo, na China. Ali, encontraram recursos necessários à sua sobrevivência e estabeleceram aldeias, depois cidades e, enfim, civilizações. Mas se engana quem pensa que as despensas repletas de alimentos puseram um ponto final nas andanças da humanidade. Se, quando deixamos de ser nômades, criamos civilizações como a egípcia, a babilônica e a chinesa, com o sedentarismo surgiram novas demandas. “A agricultura primitiva exigia grandes áreas e muita mão-de-obra. Assim, seja para plantar e colher, seja para construir barragens ou simplesmente para deixar o terreno livre, tribos inteiras foram aprisionadas ou expulsas de seus territórios”, diz Hilton da Silva, antropólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Exemplos de diásporas não faltam entre os povos da Antiguidade, como os hebreus e babilônicos.
Na Europa, as levas de povos agricultores chegaram por volta de 3000 a.C.: no sul, eles ocuparam Creta, Chipre e a região Tessália e, mais tarde, deram origem ao mundo greco-latino, enquanto no centro e no oeste serviram de matriz para os povos celtas e germânicos.
Bárbaros e cruzados
O sedentarismo não convenceu a todos e os nômades continuaram a existir e prosperar. O encontro entre esses dois modos de vida nem sempre foi pacífico. Muito antes de o Império Romano estender seus domínios sobre grande parte do mundo, mudanças climáticas, crises demográficas ou a ânsia por novas terras levaram muitos povos a invadir o quintal alheio. As fronteiras simplesmente não existiam, e “país” era aquilo que se podia ou se conseguia defender.
No século 12 a.C., um desses deslocamentos forçados ocorreu quando as tribos dórias, atacadas por nômades vindos da Ásia, avançaram com suas modernas armas de ferro sobre o território grego. A próspera civilização micênica foi destruída e milhares de gregos deixaram a região rumo à Ásia Menor. Grandes cidades como Tirinto e Argos foram arrasadas e a escrita micênica extinta.
Quatro séculos depois, o leste europeu foi abalado por outro violento fluxo populacional. Entre os anos 800 e 400 a.C., tribos originárias das estepes asiáticas forçaram os povos germânicos em direção ao mar Báltico e os celtas, que ocupavam toda a Europa central, foram expulsos. Em 386 a.C., eles cruzaram os Alpes, invadiram a península Itálica e saquearam Roma. Em seguida címbrios e teutônios partiram da atual Dinamarca em direção a Roma. Os romanos sofreram, mas detiveram o avanço e, com o fortalecimento do Império, estabeleceram fronteiras ao longo dos rios Reno e Danúbio.
As linhas de defesa se mantiveram até o século 2, quando novas invasões as romperam definitivamente. Durante mais de dois séculos, tribos germânicas avançaram sobre o império em busca de terras férteis, alimento e abrigo. Foi o exemplo dos godos, talvez os mais avançados entre os povos bárbaros, que haviam partido da atual Suécia em 50 a.C. e no século 3 já ocupavam as atuais Polônia e Alemanha. Ali, onde passaram a ser chamados de visigodos (ou godos do oeste), conviviam numa boa com os romanos. No entanto, algo ocorreu em 376.
“Vagando pelas estepes asiáticas em direção ao oeste a partir de 370, os hunos obrigaram os germânicos a penetrar no Império Romano para se proteger”, diz a historiadora Vânia Fróes, da Universidade Federal Fluminense. Os primeiros foram os visigodos. Em 408, invadiram Roma. Em seguida, cerca de 300 mil suevos, vândalos e alanos cruzaram os Pirineus e entraram na península Ibérica, devastando as províncias romanas. Os anglo-saxões conquistaram o território da atual Inglaterra. Os burgúndios fixaram-se no sul da França e os francos ocuparam o norte.
“Esses deslocamentos populacionais tiveram enorme importância para a história. Não apenas destruíram o Império Romano do Ocidente, como deram origem aos estados nacionais europeus, a partir de um novo sistema político e econômico, o feudalismo”, diz Vânia.
Seiscentos anos depois, a violência novamente motivou um grande deslocamento de pessoas: as Cruzadas. Convocados pela Igreja de Roma, milhares se dispuseram a caminhar até a chamada Terra Santa, ou seja, os territórios da atual Síria e Israel, que estava ocupada por praticantes de outra fé: os muçulmanos. Segundo o historiador britânico Steve Runciman, autor de História das Cruzadas, no entanto, a religião não foi o único motivador da peregrinação. “A Europa vivia um grande crescimento econômico e populacional e as Cruzadas atenderam às pressões por terra e oportunidades”, escreve Runciman. Entre os séculos 11 e 12, durante as nove expedições, cerca de 250 mil europeus se estabeleceram na região.
