sexta-feira, 26 de junho de 2009

Êxodo: a longa odisséia humana


Êxodo: a longa odisséia humana
Atrás de comida, terra ou trabalho, a humanidade se move. Desde os caçadores da Pré-História até as hordas de refugiados da atualidade, o homem sempre esteve em busca de um lugar para viver melhor
por Celso Miranda
Nomadismo, fugas em massa, invasões militares, expedições comerciais e colonizações construíram o mundo como nós conhecemos. A primeira dessas viagens tirou da África nossos ancestrais e os espalhou pelo mundo. Há 1,7 milhão de anos, o clima do planeta deu um refresco, o que ocasionou o aumento da população e, conseqüentemente, da fome. E o Homo ergaster pôs o pé na estrada. Depois dele, sucessivas levas de hominídeos – cada vez mais evoluídos – seguiram avançando em busca de melhores condições de vida, até alcançar a Europa, onde, segundo o paleontólogo Richard Leakey, autor de A Origem da Espécie Humana, a presença do homem data de 700 mil anos atrás.

Já em tempos de homem moderno (Homo sapiens sapiens), ocorreu o povoamento do continente americano, um dos episódios mais polêmicos dessa longa história. A tese mais aceita entre os especialistas diz que os primeiros americanos eram caçadores, que há uns 15 mil anos deixaram a Ásia e atravessaram o estreito de Bering, no extremo norte do continente americano. Segundo a antropóloga Sheila Mendonça, da Fundação Oswaldo Cruz, no Rio de Janeiro, esses homens já conheciam o fogo e produziam ferramentas. Cobertos de peles, deslocavam-se atrás de mamutes, bisões e cavalos em pequenos grupos de 30 a 40 indivíduos. Desconheciam a agricultura e o pastoreio e viviam da coleta de frutos, da caça e da pesca.

Outras teorias sobre a chegada do homem na América têm ganhado força, nos últimos anos, como a da travessia do Pacífico por polinésios. É o que acredita o paleoparasitólogo Adauto Araújo, também da Fiocruz. “Ovos de parasitas comuns entre asiáticos foram encontrados em sítios arqueológicos americanos, mostrando que deve ter havido uma outra rota de penetração no continente, já que sob as baixas temperaturas do norte esses parasitas não teriam sobrevivido”, diz Adauto.

A pé ou navegando o Pacífico, os homens venceram uma aventura e tanto. A natureza exploradora dos “sapiens” e sua capacidade migratória foi um dos fatores de seu sucesso como espécie.

Terra para plantar

Por volta de 8000 a.C., durante o período neolítico, ocorreu a chamada Revolução Agrícola. Com o recuo das geleiras e a melhor definição do clima, os animais (e, com eles, nós mesmos) não tinham mais que andar tanto para conseguir alimentos e passaram a se concentrar em determinadas regiões. O homem começou a conviver mais com os animais e surgiram as primeiras criações de porcos, carneiros e bois. A agricultura surgiu a seguir, quando os homens observaram que algumas sementes que usavam para se alimentar germinavam quando caíam em solo apropriado.

O domínio das técnicas de agricultura deu uma baita vantagem a esses grupos, que rapidamente cresceram e se espalharam. Em busca de terra, eles chegaram às planícies entre os rios Tigre e Eufrates (no atual Iraque), aos vales dos rios Nilo, no Egito, e Amarelo, na China. Ali, encontraram recursos necessários à sua sobrevivência e estabeleceram aldeias, depois cidades e, enfim, civilizações. Mas se engana quem pensa que as despensas repletas de alimentos puseram um ponto final nas andanças da humanidade. Se, quando deixamos de ser nômades, criamos civilizações como a egípcia, a babilônica e a chinesa, com o sedentarismo surgiram novas demandas. “A agricultura primitiva exigia grandes áreas e muita mão-de-obra. Assim, seja para plantar e colher, seja para construir barragens ou simplesmente para deixar o terreno livre, tribos inteiras foram aprisionadas ou expulsas de seus territórios”, diz Hilton da Silva, antropólogo da Universidade Federal do Rio de Janeiro. Exemplos de diásporas não faltam entre os povos da Antiguidade, como os hebreus e babilônicos.

Na Europa, as levas de povos agricultores chegaram por volta de 3000 a.C.: no sul, eles ocuparam Creta, Chipre e a região Tessália e, mais tarde, deram origem ao mundo greco-latino, enquanto no centro e no oeste serviram de matriz para os povos celtas e germânicos.

Bárbaros e cruzados

O sedentarismo não convenceu a todos e os nômades continuaram a existir e prosperar. O encontro entre esses dois modos de vida nem sempre foi pacífico. Muito antes de o Império Romano estender seus domínios sobre grande parte do mundo, mudanças climáticas, crises demográficas ou a ânsia por novas terras levaram muitos povos a invadir o quintal alheio. As fronteiras simplesmente não existiam, e “país” era aquilo que se podia ou se conseguia defender.

No século 12 a.C., um desses deslocamentos forçados ocorreu quando as tribos dórias, atacadas por nômades vindos da Ásia, avançaram com suas modernas armas de ferro sobre o território grego. A próspera civilização micênica foi destruída e milhares de gregos deixaram a região rumo à Ásia Menor. Grandes cidades como Tirinto e Argos foram arrasadas e a escrita micênica extinta.

Quatro séculos depois, o leste europeu foi abalado por outro violento fluxo populacional. Entre os anos 800 e 400 a.C., tribos originárias das estepes asiáticas forçaram os povos germânicos em direção ao mar Báltico e os celtas, que ocupavam toda a Europa central, foram expulsos. Em 386 a.C., eles cruzaram os Alpes, invadiram a península Itálica e saquearam Roma. Em seguida címbrios e teutônios partiram da atual Dinamarca em direção a Roma. Os romanos sofreram, mas detiveram o avanço e, com o fortalecimento do Império, estabeleceram fronteiras ao longo dos rios Reno e Danúbio.

As linhas de defesa se mantiveram até o século 2, quando novas invasões as romperam definitivamente. Durante mais de dois séculos, tribos germânicas avançaram sobre o império em busca de terras férteis, alimento e abrigo. Foi o exemplo dos godos, talvez os mais avançados entre os povos bárbaros, que haviam partido da atual Suécia em 50 a.C. e no século 3 já ocupavam as atuais Polônia e Alemanha. Ali, onde passaram a ser chamados de visigodos (ou godos do oeste), conviviam numa boa com os romanos. No entanto, algo ocorreu em 376.

“Vagando pelas estepes asiáticas em direção ao oeste a partir de 370, os hunos obrigaram os germânicos a penetrar no Império Romano para se proteger”, diz a historiadora Vânia Fróes, da Universidade Federal Fluminense. Os primeiros foram os visigodos. Em 408, invadiram Roma. Em seguida, cerca de 300 mil suevos, vândalos e alanos cruzaram os Pirineus e entraram na península Ibérica, devastando as províncias romanas. Os anglo-saxões conquistaram o território da atual Inglaterra. Os burgúndios fixaram-se no sul da França e os francos ocuparam o norte.

“Esses deslocamentos populacionais tiveram enorme importância para a história. Não apenas destruíram o Império Romano do Ocidente, como deram origem aos estados nacionais europeus, a partir de um novo sistema político e econômico, o feudalismo”, diz Vânia.

Seiscentos anos depois, a violência novamente motivou um grande deslocamento de pessoas: as Cruzadas. Convocados pela Igreja de Roma, milhares se dispuseram a caminhar até a chamada Terra Santa, ou seja, os territórios da atual Síria e Israel, que estava ocupada por praticantes de outra fé: os muçulmanos. Segundo o historiador britânico Steve Runciman, autor de História das Cruzadas, no entanto, a religião não foi o único motivador da peregrinação. “A Europa vivia um grande crescimento econômico e populacional e as Cruzadas atenderam às pressões por terra e oportunidades”, escreve Runciman. Entre os séculos 11 e 12, durante as nove expedições, cerca de 250 mil europeus se estabeleceram na região.

Mas as Cruzadas tiveram outro impacto para a história da Europa e dos deslocamentos humanos. Elas reabriram o Mediterrâneo para a navegação e reativaram o comércio. Em breve, o homem estaria pronto para sua próxima viagem.

Velas ao mar

As navegações dos séculos 15 e 16 levaram os europeus para a África, a Ásia e, sobretudo, para a América. Dessa vez eram governos, instituições (incluindo as igrejas) e empresas mercantis que queriam colonizar novos territórios. Só no primeiro século de colonização 100 mil espanhóis, 60 mil portugueses, 50 mil ingleses, 20 mil holandeses e 10 mil franceses vieram para cá.

No entanto, foi com a emancipação dos Estados americanos que ocorreu o maior movimento de pessoas da história. Entre 1800 e 1940, 55 milhões de pessoas trocaram a Europa pela América. Nos Estados Unidos, entraram 1,2 milhão de estrangeiros ao ano, durante as duas primeiras décadas do século 20. Brasil e Argentina também abriram suas portas e receberam, nesse período, 12 milhões de pessoas, sobretudo italianos, espanhóis e portugueses. Muitos asiáticos também emigraram para a América, principalmente japoneses para o Brasil e chineses para os Estados Unidos. Todos atraídos pela demanda global por trabalhadores para as lavouras e, depois, para as cidades. “A penetração gradual dos migrantes deu início à formação do atual sistema mundial e à noção de ‘encolhimento’ do mundo. Pessoas e informações começaram a circular mais rápido pelo planeta”, diz o antropólogo Gustavo Lins Ribeiro, da Universidade de Brasília.

Refugiados

Os conflitos do século 20 também provocaram o deslocamento de milhões de pessoas. No período entre uma e outra guerra mundial, os ajustes fronteiriços nos desintegrados impérios Otomano e Austro-Húngaro exigiram migrações sem precedentes. Em 1923, 1 milhão de gregos deixaram a Ásia Menor, enquanto 300 mil turcos fizeram o caminho contrário. As mudanças de fronteiras e de regimes políticos trouxeram à tona um novo tipo de migrante: o refugiado.

Para a Convenção de Genebra, refugiados são pessoas obrigadas a emigrar para fugir de perseguições em virtude de raça, religião ou idéias políticas. E foi para escapar dos hindus que 16 milhões de muçulmanos saíram da Índia, em 1947, após a independência, que dividiu o país e criou o Paquistão. Na África, cerca de 14 milhões de pessoas deixaram suas casas por causa de guerras, fome ou perseguições étnicas, de acordo com o Comitê para Refugiados dos Estados Unidos. Atualmente, a maior população de refugiados é a de afegãos: 4,5 milhões de pessoas. Segundo a entidade, o número de refugiados no mundo após os atentados de 11 de setembro cresceu 2,7%, chegando aos 22 milhões.

Apesar de guerras e intolerância, hoje a maior motivação para as migrações é a procura por trabalho. A chamada migração laboral afeta mais de 135 milhões de pessoas. Em números totais, os Estados Unidos lideram com 35 milhões de imigrantes. Rússia, com 13 milhões, e Alemanha, com 7 milhões, vêm a seguir. Do ponto de vista percentual destacam-se o Kuwait, com 25% de seus postos de trabalho ocupados por estrangeiros, e Singapura, onde os 350 mil emigrantes somam quase 20% dos trabalhadores.

A Declaração dos Direitos Humanos diz que “todos têm direito a circular livremente e a escolher sua residência no território de um Estado”. Apesar disso, nos últimos anos o que se vê é a criação de restrições a esse trânsito. Em 1976, 6% dos países possuíam leis para reprimir a migração. Em 2001, antes do 11 de Setembro, 46% já tinham.

Os migrantes do século 21 são vistos com desconfiança. Se de um lado são necessários para fazer a economia funcionar em países de baixas taxas de natalidade ou nos quais ninguém quer fazer trabalhos braçais, de outro são encarados como aqueles que vão roubar o emprego ou os serviços sociais das populações locais. O migrante, hoje, representa o alienígena social, étnico ou religioso. O homem desse século se esqueceu de que ele também é um estrangeiro, num mundo que é o resultado de milênios de caminhadas de outros homens em busca da sobrevivência.



Diáspora negra
Tráfico de africanosocorreu por 300 anos
O número de seres humanos tirados à força de sua terra natal durante o chamado tráfico negreiro é difícil precisar. Calcula-se que cerca de 12 milhões de pessoas foram caçadas em suas aldeias e vendidas por mercadores muçulmanos e portugueses ou capturadas por outras tribos e trocadas por produtos exóticos. Companhias de comércio holandesas e inglesas fizeram disso um lucrativo negócio no século 17. “Foi quando milhões de escravos foram trazidos para a América”, diz o historiador Fábio Bertonha, do Centro de Estudos de Migrações Internacionais, de Campinas. Embarcados em navios cujas condições insalubres matavam de 40% a 60% das pessoas, os africanos eram levados a mercados espalhados pela América. No Brasil, o tráfico negreiro começou em 1550 e, até meados do século 17, 350 mil africanos foram introduzidos nas plantações de cana. No século 18, esse número chegou a 1,6 milhão. Na primeira metade do século 19, o volume dobrou com a lavoura cafeeira. Até 1850, cerca de 3,3 milhões de africanos foram trazidos à força para o país.

Vida cigana
Sua disposição para enfrentara estrada atravessou séculose chegou aos dias atuais
Em toda a história talvez nenhum povo tenha ficado tão conhecido por suas andanças quanto os ciganos. Na verdade, “ciganos” é um termo genérico para designar a população que migrou da Índia no século 11 em direção ao oeste. Na Pérsia, uma parte deles teria permanecido no Império Bizantino por três séculos e de lá se dividido em dois ramos migratórios: um atravessou o Egito e se instalou no norte da África. Outro seguiu para a Europa, através dos Bálcãs. Apesar de os lingüistas terem descoberto o local de partida desse povo por meio da comparação entre dialetos que compõem a língua cigana, chamada romanês, e antigas línguas indianas, pouco se pode afirmar sobre sua origem. Alguns especialistas sugerem que eles pertençam a um grupo de viajantes muito antigo que nunca parou de se deslocar. Outros supõem que eram povos sedentários forçados a deixar as terras indianas devido ao movimento de expansão de novos grupos. “Diferentemente de outros povos migrantes que se misturaram e deram origem a outros, por formarem um grupo relativamente fechado e estarem sempre em movimento, os ciganos preservaram sua identidade cultural, mesmo se espalhando pelo mundo”, diz a antropóloga Florência Ferrari, da Unicamp. Segundo ela, esse tipo de deslocamento está associado ao modo de ser cigano, à sua cultura, ao seu pensamento. “Os ciganos fazem da viagem um traço cultural distintivo em relação aos gadjé, ou não-ciganos, sabendo que estes vão ver no nomadismo uma diferença”, afirma Florência. O desapego em relação aos países por onde passam – muitas vezes às leis e costumes desses lugares – fez com que os ciganos sejam sempre vistos como estrageiros, não importa onde estejam. Durante a consolidação dos Estados nacionais na Europa, o nomadismo dos ciganos era visto com uma ameaça política. Governos e Igreja desencadearam violentos mecanismos de perseguição. Deportações, torturas e matanças foram praticadas entre os ciganos até data recente. Acredita-se que meio milhão de ciganos tenham sido executados pelos nazistas na Segunda Guerra Mundial. Essas perseguições foram responsáveis por grandes ondas migratórias de ciganos, inclusive para o Brasil. Mas o nomadismo cigano é muito mais que uma reação às perseguições que enfrentaram. “Quando o povo cigano se vê obrigado a se deslocar, a viagem propriamente dita não é motivo de sofrimento. Não se encontra na cultura cigana nenhum apego ao território, nenhuma saudade de um lugar ancestral. O deslocamento é uma alternativa consciente”, diz Florência.

Saiba mais
Livros

A Origem da Espécia Humana, Richard Leakey, Rocco, 1997 - Sobre a raiz ancestral das migrações humanas

Genes, Povos e Línguas, Luigi Carvalli-Sforza, Companhia das Letras, 2003 - Mapeamento das principais movimentações de povos e civilizações

A Sociedade Feudal, Marc Bloch, Edições 70, 1997 - Para entender as invasões de bárbaros da Europa e as Cruzadas

Revista Aventuras na Historia

Os irredutíveis guaicurus


Os irredutíveis guaicurus
Por três séculos, os índios e seus cavalos aterrorizaram portugueses e espanhóis nas redondezas do Pantanal, sem nunca se render aos colonizadores
por Reinaldo José Lopes
Com a cara escondida pela barba longa, o velho bandeirante roncava, com ar de quem tinha realizado uma façanha e tanto – o que não deixava de ser verdade. Afinal, quase cinco meses antes, ele e sua comitiva haviam saído da vila de Araritaguaba (atual Porto Feliz, em São Paulo) e atravessado 3,5 mil quilômetros entre rios e florestas. Ia o ano de 1720 e do norte vinham notícias da descoberta de ouro nas cercanias de Cuiabá. Depois de passar a vida caçando índios no sertão, parecia uma boa idéia ir até lá e encher os bolsos. Não foi. Mal dá para descrever o susto e o desgosto do velho quando um tropel de cascos, misturado aos gritos de guerra, quase o fez cair da rede.

Não precisou pensar duas vezes (nem daria tempo para isso): eram os guaicurus, temíveis índios guerreiros que teimavam em complicar a vida de quem se atrevesse a vaguear pela região. O bandeirante nem teve tempo de procurar seu arcabuz: uma lança atravessou seu pescoço, e a última coisa que viu foi sua filha, moça prometida a um novo-rico de Cuiabá, sendo arrastada pelos índios.

Os guaicurus venceram novamente. Do século 16 ao começo do século 19, nenhum espanhol, português, brasileiro ou paraguaio estava seguro nas terras desse povo, entre o Pantanal brasileiro e o Chaco paraguaio. Nesse tempo, jamais foram submetidos e, quando aceitaram a paz com os forasteiros, fizeram-no em seus próprios termos.

Os mitos que um povo conta sobre a própria origem costumam dar uma boa indicação de como ele se vê (e quer ser visto). E os guaicurus tinham sua própria história para justificar seu espírito guerreiro, relatada até hoje por seus descendentes, os kadiwéus de Mato Grosso do Sul. “Eles contam que o Criador – chamado de Gô-noêno-hôdi – tirou todos os povos de um buraco e deu a cada um funções diferentes. Alguns ganharam enxadas e se tornaram agricultores, outros viraram artesãos e assim por diante. Só que ele esqueceu os kadiwéus, que saíram por último do buraco. Por isso, permitiu que eles roubassem um pouco de cada povo”, diz o antropólogo Jaime Garcia Siqueira, do CTI (Centro de Trabalho Indigenista), em Brasília.