Mas as Cruzadas tiveram outro impacto para a história da Europa e dos deslocamentos humanos. Elas reabriram o Mediterrâneo para a navegação e reativaram o comércio. Em breve, o homem estaria pronto para sua próxima viagem.
Velas ao mar
As navegações dos séculos 15 e 16 levaram os europeus para a África, a Ásia e, sobretudo, para a América. Dessa vez eram governos, instituições (incluindo as igrejas) e empresas mercantis que queriam colonizar novos territórios. Só no primeiro século de colonização 100 mil espanhóis, 60 mil portugueses, 50 mil ingleses, 20 mil holandeses e 10 mil franceses vieram para cá.
No entanto, foi com a emancipação dos Estados americanos que ocorreu o maior movimento de pessoas da história. Entre 1800 e 1940, 55 milhões de pessoas trocaram a Europa pela América. Nos Estados Unidos, entraram 1,2 milhão de estrangeiros ao ano, durante as duas primeiras décadas do século 20. Brasil e Argentina também abriram suas portas e receberam, nesse período, 12 milhões de pessoas, sobretudo italianos, espanhóis e portugueses. Muitos asiáticos também emigraram para a América, principalmente japoneses para o Brasil e chineses para os Estados Unidos. Todos atraídos pela demanda global por trabalhadores para as lavouras e, depois, para as cidades. “A penetração gradual dos migrantes deu início à formação do atual sistema mundial e à noção de ‘encolhimento’ do mundo. Pessoas e informações começaram a circular mais rápido pelo planeta”, diz o antropólogo Gustavo Lins Ribeiro, da Universidade de Brasília.
Refugiados
Os conflitos do século 20 também provocaram o deslocamento de milhões de pessoas. No período entre uma e outra guerra mundial, os ajustes fronteiriços nos desintegrados impérios Otomano e Austro-Húngaro exigiram migrações sem precedentes. Em 1923, 1 milhão de gregos deixaram a Ásia Menor, enquanto 300 mil turcos fizeram o caminho contrário. As mudanças de fronteiras e de regimes políticos trouxeram à tona um novo tipo de migrante: o refugiado.
Para a Convenção de Genebra, refugiados são pessoas obrigadas a emigrar para fugir de perseguições em virtude de raça, religião ou idéias políticas. E foi para escapar dos hindus que 16 milhões de muçulmanos saíram da Índia, em 1947, após a independência, que dividiu o país e criou o Paquistão. Na África, cerca de 14 milhões de pessoas deixaram suas casas por causa de guerras, fome ou perseguições étnicas, de acordo com o Comitê para Refugiados dos Estados Unidos. Atualmente, a maior população de refugiados é a de afegãos: 4,5 milhões de pessoas. Segundo a entidade, o número de refugiados no mundo após os atentados de 11 de setembro cresceu 2,7%, chegando aos 22 milhões.
Apesar de guerras e intolerância, hoje a maior motivação para as migrações é a procura por trabalho. A chamada migração laboral afeta mais de 135 milhões de pessoas. Em números totais, os Estados Unidos lideram com 35 milhões de imigrantes. Rússia, com 13 milhões, e Alemanha, com 7 milhões, vêm a seguir. Do ponto de vista percentual destacam-se o Kuwait, com 25% de seus postos de trabalho ocupados por estrangeiros, e Singapura, onde os 350 mil emigrantes somam quase 20% dos trabalhadores.
A Declaração dos Direitos Humanos diz que “todos têm direito a circular livremente e a escolher sua residência no território de um Estado”. Apesar disso, nos últimos anos o que se vê é a criação de restrições a esse trânsito. Em 1976, 6% dos países possuíam leis para reprimir a migração. Em 2001, antes do 11 de Setembro, 46% já tinham.
Os migrantes do século 21 são vistos com desconfiança. Se de um lado são necessários para fazer a economia funcionar em países de baixas taxas de natalidade ou nos quais ninguém quer fazer trabalhos braçais, de outro são encarados como aqueles que vão roubar o emprego ou os serviços sociais das populações locais. O migrante, hoje, representa o alienígena social, étnico ou religioso. O homem desse século se esqueceu de que ele também é um estrangeiro, num mundo que é o resultado de milênios de caminhadas de outros homens em busca da sobrevivência.