E assim foi. Os ancestrais dos kadiwéus eram nômades que viviam da caça, da coleta e da pilhagem. Segundo Jaime, cuja tese de mestrado na USP foi um estudo sobre a tribo, as pesquisas sobre a origem dos antigos guaicurus dizem que eles podem ter migrado da Patagônia, na Argentina. Outra hipótese especula que sua origem é andina. Seja como for, o certo é que a região que habitavam na época do descobrimento, no miolo da América do Sul, recebia influências da Amazônia, dos Pampas e das grandes civilizações dos Andes, como os incas. Embora muitos de seus vizinhos tenham virado lavradores sedentários, eles preferiram continuar a vida errante, divididos em tribos com língua e costumes bastante parecidos, mas sem unidade política.

Não que isso tenha lhes criado algum problema: quando os europeus chegaram não havia dúvida que quem mandava na área eram os guaicurus. Os primeiros relatos sobre eles dão conta de que foram os guaicurus que mataram o português Aleixo Garcia, em 1526. O aventureiro partiu do litoral de Santa Catarina com um exército de guaranis e saqueou postos avançados do Império Inca, mas, na volta, não foi páreo para os guaicurus. O mercenário alemão Ulrich Schmidel, membro da expedição espanhola que fundou Assunção, no Paraguai, cruzou com os guaicurus por volta de 1540 e relatou que eles tratavam as demais tribos da região mais ou menos como os nobres europeus tratavam os camponeses. Ou seja, pilhavam seus bens e as obrigavam a cultivar a terra para eles. De algumas delas, cobravam tributo, em troca de proteção.

Em 1542, os guaicurus combateram e escaparam de uma expedição organizada pelo lendário conquistador espanhol Alvar Núñez Cabeza de Vaca. Foi quando tiveram seu primeiro contato com os cavalos europeus. Segundo relatos do próprio Cabeza de Vaca, os índios pareceram aterrorizados frente aos bichos, mas mesmo assim não se intimidaram: ateando fogo às próprias tendas, confundiram os invasores (alguns espanhóis foram decapitados a golpes de machados feitos com mandíbulas de piranha) e conseguiram fugir sob a cortina de fumaça.

A partir daí, as tentativas de estabelecer bases ou missões religiosas em território guaicuru viraram uma lista de fracassos. Não se sabe em que momento os guaicurus passaram a usar cavalos como montaria e mesmo a origem dos animais é polêmica. O espanhol Félix de Azara, comandante das fronteiras do Paraguai no fim do século 18, afirma que eles roubaram seus primeiros eqüinos em 1672, mas é quase certo que tenham adquirido os bichos bem antes, de expedições e assentamentos europeus que foram para o brejo. Sob todos os aspectos, o fato mudou a vida dos guaicurus. Na metade do século 18, calcula-se que eles tivessem 8 mil cavalos.

Segundo relato do jesuíta José Sánchez Labrador, que tentou evangelizá-los nessa época, “eles conhecem as enfermidades dos cavalos melhor que as suas próprias. Em seus animais, não usam selas nem estribos. Montam em pêlo, e com um salto estão sobre eles”.

Ao virarem cavaleiros, os guaicurus adotaram como arma principal a lança, muitas vezes com ponta de ferro, e reforçaram ainda mais seu domínio sobre as tribos da região. Povos como os guanás, ancestrais dos atuais índios terenas, tornaram-se seus vassalos. Internamente, eles desenvolveram uma complexa estrutura social. Havia uma camada de “nobres” (também chamados de “capitães” pelos brancos): os caciques de cada aldeia e seus parentes mais próximos, cujo domínio era passado de geração a geração. Depois vinham os “soldados”, guerreiros que ocasionalmente podiam virar “capitães”, sem que essa posição, no entanto, passasse de pai para filho.

Havia, ainda, os “cativos” – pessoas capturadas durante ataques guaicurus a outros povos indígenas e aos colonos europeus e seus escravos. Os cativos eram mulheres e, principalmente, crianças. Isso porque os guaicurus praticavam com freqüência o infanticídio e o aborto e poucos casais chegavam a criar mais de um filho, e vários morriam sem deixar herdeiros. Essa prática é comum entre povos caçadores-coletores, que estão sempre em movimento e para os quais bebês podem representar dificuldades durante longas marchas. As crianças capturadas, já mais crescidas, eram criadas como guaicurus e repunham a população das aldeias. Apesar de os cativos realizarem alguns dos trabalhos mais pesados e considerados indignos, como plantar, muitos foram incorporados à sociedade guaicuru.

Ao longo dos séculos 17 e 18, a situação não melhorou para os europeus que tentavam atravessar a bacia do Paraguai. Os cavaleiros guaicurus se aliaram aos paiaguás, que, com suas canoas velozes e remos que viravam lanças, faziam dos rios seu domínio absoluto. A dobradinha passou a prevalecer tanto nas planícies quanto nos rios que as cortavam. A aliança quase exterminou a bandeira de Raposo Tavares, que tentou subir o Paraguai em 1648, e mantinha Assunção sob terror constante.

Quando aventureiros paulistas acharam ouro em Cuiabá, em 1719, houve uma corrida em direção às minas – bem, corrida é modo de dizer, já que a viagem, por demorar tanto quanto a ida às Índias, foi apelidada de “monção”, nome da estação chuvosa no Sudeste Asiático. Embarcados em canoas e mal equipados, muitos dos futuros mineiros viraram presa fácil da coalizão indígena. A filha capturada do bandeirante – lá no começo desta matéria, por exemplo – deve ter sido levada a Assunção, como outros brancos que eram capturados, e trocada por um polpudo resgate.

No fim do século 18, no entanto, o interesse europeu na região não era mais representado por um bando de barbudos aventureiros em busca de ouro. Os governos de Espanha e Portugal, brigando para definir as fronteiras de suas colônias, estavam decididos a fortalecer sua presença na região. Os portugueses, em especial, depois da fundação do Forte Coimbra, em 1775, perceberam que a paz com os guaicurus era um tremendo negócio. E mais: os guaicurus eram os melhores aliados que se poderia querer por aquelas bandas. Eles ofereceram aos índios mantimentos e utensílios, além de cavalos e roupas. Mas não foi sem tropeços que ocorreu a aproximação. Em 1778, os guaicurus se aproximaram do forte para comerciar e, como parte do negócio, ofereceram algumas de suas mulheres aos soldados. Enquanto os portugueses estavam entretidos com as índias, foram atacados de surpresa e 54 deles morreram. Mas o governo português estava decidido a ter o grupo do seu lado, e acabou conseguindo firmar a paz em 1791.

Os índios mantiveram sua liberdade e suas áreas de influência. Os portugueses (e depois os brasileiros) ganharam um aliado e tanto nos conflitos de fronteira contra a Espanha e na Guerra do Paraguai (veja quadro na página ao lado). E os guerreiros guaicurus conseguiram chegar invictos ao fim dessa história.

Defensores da fronteira
Guaicurus serviramno Exército brasileiro durantea Guerra do Paraguai
Era mesmo pedir demais que os guaicurus pendurassem as chuteiras depois do acordo de paz com os portugueses. Na verdade, com o respaldo de uma das potências que antes dificultavam sua vida, eles continuaram os ataques a índios e brancos do lado paraguaio, além de funcionar como uma espécie de patrulha de fronteira informal. Os relatos da época contam que os soldados do Forte Coimbra só conseguiram resistir a um ataque espanhol feito em 1801 graças à ajuda de um guaicuru chamado Nixinica. Conta-se que o índio estava na cidade paraguaia de Concepción, 500 quilômetros rio abaixo do forte, quando ficou sabendo dos planos contra Coimbra. Nixinica, então, teria remado sua canoa até a fortificação portuguesa e avisado seu comandante, Ricardo Franco de Almeida Serra. A informação foi crucial para preparar a defesa do forte, que escapou de ser tomado. O mesmo, contudo, não ocorreu no início da Guerra do Paraguai, em 1864. O Forte Coimbra caiu em 48 horas. Corumbá, na então província de Mato Grosso, também foi tomada rapidamente. Mas os kadiwéus conseguiram se desvencilhar do invasor e fizeram ataques constantes ao lado paraguaio da fronteira. Em 1865, por exemplo, teriam cruzado o rio Apa, entre os dois países, e saqueado a aldeia de San Salvador. Outros membros da etnia foram incorporados ao Exército brasileiro como soldados a cavalo, e sua bravura foi elogiada por cronistas da guerra, como o Visconde de Taunay. Até hoje, os descendentes dos que lutaram no conflito o recordam de forma quase mítica. “Mas o fato é que, apesar dessas narrativas heróicas, eles foram usados como bucha de canhão, assim como aconteceu com outras tribos brasileiras”, afirma Jaime Siqueira, do CTI. Os próprios relatos de Taunay sugerem isso, já que o autor afirma que os kadiwéus recebiam as missões mais perigosas. Os índios atribuem a posse de suas terras atuais no Mato Grosso do Sul ao fato de terem lutado ao lado dos brasileiros, numa espécie de pagamento por serviços prestados. Contudo, não há documentos da época do Império que provem a existência de um compromisso semelhante entre o governo de dom Pedro II e os kadiwéus.

Saiba mais
Livros

Os Caduveos, Guido Boggiani, Itatiaia, 1975 - O autor, um artista italiano que se estabeleceu no atual Mato Grosso do Sul e conviveu com as tribos da área no fim do século 19, retratou os desenhos, a cerâmica e até a música dos kadiwéus (ou caduveos)

Red Gold - The Conquest of the Brazilian Indians, John Hemming, MacMillan, 1995 - Excelente apanhado dos combates entre os guaicurus e paiaguás e os brancos que invadiam seu território em busca de ouro, baseando-se nos cronistas coloniais que escreveram sobre o assunto

Revista Aventuras na Historia

A fúria de Vulcano em Pompéia


A fúria de Vulcano em Pompéia
Os moradores de Pompéia nunca souberam o que os atingiu. Não sabiam o que era um vulcão - a palavra nem existia em latim. Aqueles que sobreviveram, no entanto, jamais esqueceriam seu impacto
por Claudia de Castro Lima
O dia 24 de agosto de 79 amanheceu em Pompéia sem qualquer prenúncio de anormalidade. O comércio abriu suas portas às 8 horas, como de costume, mas os negócios estavam abaixo do normal. É provável que muita gente ainda estivesse dormindo, já que na noite anterior os moradores da cidade, como de todo o Império Romano, haviam ido às lutas de gladiadores, peças de teatro e tomado muito, muito vinho: tudo em celebração a Vulcano, deus do fogo (uma mera – e incrível – coincidência com os fatos que ocorreriam a seguir).

Situada no pé do monte Vesúvio, às margens do que hoje conhecemos como baía de Nápoles, Pompéia era uma cidade próspera, com cerca de 20 mil moradores. Toda murada, tinha uma área urbana – onde se concentravam residências e casas comerciais como padarias, bares, lavanderias, bancos e banhos públicos – e uma rural, ocupada por grandes propriedades dedicadas à agricultura, onde se plantando quase tudo dava: principalmente trigo, azeitona e uva para a produção do famoso vinho da cidade. O centro urbano de Pompéia consistia de uma parte mais antiga, construída pelo povo itálico séculos antes de a cidade tornar-se colônia romana, em 80 a.C., e outra mais recente, com duas ruas principais, que cortavam a cidade nos sentidos norte-sul e leste-oeste, e quarteirões regulares. “Além da agricultura favorecida pelas terras produtivas da região, era o porto às margens do mar Mediterrâneo que garantia a saúde econômica de Pompéia”, diz a historiadora Lourdes Condes Feitosa, da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp). Barcos chegavam o tempo todo trazendo comerciantes estrangeiros, sobretudo fenícios. Podia-se comprar de tudo no porto de Pompéia, desde macacos africanos e canela da China até escravos e escravas orientais, famosas por seus truquezinhos sexuais. E circulava muito dinheiro por ali.

“A elite local era formada na maior parte por proprietários rurais, que tinham casas no campo e também na costa de Pompéia, à beira-mar, com marinas particulares e seus próprios barcos”, afirma o arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp, autor de A Vida Quotidiana na Roma Antiga. Além deles, faziam parte da elite os donos das lojas mais sofisticadas, casas de banho e indústrias de tecido. Os comerciantes eram o que hoje chamamos de classe média e moravam, geralmente, em casas construídas sobre seus estabelecimentos. Com eles normalmente moravam seus familiares (pais, filhos, irmãos, avós) e escravos. Na base da pirâmide social ficavam os trabalhadores rurais.

Ricos e pobres, todos se achavam abençoados por morar em Pompéia. Eles acreditavam que a fertilidade da terra era um presente dos deuses e não desconfiavam que o solo tinha tanta qualidade por causa de antigas erupções do Vesúvio. Aliás, eles nem sabiam o que era um vulcão. Tanto que, na época, sequer havia uma palavra em latim para designar o vulcanismo. Para eles, o Vesúvio era apenas uma bela montanha: um calado e amistoso vizinho. Por isso, o mar agitado dos dias anteriores àquele 24 de agosto e o leve tremor de terra que fez o vinho balançar dentro dos cálices na festa de Vulcano não foram interpretados como sinais de perigo.

A quinta-feira era apenas mais um dia de calor. Eram pouco mais de 10 horas quando um forte estrondo foi ouvido. Seguido de um abalo. No horizonte, uma densa nuvem preta se ergueu sobre o Vesúvio.

A 30 quilômetros dali, um dos mais brilhantes homens de seu tempo escutou o barulho. Em sua casa de campo em Miceno, estava Plínio, o Velho, uma das maiores autoridades em fenômenos naturais da época (uma espécie de Darwin do século 1) e autor dos 37 volumes de História Natural. De acordo com o pesquisador Andrew Wallace-Hadrill, diretor da Escola Britânica em Roma e especialista em Pompéia, Plínio foi surpreendido pela explosão do Vesúvio. “Até aquela data, a única coisa que ele havia registrado sobre o assunto foram as marcas de queimada no topo do Vesúvio”, afirma Wallace-Hadrill. Hoje se sabe que a última erupção do Vesúvio antes daquela manhã havia ocorrido por volta de 1800 a.C.

Mas em breve não haveria mais dúvida de que algo único estava acontecendo. Em poucos minutos, a ensolarada manhã virou noite. A espessa e escura fumaça liberada pelo Vesúvio subiu para a atmosfera e bloqueou completamente o sol. Plínio, o Jovem – sobrinho do Velho, que estava com ele em Miceno e foi o autor do principal documento sobre a erupção do Vesúvio (leia boxe na pág. 29) –, testemunhou a cena: “Dificilmente podíamos ver as coisas, parecia noite, não como quando desaparece a lua ou fica nublado, mas como em um lugar fechado e sem luz”, escreveu numa carta enviada para o amigo e historiador Tácito.

Impressionado com a noite no meio do dia e com o barulho, o povo saiu às ruas, curioso para ver o espetáculo. Pouca gente – ou ninguém – deve ter se dado conta do risco que corriam. É que aquela nuvem negra não era só fumaça. Junto com as cinzas, o Vesúvio lançou na atmosfera toneladas de rochas a uma altura tão grande – algumas devem ter atingido 10 mil metros – que elas só começaram a cair minutos depois da explosão inicial. “As primeiras vítimas devem ter sido atingidas pela chuva de pedras e, em seguida, com o acúmulo de detritos sobre os telhados, pelos desabamentos”, diz Fabrizio Pesando, professor da Universidade de Nápoles e co-autor do livro Pompeii (“Pompéia”, inédito no Brasil).

Quando as pedras começaram a cair do céu, Julius Polibius mandou reunir toda sua família na parte de trás de sua casa, que passava por uma reforma. Filho de um escravo liberto e cheio de ambições políticas, Polibius tornara-se um próspero comerciante. Naquele ano, ele era candidato ao cargo de aedile, uma espécie de vereador, responsável por conservar os bens públicos. Polibius chamou a mulher, filhos e escravos e se puseram a rezar. Não deu certo. “Junto com as pedras, caiu sobre a cidade uma nuvem de gases tóxicos. Assim, nas casas afastadas e resistentes, o Vesúvio matou por asfixia”, afirma Pesando. Dos 13 corpos encontrados na residência de Polibius, 15 séculos depois, alguns estão abraçados, há um casal deitado na mesma cama, outro ajoelhado.

Se Polibius e a família preferiram ficar e rezar (quem sabe não conseguissem fugir com uma das mulheres em adiantada gravidez), outros resolveram seguir a opção aparentemente mais óbvia: correr. Não adiantou. “Muita gente deixou suas casas percebendo o risco que corria lá dentro. Os vestígios arqueológicos indicam que homens, mulheres, crianças e idosos saíram com colchões e almofadas sobre as cabeças, tentando se proteger das rochas ferventes que caíam do céu. Muitos levavam consigo todos seus bens: jóias, moedas, estátuas, prataria e a chave da porta da frente”, diz Pesando.

Uma mulher, de cerca de 30 anos, morreu do lado de fora de um hotel. Levava consigo uma certa quantidade de jóias, incluindo um bracelete de ouro com a inscrição: do mestre para sua escrava. Um homem de negócios, que carregava pelas ruas uma bolsa cheia de ouro, morreu sentado, encostado em uma pilastra. Mesmo quem resolveu aproveitar a fuga em massa para tentar enriquecer deu-se mal. Um saqueador morreu sobre o telhado da “Loja do Salvius” (é exatamente essa a inscrição sobre a porta da casa onde foi encontrado), que vendia anéis e peças de ouro. Uma rica e elegante senhora, usando jóias caras, foi soterrada no galpão em que moravam os gladiadores. Estranho lugar para encontrar uma jovem patrícia. O que ela fazia lá? As especulações dos arqueólogos são de que ela era uma das mulheres entediadas que, à procura de aventura, prestava certos favores aos gladiadores. A nobre dama teria sido surpreendida pela erupção numa de suas visitas clandestinas. Ou, quem sabe, vendo-se condenada pelo vulcão, escolheu essa como a melhor forma de morrer. Quem sabe?

Em Miceno, Plínio, o Velho, assistia de camarote à densa fumaça preta que subia do Vesúvio, quando resolveu ver aquele fenômeno mais de perto. Ele mandou preparar um pequeno barco, convocou uma tripulação de nove homens e pouco antes das 5 da tarde se pôs a caminho de Pompéia. A viagem mostrou-se uma péssima idéia. Ao se aproximarem da cidade, as altas temperaturas e um densa neblina negra fizeram com que o barco se desviasse de seu destino. O jeito foi ancorar na vizinha Estábia. O desvio salvou sua vida. Pelo menos por mais algumas horas.