Diáspora negra
Tráfico de africanosocorreu por 300 anos
O número de seres humanos tirados à força de sua terra natal durante o chamado tráfico negreiro é difícil precisar. Calcula-se que cerca de 12 milhões de pessoas foram caçadas em suas aldeias e vendidas por mercadores muçulmanos e portugueses ou capturadas por outras tribos e trocadas por produtos exóticos. Companhias de comércio holandesas e inglesas fizeram disso um lucrativo negócio no século 17. “Foi quando milhões de escravos foram trazidos para a América”, diz o historiador Fábio Bertonha, do Centro de Estudos de Migrações Internacionais, de Campinas. Embarcados em navios cujas condições insalubres matavam de 40% a 60% das pessoas, os africanos eram levados a mercados espalhados pela América. No Brasil, o tráfico negreiro começou em 1550 e, até meados do século 17, 350 mil africanos foram introduzidos nas plantações de cana. No século 18, esse número chegou a 1,6 milhão. Na primeira metade do século 19, o volume dobrou com a lavoura cafeeira. Até 1850, cerca de 3,3 milhões de africanos foram trazidos à força para o país.
Vida cigana
Sua disposição para enfrentara estrada atravessou séculose chegou aos dias atuais
Em toda a história talvez nenhum povo tenha ficado tão conhecido por suas andanças quanto os ciganos. Na verdade, “ciganos” é um termo genérico para designar a população que migrou da Índia no século 11 em direção ao oeste. Na Pérsia, uma parte deles teria permanecido no Império Bizantino por três séculos e de lá se dividido em dois ramos migratórios: um atravessou o Egito e se instalou no norte da África. Outro seguiu para a Europa, através dos Bálcãs. Apesar de os lingüistas terem descoberto o local de partida desse povo por meio da comparação entre dialetos que compõem a língua cigana, chamada romanês, e antigas línguas indianas, pouco se pode afirmar sobre sua origem. Alguns especialistas sugerem que eles pertençam a um grupo de viajantes muito antigo que nunca parou de se deslocar. Outros supõem que eram povos sedentários forçados a deixar as terras indianas devido ao movimento de expansão de novos grupos. “Diferentemente de outros povos migrantes que se misturaram e deram origem a outros, por formarem um grupo relativamente fechado e estarem sempre em movimento, os ciganos preservaram sua identidade cultural, mesmo se espalhando pelo mundo”, diz a antropóloga Florência Ferrari, da Unicamp. Segundo ela, esse tipo de deslocamento está associado ao modo de ser cigano, à sua cultura, ao seu pensamento. “Os ciganos fazem da viagem um traço cultural distintivo em relação aos gadjé, ou não-ciganos, sabendo que estes vão ver no nomadismo uma diferença”, afirma Florência. O desapego em relação aos países por onde passam – muitas vezes às leis e costumes desses lugares – fez com que os ciganos sejam sempre vistos como estrageiros, não importa onde estejam. Durante a consolidação dos Estados nacionais na Europa, o nomadismo dos ciganos era visto com uma ameaça política. Governos e Igreja desencadearam violentos mecanismos de perseguição. Deportações, torturas e matanças foram praticadas entre os ciganos até data recente. Acredita-se que meio milhão de ciganos tenham sido executados pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Essas perseguições foram responsáveis por grandes ondas migratórias de ciganos, inclusive para o Brasil. Mas o nomadismo cigano é muito mais que uma reação às perseguições que enfrentaram. “Quando o povo cigano se vê obrigado a se deslocar, a viagem propriamente dita não é motivo de sofrimento. Não se encontra na cultura cigana nenhum apego ao território, nenhuma saudade de um lugar ancestral. O deslocamento é uma alternativa consciente”, diz Florência.
Saiba mais
Livros
A Origem da Espécia Humana, Richard Leakey, Rocco, 1997 - Sobre a raiz ancestral das migrações humanas
Genes, Povos e Línguas, Luigi Carvalli-Sforza, Companhia das Letras, 2003 - Mapeamento das principais movimentações de povos e civilizações
A Sociedade Feudal, Marc Bloch, Edições 70, 1997 - Para entender as invasões de bárbaros da Europa e as Cruzadas
Revista Aventuras na Historia