“Em Pompéia a chuva de pedra já durava pelo menos 12 horas e praticamente toda a cidade estava soterrada sob cerca de 4 metros de rochas vulcânicas, quando o pior aconteceu”, diz Wallace-Hadrill. À escuridão das sombras das nuvens de cinza, juntou-se o negrume da noite. Por isso, e porque não restassem muitas testemunhas no local, talvez ninguém tenha visto quando a parte mais letal da erupção se aproximou. “Viajando a uma velocidade superior a 120 quilômetros por hora, uma avalanche de cinzas e rochas superquentes, com temperaturas que ultrapassavam os 500 graus Celsius desceu sobre a cidade.” No total, 4 quilômetros cúbicos de material foram ejetados pelo Vesúvio.

Herculano

Situada na costa oeste do Vesúvio, Herculano também viveu um inferno. Provavelmente beneficiada pela direção do vento, a cidade não sofreu tanto com a chuva de pedras. No entanto, o relevo da região não foi tão piedoso com os moradores de Herculano. “Em direção a Herculano, a avalanche de pedras foi muito mais violenta e destrutiva que em Pompéia”, diz Pesando. Pressentindo que o pior estava por acontecer, milhares de pessoas fugiram de suas casas e foram em direção à praia. Com eles, levaram tudo o que podiam carregar. Na fuga, a confusão se instalou. Bebês choravam, maridos procuravam as esposas que haviam se perdido no caos. Poucos conseguiram chegar até à praia. “A velocidade da avalanche deve ter chegado a mais de 100 quilômetros por hora e a maioria morreu no caminho.”

Alguns chegaram à praia, pensando que até ali a enxurrada de pedras perderia força e que estariam seguros de desabamentos. Eles estavam certos. Porém acabaram mortos: não sobreviveram à intensa onda de calor e aos gases venenosos que atingiram a cidade. Mais de 300 esqueletos foram encontrados num abrigo de barcos. A morte para eles foi instantânea: o choque com a onda de calor fez seus órgãos vitais ficarem paralisados antes mesmo que eles se dessem conta do que estava acontecendo. Muitos estavam abraçados. Outros em posições relaxadas, como se achassem que estavam a salvo. A cidade, onde moravam 5 mil pessoas, ficou enterrada em 23 metros de pedras e cinzas.

Na manhã do dia 25, o Vesúvio ainda não havia cansado. Antes das 7 da manhã, uma nova nuvem atingiu Pompéia. Quem ainda estava lá e não morreu queimado atingido pelas rochas incandescentes acabou sufocado pelos gases. A nuvem seguiu em direção a Estábia. Os moradores perceberam-na atravessando a baía, tentaram correr, mas não havia para onde. Os gases vulcânicos fizeram centenas de vítimas, entre elas Plínio, o Velho.

Seu sobrinho, em Miceno, escreveu tudo o que pôde ver e apurar depois. Seus relatos eram tão bizarros que durante muito tempo foram considerados lendas e desacreditados pelos cientistas até o século 18. Hoje em dia, sabe-se que existem sim erupções vulcânicas como Plínio contou. Tanto que eventos daquela magnitude, com explosões de gases, vapor de água e material piroclástico jogados a grandes altitudes são chamados de erupções plinianas.

Não se sabe exatamente quantas pessoas morreram em Pompéia, Herculano, Estábia e redondezas. “É impossível precisar quantas pessoas conseguiram fugir por mar ou que sobreviveram ao inferno provocado pela erupção do Vesúvio”, diz Pesando. Segundo ele, a simples recuperação de corpos indicaria um número entre 2 mil a 4 mil vítimas. Mas outra linha de pesquisadores, que toma como base os registros de moradores da região, acredita que o mortos podem chegar a 17 mil.



Dormindo com o inimigo
As cidades em tornodo Vesúvio nem desconfiavamdo risco que corriam
Miceno

A 30 quilômetros de Pompéia, era uma cidade de veraneio dos romanos ricos, entre eles Plínio, o Velho. Foi dali que Plínio,o Jovem, acompanhou a erupção. Foi atingida pelos tremores de terra e pela nuvem de poeira, mas teve poucas vítimas, em sua maioria crianças e velhos

Herculano

Com cerca de 5 mil habitantes, foi coberta por 23 metros de cinzas e pedras depois da erupção. Em Herculano, ao contrário de Pompéia, os esqueletos das vítimas foram mais preservados, por causa das características da erupção. Perdeu cerca de 80% de sua população

Pompéia

Localizada na baía de Nápoles, foi soterrada por 6 metros de cinzas e rochas na erupção do Vesúvio. As primeiras vítimas morreram atingidas por pedras ou desabamentos. A seguir, acabaram intoxicadas. Acredita-se que entre 4 mil e 8 mil dos 20 mil habitantes tenham morrido

Estábia

Ficava a apenas 5 quilômetros de Pompéia e, a exemplo de outras cidades ao redor, como Oplontis, foi destruída. Ganhou fama por ter sido onde Plínio, o Velho, morreu, intoxicado por gases do vulcão. O número de vítimas chegou às centenas.


Eu me lembro
Plínio, o Jovem, foitestemunha da história
Em 24 de agosto de 79, Gaius Plinius Caecilius Secunduso, um rapaz de cerca de 20 anos, preferiu não navegar com o tio até o pé do Vesúvio. Plínio, o Velho, era um “cientista” e, como isso naquela época era pouco mais que observar os fenômenos naturais e teorizar sobre eles, queria ver tudo mais de perto. Sábia decisão. Plínio, o Jovem, ficou em casa, em Miceno, sobreviveu e por isso pôde relatar todos os acontecimentos daquele dia. Suas longas cartas enviadas ao historiador Tácito mais tarde foram publicadas em livros. Mas as originais, porém, não existem mais. “Elas foram copiadas, como quase todos os documentos antigos, durante a Idade Média. Datam dessa época as versões mais antigas”, diz o arqueólogo Pedro Paulo Funari, da Unicamp. “Era o nono dia antes das calendas de setembro, pela sétima hora, quando minha mãe lhe mostrou que se formava uma nuvem volumosa e de forma incomum. Havia tomado seu banho de sol, depois um banho frio, e, num leito, estudava. Levantou-se e subiu a um lugar do qual podia ver melhor”, escreveu o jovem, sobre como o tio soube da erupção. “A nuvem parecia-se muito com um pinheiro porque, depois de elevar-se em forma de um tronco, desabrochava no ar seus ramos. Creio que era arrastada por uma rápida corrente de vento e que, quando esta cedia, a nuvem, vencida por seu próprio peso, dilatava-se e expandia-se, parecendo às vezes branca, às vezes escura ou de diferentes cores, conforme estivesse mais impregnada de terra ou de cinzas”. A descrição continua: “O Vesúvio brilhava com enormes labaredas em muitos pontos e grandes colunas de fogo saíam dele, cuja intensidade fazia mais ostensivas as trevas noturnas. O dia nascia já em outras regiões, mas aqui continuava noite, uma noite fechada, mais tenebrosa que todas as outras; a única exceção era a luz dos relâmpagos e outros fenômenos semelhantes”. Em seus escritos, Plínio fala também sobre a aflição do povo: “Podia-se ouvir os soluços das mulheres, o lamento das crianças e os gritos dos homens. Muitos clamavam pela ajuda dos deuses, mas muitos outros imaginavam que não havia mais deuses e que o Universo estava imerso numa eterna escuridão”.

Cidade viva
Comércio era a alma de Pompéia
XIXI LIMPINHO

Normalmente, lavanderias e tinturarias funcionavam no mesmo local. Os donos dos estabelecimentos costumavam pôr ânforas do lado de fora, para que as pessoas urinassem nelas. A urina era usada para clarear as roupas, por causa da amônia. Quem fazia o trabalho sujo da limpeza eram os escravos

MAC THERMOPOLIUM

Pompéia tinha sua rede de fast food. As thermopolia tinham uma bancada em formato de “L” com buracos para manter quentes as panelas com comida, como lentilha ou carnes. O local também servia vinho em jarros. Os clientes mais comuns eram os visitantes da cidade, como os “torcedores” das lutas

PÃO QUENTINHO

Alguns dos comércios mais comuns eram as padarias, que preparavam pão fresco todos os dias. As lojas encontradas durante as escavações revelaram que a erupção pegou todos de surpresa e que o povo saiu apressado: algumas tinham pães assando nos fornos


Salve-se quem puder
Vestígios arqueológicosmostram como era a vida dosmoradores da cidade
CAPACETE

Os gladiadores, donos de capacetes como este, com grades de bronze para proteger os olhos, eram ídolos em Pompéia. Os grafites nas paredes da cidade mostram, por exemplo, uma luta entre Oceanus e Aracintus. Oceanus, vencedor de 12 batalhas, matou seu adversário no combate

JÓIAS

Muitos moradores, ao se darem conta da tragédia que arrasaria a cidade, fugiram levando moedas e jóias. Mas nem todos conseguiram. Comparável às melhores jóias feitas em Roma, este colar de esmeraldas e pérolas, encontrado em Pompéia, revela a riqueza da elite da cidade

TAÇA DE PRATA

O cálice encontrado em 1930 na casa que pertencia a Quintus Poppaeus, um homem influente, parente de Poppaea Sabina, a segunda esposa do imperador Nero. Toda decorada com ramos de oliveira, peça pertence a uma coleção com 118 peças

ÂNFORAS

Os recipientes, geralmente de cerâmica, eram de dois tipos. Os grandes, com até 1 metro de altura, eram usados no transporte de vinho, azeite e molho de peixe. Os menores, serviam como garrafas. Estas da foto foram encontradas nas ruínas da casa de Gaius Julius Polybius


Saiba mais
Livros

Pompeii: a Novel, Richard Harris, Random House, 2004. - Ainda sem edição em português, o livro é a mais recente e completa tentativa de recriar os últimos momentos da cidade

A Vida Quotidiana na Roma Antiga, Pedro Paulo Funari, Annablume, 2004 - O livro recria a vida em Pompéia tomando por base os grafites encontrados nas paredes da cidade


Múmias de gesso
Estátuas imortalizaramos últimos momentosde Pompéia
Após Pompéia ter submergido, a cidade virou o ponto preferido de saqueadores. “A parte de cima de alguns prédios ainda estava visível, e os ladrões atacaram, procurando tudo o que pudesse haver de valioso”, diz o historiador Andrew Wallace-Hadrill. Dois séculos depois a cidade já havia sido esquecida – era citada em poucas histórias populares, com o nome de Civitá. Em 1595, o local foi descoberto por acaso durante a construção de um aqueduto. Os trabalhadores depararam com objetos antigos, que foram levados para as cortes de Roma e Florença. No entanto, as escavações mesmo só começaram em 1748, quando especialistas perceberam que aqueles objetos eram da antiga Civitá. Uma placa que dizia que o nome da cidade era Pompéia foi encontrada e a cidade foi rebatizada. Segundo o arqueólogo italiano Salvatore Ciro Nappo, durante a primeira fase, as escavações só pretendiam encontrar objetos de arte. Mais tarde, porém, construções inteiras começaram a aparecer. O que mais impressiona até hoje – e causa mais confusão – são os “corpos” das vítimas. Muitos acreditam que aquelas figuras expressivas são os restos dos moradores petrificados. Na verdade, são apenas estátuas, feitas a partir dos moldes deixados pelos corpos de verdade. A avalanche de cinzas e rochas que caiu formou uma espécie de cobertura, que se solidificou. Com o tempo, o material orgânico se decompôs, deixando um espaço oco no meio das rochas. Conforme descobriam as vítimas, os arqueólogos recheavam com gesso esse espaço vazio, conseguindo reproduzir a posição exata de homens, mulheres, crianças e até animais mortos durante a erupção. Os corpos não estão lá, mas o sofrimento e a dramaticidade estão. Não tão famosas, mas muito mais importantes para a história são os escritos encontrados nas paredes de Pompéia. “Muito do que sabemos sobre Roma, sobretudo acerca da vida cotidiana, deve-se aos grafites e inscrições descobertos em Pompéia”, diz Pedro Paulo Funari. Como a vida se extiguiu de uma hora para outra e tudo permaneceu enterrado, as paredes e inscrições não sofreram degradação nem pelos homens nem pelo tempo. “Os muros da cidade são um grande livro”, afirma Pedro Paulo.

Revista Aventuras na Historia

Submarino da Guerra Civil: o protótipo virou carcaça


Submarino da Guerra Civil: o protótipo virou carcaça
Submarino da Guerra Civil americana ficou 130 anos perdido no Panamá
por Robert Galbraith
A descoberta de uma das mais preciosas relíquias da Guerra Civil americana e da navegação mundial foi anunciada em outubro pelo arqueólogo James Delgado, diretor do Museu Marítimo de Vancouver, Canadá, e apresentador do programa Sea Hunters, no canal de TV National Geographic. Trata-se da carcaça de um dos primeiros submarinos da história, o Sub Marine Explorer, construído para a Confederação do Norte entre 1864 e 1866 para espionar e atacar portos do Sul.

O Explorer foi lançado ao mar em 1867, quase no fim da guerra. Com a paz, o aparelho foi dispensado pela Marinha e passou a ser usado pelo seu criador, o engenheiro alemão Julius Kroehl, para coletar pérolas. Acabou abandonado em uma ilha no litoral do Panamá, onde ficou por 130 anos, até ser achado por Delgado em 2001.

Desde então, o arqueólogo consultava historiadores para saber se a carcaça era mesmo de um submarino japonês da Segunda Guerra, como suspeitava. Descobriu que a relíquia era mais rara (com apenas um equivalente encontrado) ao obter plantas de 1909 que a descreviam exatamente.

Delgado descobriu também que o submarino pode ter levado seus tripulantes à morte. Depois de muito tempo debaixo d’água, ele retornava de forma muito brusca à superfície. “Hoje sabemos que quem fica muito tempo no fundo precisa voltar devagar para que o organismo faça a descompressão gradual. Caso contrário, o sangue pode borbulhar e isso causa a chamada doença do caixão, que pode levar à morte”, diz.



Plano piloto
A planta original do Explorer
1. CÂmaras A

Um compartimento de ar expulsava a água das câmaras B para permitir a emersão. Também tinha uma conexão com as câmaras C, onde ficava a tripulação de seis a oito homens

2. Câmara B

Ao longo de uma seção lateral, entrava a água que realizava a submersão. Com 11 metros de comprimento e 3 de largura, o submarino afundava até 30 metros

3. Câmaras C

Durante a submersão, o ar comprimido se dirigia para uma terceira seção. Quanto mais fundo estivesse, maior a pressão e mais risco para os tripulantes, que não voltavam à superfície gradualmente

Revista Aventuras na Historia

O destino dos maias


O destino dos maias
Nova e polêmica teoria sobre o desaparecimento dos maias reacende o mistério em torno da mais avançada civilização da América pré-colombiana
por Lia Hama
No seu auge, a civilização maia chegou a ter mais de 40 cidades espalhadas numa região que hoje inclui a península de Yucatán, um pedaço do estado de Chiapas, no México, e partes de Belize, Guatemala e Honduras. Uma área de cerca de 325 mil quilômetros quadrados, o que equivale, mais ou menos, ao tamanho do estado do Maranhão. Nesse período, entre os séculos 3 e 9, os maias dominavam a astronomia, a matemática, a escrita, norteavam-se por um preciso sistema de calendários e eram sofisticados construtores. Formavam a civilização de tecnologia mais avançada do mundo, à frente das maiores potências européias. Por volta do século 9, no entanto, os maias experimentaram um colapso súbito. Os centros urbanos densamente povoados foram abandonados e a civilização, da forma como até então era conhecida, simplesmente desapareceu. Um fim tão misterioso que até hoje provoca polêmica.

Nas últimas décadas, pesquisadores têm procurado algo grande que pudesse acabar com uma civilização que, à época do seu ocaso, já durava bem mais de 20 séculos: um cataclismo, uma prolongada seca, uma guerra sangrenta, uma catástrofe de dimensões continentais. E até agora nada. Mas é possível que aí esteja o erro. Se Clifford Brown, da Atlantic University da Flórida, e Walter Witschey, do Museu de Ciência de Virgínia, nos Estados Unidos, estiverem certos, todo mundo andou procurando no lugar errado. Segundo eles, os maias estavam fadados a desaparecer devido a características endógenas ligadas ao modo como suas cidades se desenvolveram e algo sutil, realmente muito pequeno, pode ter levado toda a civilização ao colapso. Brown e Witschey, cuja tese foi publicada em artigo da revista New Scientist em janeiro de 2004, acreditam que podem provar isso a partir das construções das antigas cidades maias. De acordo com eles, as cidades maias teriam evoluído de uma forma particular, que seguiria um padrão fractal. Fractais são aquelas figuras geométricas que repetem o mesmo desenho em escalas cada vez menores. Aplicados aos fenômenos naturais, os fractais estão na base da teoria do caos, onde uma ocorrência aparentemente insignificante, se repetida em escala cada vez maior, gera desequilíbrio. Incêndios em florestas, avalanches, terremotos e até as contrações de uma mulher que dá à luz têm dimensão fractal.

Segundo Brown e Witschey, o padrão fractal das cidades maias indicaria uma organização crítica, onde qualquer instabilidade poderia crescer progressivamente até forçar uma reorganização em configuração mais estável. “Não é preciso identificar uma grande mudança para explicar por que a civilização maia acabou. Uma perturbação menor pode ter sido tudo o que foi necessário”, afirma Brown. Para ele, um fato comum – como uma guerra (fato corriqueiro entre os maias), a morte de um rei ou uma crise na agricultura – pode ter provocado o fim de toda a civilização.

Mas a teoria dos padrões fractais está longe de ser um consenso. Fome, epidemias, mudanças climáticas, guerras, invasões e até suicídio em massa já foram hipóteses levantadas para explicar o fim da civilização maia. O único consenso entre os estudiosos, no entanto, é que para chegar à solução desse mistério será preciso compreender melhor como viviam, o que comiam e em que acreditavam os maias.

“Os maias não formavam um povo único”, diz Marcia Arcuri, pesquisadora do Museu de Arqueologia e Etnologia da USP. “Eles eram uma reunião de diversos grupos étnicos, como os huastecas, quiche-maia, tzental-maia e tzotzil.”

No século 9, quando a civilização atingiu o apogeu, eles viviam basicamente da agricultura. Plantavam milho, feijão, algodão e tabaco. Quando as colheitas eram boas, dedicavam o excedente ao comércio. A sociedade era fortemente hierarquizada, dividida entre a nobreza (governantes, sacerdotes e guerreiros) e a classe baixa (camponeses e artesãos), obrigada a trabalhar e a pagar impostos. Por último, havia os cativos, em geral destinados aos sacrifícios humanos em honra aos deuses. A religião ocupava um espaço enorme na vida dos maias. Os sacerdotes controlavam a escrita e o calendário, um objeto dedicado a uma função muito, mas muito mais importante que o mero contar dos dias. O calendário dizia quando plantar e quando colher – e havia os dias malditos, quando nenhum empreendimento deveria ser tentado e não se devia fazer nada.

Durante boa parte do século 20, a imagem que se tinha dos maias era de um povo pacífico, governado por sacerdotes e voltado apenas para atividades religiosas e de observação dos astros. Um contraste em relação aos impérios guerreiros e sanguinários do México central. A decifração de hieróglifos maias, no entanto, forneceu um retrato completamente diferente desse povo. Descobriu-se que muitos deles contavam a história de governantes em guerra com cidades rivais e obcecados por sacrifícios humanos (no quadro abaixo). “O sangue era a argamassa da sociedade dos antigos maias”, afirma a arqueóloga Linda Schele, no livro The Blood of Kings (“O Sangue dos Reis”, inédito no Brasil).

Essa nova visão dos maias, um povo guerreiro e adepto de rituais sangrentos, foi formada a partir das descobertas em sítios arqueológicos na selva da Guatemala e do México, onde foi encontrado, por exemplo, um mural que mostra prisioneiros sendo exibidos a um rei vitorioso após uma batalha. Na cena, os capturados têm as unhas arrancadas durante um ritual.

Nos últimos anos, algumas descobertas têm modificado também a visão sobre o período pré-clássico da civilização maia, que iria de 1500 a.C. a 250. Desde 2001, arqueólogos liderados pelo professor Francisco Estrada-Belli, da Universidade Vanderbilt, dos Estados Unidos, têm explorado a antiga cidade de Cival, na região de Petén, na Guatemala. Lá, foram encontradas duas máscaras esculpidas na parede de uma pirâmide, cada uma medindo 5 por 3 metros, 120 objetos de jade, uma peça cerimonial e um pedaço de pedra esculpida de 300 a.C. “A preservação das máscaras é impressionante. É quase como se alguém as tivesse feito ontem”, diz Estrada-Belli. Acredita-se que Cival era uma das maiores cidades do período pré-clássico e teria abrigado10 mil pessoas.

O que intriga os arqueólogos é que a cidade de Cival não se encaixa no que se conhece hoje sobre os maias do período pré-clássico. A cidade era mais avançada do que se imagina que seriam as sociedades pré-clássicas. Havia reis, uma iconografia complexa, grandes palácios, escrita e cerâmica policromática: todas características do que se chama hoje de período clássico. “Está claro que pré-clássico é um nome incorreto”, afirma o professor Estrada-Belli. “É muito interessante quando revertemos algumas idéias existentes. Achávamos que o povo maia pré-clássico era uma sociedade relativamente simples, mas eles não eram”, diz o professor. “Havia toda uma civilização durante o período pré-clássico que nós estamos apenas começando a descobrir”, acrescenta.

Uma das teorias para o fim da época de ouro maia é a do professor David Hodell, da Universidade da Flórida, que defende que o clima é que seria o culpado. Ao analisar sedimentos de um lago na península de Yucatán, Hodell e um grupo de cientistas encontraram um padrão de seca se repetindo a cada 208 anos. O período mais seco da era atual teria ocorrido entre 800 e 1000, coincidindo com o fim do período clássico, no século 9. Outros períodos de seca teriam coincidido com épocas de declínio. Hodell, porém, não descarta que outros fatores tenham influenciado no desaparecimento dos maias. “Acho que a seca exerceu um papel importante, mas estou certo de que existiram outros fatores, como o aumento da população, a degradação da terra e mudanças sociopolíticas”, afirma.

Uma crise econômica como a provocada por uma seca prolongada seria potencialmente capaz de desestruturar uma sociedade baseada na agricultura e na religião e cuja organização política de cidades-estados fomentava rivalidades e conflitos pela hegemonia política. Essa competição se dava, por exemplo, arquitetonicamente. “As cidades mais poderosas construíam os maiores edifícios, o que exigia aumento de tributos, do número de trabalhadores e dos prisioneiros que eram capturados e sacrificados em homenagem aos deuses. Tudo isso pode ter gerado a pressão social necessária para que as camadas mais pobres se revoltassem e abandonassem os núcleos urbanos e seus arredores para se refugiarem na selva, onde estariam livres dessas obrigações”, diz Eduardo Natalino, da USP.

Após o abandono dos grandes centros urbanos, os maias voltaram a se reorganizar ao norte da península de Yucatán. “O fim do Império Maia não significou o fim dos maias”, afirma Eduardo. O que teve realmente um fim foi o período clássico, tido como a fase áurea da civilização. Em seguida veio o período pós-clássico, marcado por uma série de lutas internas entre as cidades-estados. Essa fragmentação facilitou o avanço dos espanhóis, que chegaram às costas da península de Yucatán em 1511 e, ao final da década de 1520, conquistaram praticamente todos os territórios de influência maia. Ainda assim, os maias sobreviveram à colonização. “A história desse povo não termina com a conquista dos espanhóis”, afirma o antropólogo Michael D. Coe, da Universidade Yale, autor do livro The Maya (“Os Maias”, sem tradução em português). Hoje os 6 milhões de descendentes dos antigos maias vivem principalmente na península de Yucatán e em parte do estado de Chiapas, no México, e na região central e leste da Guatemala.

Os maias
A mais avançadacivilização pré-colombianadurou 3 mil anos
Eles ocuparam um vasto território, de cerca de 325 mil quilômetros quadrados, que hoje abrange a península de Yucatán e parte do Estado de Chiapas, no México, parte da Guatemala, de Honduras e Belize.

PERÍODO PRÉ-CLÁSSICO (1500 a.C. a 250 d.c.)

Localização:

Os principais núcleos foram La Victoria, Uaxactún e Tikal

Características:

• No início, a organização era feita em pequenos núcleos sedentários, baseados no cultivo do milho, do feijão e da abóbora.

• A cerâmica é monocromada e são feitas pequenas esculturas de figuras de pedra.

• Havia centros cerimoniais que, por volta de 200 da era cristã, evoluíram para cidades com templos, pirâmides, palácios e mercados.

ASTRONOMIA E CALENDÁRIO

Os maias conheciam profundamente os ciclos do Sol, da Lua e de Vênus. Eles calculavam o ciclo solar em 365,2420 dias. Uma exatidão assombrosa, já que só há pouco tempo os cientistas constataram, com ajuda de modernos computadores, que o ano solar é de 365,2422 dias. No calendário maia havia um ano sagrado (de 260 dias) e um laico (de 365 dias), composto de 18 meses de 20 dias, seguidos de cinco dias considerados nefastos para a realização de qualquer empreendimento.

PERÍODO CLÁSSICO (séculos 3 a 9)

Localização:

Região central de El Petén, na Guatemala. A partir do fim do século 4, há uma expansão para oeste e sudeste, onde surgem Palenque, Piedras Negras e Copán. Mais tarde, essa conquista segue para o norte, até a península de Yucatán.

Características:

• Auge da civilização, com a construção de grandes templos, como os de Tikal, Palenque e Copán. Acredita-se que as cidades-estados maias formavam uma federação de caráter teocrático e hierarquizada em classes sociais.

• Há produção de excedentes agrícolas.

• A cerâmica típica desse período é policromada e figurativa.

ESCRITA

Um avançado sistema de escrita hieroglífica foi desenvolvido pelos maias. Boa parte dos escritos, no entanto, foi destruída durante a colonização espanhola. Hoje são conhecidos apenas três livros da era pré-colombiana que sobreviveram aos espanhóis: os chamados códices de Dresden, de Madri e de Paris. Acredita-se que o apogeu cultural dos maias tenha se dado por volta da segunda metade do século 8. São desse período as estelas, placas de pedra com relevos hieroglíficos, que são uma importante fonte de informação para os historiadores.

PERÍODO PÓS-CLÁSSICO (séculos 10 a 16)

Localização:

Chichen Itzá, Uxmal e Mayapán, na península de Yucatán (sul do México), e El Petén, na Guatemala.

Características:

• Desgraças naturais como o furacão de 1464 e a peste de 1480 devastam a região.

• Começa o culto a Kukulcán (Quetzacoátl, para os toltecas), simbolizado pela figura da serpente emplumada.

• Apogeu do núcleo Mayapán, seguido de conflitos entre as cidades-estados. As disputas facilitam o avanço dos espanhóis, que chegam em 1511. Na década de 1520, quase toda a região maia é conquistada.


Sangue sagrado
Sacrifícios humanosfizeram parte do dia-a-diados maias
Com uma faca de pedra, o sacerdote abre o peito de uma vítima e retira o coração ainda batendo. Línguas, orelhas e genitais são furados com ferrões de arraia e o sangue recolhido é queimado, como uma oferenda aos deuses. Rituais assim eram comuns entre os maias e eram realizados em homenagem a Chac, provedor da vida e deus da chuva. Em Chichen Itzá as vítimas eram lançadas – junto com cobre, ouro e jade – para morrer em poços e cavernas. Os maias tinham um panteão de deuses associados à natureza, como a chuva, o solo, o Sol e a Lua. O milho, principal fonte de alimento dos maias, ocupava um lugar especial na religião. Segundo ela, o homem teria sido criado da massa de milho, depois que os deuses fracassaram em tentar criar gente a partir do barro e da madeira. Assim como outros povos da Mesoamérica, os maias dividiam o mundo em direções, cada uma associada a um deus, a uma cor (centro, verde; leste, vermelho; norte, branco; oeste, preto; sul, amarelo), a uma árvore e a um pássaro. O céu era dividido em 13 estratos e abaixo da terra existiriam outros nove estratos. O tempo era considerado cíclico. De acordo com os maias, antes deste mundo teriam existido outros e a destruição deste mundo daria início a um novo ciclo.

Maias resistem
Cultura sobreviveno sul do México ena Guatemala
Hoje, uma das mais famosas descendentes dos maias é Rigoberta Menchú, ganhadora do Prêmio Nobel da Paz em 1992, por defender seu povo do extermínio de que foi vítima nos últimos 20 anos. Rigoberta, ela também uma sobrevivente, nasceu em 1959 em Laj Chimel, na Guatemala, uma pequena comunidade seguidora das tradições maias-quiché. Perdeu o pai assassinado num confronto com fazendeiros e sua mãe e seu irmão desapareceram, provavelmente seqüestrados e mortos pelo Exército. Calcula-se que existam hoje de 4 milhões a 6 milhões de maias, que vivem principalmente na península de Yucatán, no sul do México, e nas regiões central e oeste da Guatemala. “Mais do que descendente genético dos antigos maias, esse povo manteve vivos os mitos, a visão de mundo, as línguas e crenças que têm raízes na América pré-colombiana”, diz a arqueóloga Linda Schele. Entre as principais atividades econômicas dos grupos remanescentes estão o cultivo do milho e do feijão e a produção de artesanato. Eles falam cerca de 20 línguas diferentes, como o quiche, o iucateco, o tzeltal e o chol. Apesar da forte influência do cristianismo, as crenças tradicionais foram mantidas, num processo típico de sincretismo religioso. A deusa Lua, por exemplo, é associada à Virgem Maria. O antigo calendário maia sobreviveu e ainda é bastante utilizado.

Saiba mais
Livros

A Civilização Maia, Paul Gendrop, Jorge Zahar, 1987 - Um dos poucos livros em português sobre o assunto, traz informações didáticas sobre o tema

Deuses do México Indígena, Eduardo Natalino dos Santos (Palas Athena, 2002) - Trata do universo cultural dos povos mesoamericanos

The Blood of Kings, Linda Schele e Mary Ellen Miller, Thames and Hudson, 1992 - Livro repleto de fotos, ilustrações e dados sobre a arte maia

Site

www.uady.mx/sitios/mayas - Site da Universidade Autônoma de Yucatán, com informações sobre cultura maia

Revista Aventuras na Historia

O mal e o belo: os artistas e as doenças


O mal e o belo: os artistas e as doenças
As doenças - assim como a paixão, a felicidade, o infortúnio e a solidão - influenciam a vida de todo mundo. Mas, quando atingem artistas geniais, elas podem inspirar algumas de suas melhores criações
por Sérgio Miranda
Uma crise de apendicite foi responsável pelo surgimento de um dos mestres da pintura. A depressão de um jovem artista ajudou-o a criar um novo movimento artístico. Problemas neurológicos permitiram a outro superar os limites da própria consciência e criar cores impensáveis. A história está cheia de exemplos da relação entre a arte e as doenças que acometeram os artistas. E de como elas ficaram refletidas – e muito mais bonitas – em suas criações.

Embora seja possível que sempre tenha sido assim, só no século 19 filósofos e artistas insatisfeitos com os limites da “arte como imitação” (ou representação) lançaram a teoria da “arte como expressão”. Desse modo, o foco para a compreensão da arte deslocou-se do objeto para o artista, da criação para o criador. É a partir daí que, pelo menos para a crítica de arte, passou a ser importante o que o artista sentia. E, às vezes, como todo mundo, ele sentia dor.

“As doenças influenciam a forma como o indivíduo se relaciona consigo mesmo e com o mundo, e muitas delas podem estimular o potencial de cada um”, diz a professora Leila Cury Tardivo, do departamento de Psicologia Clínica do Instituto de Psicologia da USP. “Diante do sofrimento, o artista ganha uma força de sublimação e sua arte pode ajudá-lo a discutir, compreender e conviver com a própria doença.”

Alguns superaram o mal sem que isso aparecesse em sua obra, como Antônio Francisco Lisboa (1730-1814), conhecido como Aleijadinho, que sofreu de uma doença degenerativa (não se sabe ao certo se sífilis, escorbuto, hanseníase ou reumatismo), sem que isso refletisse em suas esculturas. Outros acusaram o golpe de forma sutil, como o espanhol Francisco Goya (1746-1828), cuja pintura variou de graciosa para trágica depois que o artista perdeu a audição aos 46 anos de idade. O norueguês Edvard Munch (1863-1944) começou a pintar aos 17 anos, depois que sua mãe e uma irmã morreram de tuberculose, e colecionou tragédias (seu pai e um irmão morreram e outra irmã foi internada em um hospital psiquiátrico) antes que completasse 30 anos e pintasse seu quadro mais famoso: O Grito, uma mistura de dor, desespero e tinta a óleo.

Henri e Henry

Na exuberante Paris do final do século 19, o infortúnio atingiu a rica família burguesa do conde Alphonse. No dia 30 de maio de 1878, então com 13 anos de idade, o pequeno Henri tentou pular uma cadeira em seu quarto, tropeçou e quebrou a perna esquerda. A recuperação foi lenta e não tinha terminado quando o menino saiu para uma caminhada e caiu depois de pisar em um buraco: quebrou a direita. Nunca mais ele foi o mesmo. Dono de um talento natural para o desenho, Henri Toulouse-Lautrec chegou à idade adulta com apenas 1,37 metro de altura e nunca esteve à vontade com isso. Superprotegido pela mãe, Adèle, sentia-se humilhado em seu meio social, não tinha amigos nem namoradas. “Por causa do trauma físico, abandonou a doce vida de menino rico e preferiu a companhia de outros excluídos, como jogadores, artistas e prostitutas”, afirma Daisy Peccinini, pesquisadora do Museu de Arte Contemporânea da USP. Passou a viver (chegou a morar, mesmo) em cabarés que eternizou em suas obras, como o Chat Noir e o Moulin Rouge. Mas a vida boêmia cobrou seu preço. Toulouse-Lautrec morreu aos 47 anos de idade, com a saúde debilitada pelo álcool e pela sífilis.

Numa manhã quente do verão de 1890, na cidade francesa de Le Cateau-Cambrésis, quando Héloise Gérars deixou a loja onde vendia sementes com o marido para visitar o filho acamado depois de uma cirurgia de apendicite, algo no mundo das artes estava para mudar. Com 20 anos, o outro Henri era estudante de direito em Paris, onde dividia seu tempo entre os livros, um escritório de advocacia e visitas ao Louvre.

Dona Héloise levou-lhe um estojo de pintura, tinta guache e alguns pincéis, e a França perdeu um advogado para ganhar um mestre das artes. Henri Matisse largou a faculdade para se dedicar à pintura e à escultura. Quando expôs no Salão de Outono de Paris, em 1905, aos 35 anos de idade, conquistou fama internacional como um dos mais inova-dores – e modernos – artistas de todos os tempos. Matisse morreu em 1954, aos 65 anos, de câncer no intestino.

Jackson e Vicent

Em 1912, enquanto Matisse renovava as cores da arte moderna ocidental, nascia do outro lado do Atlântico um homem que, marcado sobretudo pelo alcoolismo, revolucionaria a arte da expressão. O mais novo de cinco filhos, Jackson teve uma infância conturbada. Aos 10 anos de idade já havia morado em seis estados diferentes e ainda na escola envolveu-se com a bebida. Aos 16 anos começou a estudar arte, primeiro em Riverside, na Califórnia, de onde foi expulso após uma briga, e depois em Nova York.

Aos 25 anos, foi internado pela primeira vez para tratamento psiquiátrico, tentando livrar-se do alcoolismo. Várias internações se seguiram, sem que conseguisse deixar o vício. Reconhecido como um artista realmente original, Jackson Pollock deixou Nova York e, na época, admitiu que as tentativas de desintoxicação passaram a nortear sua produção, cada vez mais expressiva de suas angústias, ansiedades e depressões. “Pollock transformou os conceitos surrealistas com sua rebeldia e seu método de pintar. Ele não tinha paciência para o tradicional e ansiava por descobrir coisas novas”, diz Daisy.

Esse anseio acabou refletindo em sua pintura. Imensas telas eram esticadas no chão e ele deixava a tinta escorrer de latas furadas ou a espalhava usando pedaços de madeira ou escovas de dente. Tudo feito de maneira muito rápida e intuitiva. “Quando me encontro na minha pintura, não tenho consciência do que estou fazendo. Mas apenas quando perco o contato com ela é que o resultado é uma confusão. Do contrário, há pura harmonia”, escreveu o artista em 1947, citado pelo crítico americano Frank O’Hara no livro Jackson Pollock.

Aos 44 anos, Pollock voltava para casa embriagado depois de uma festa quando seu carro chocou-se com uma árvore. A morte foi instantânea.

Distúrbios psicológicos são comumente associados à criatividade, como se fossem indícios de genialidade ou mesmo condições necessárias para a manifestação artística. É possível que Theodore tenha pensado nisso quando encontrou aquele envelope. Impossível não reconhecer a letra do irmão, Vincent. Na carta, ele dizia que decidira instalar-se em Paris. Era 1880 e o holandês Vincent van Gogh acabara de sofrer uma crise nervosa. A ida a Paris era uma decisão importante. Ele deixaria para trás uma carreira religiosa e a família e apostaria tudo na arte. Havia decidido expressar seus sentimentos por meio da pintura.“Preferiria minha loucura à sabedoria dos outros”, escreveu. “Em Paris, seus quadros ganharam cores fortes que foram além da representação da natureza, expressando o estado do artista”, diz Daisy. Mas não parece que tenha conseguido a paz que almejou.

Em 1888, Van Gogh foi para Arles e convidou o amigo e artista francês Paul Gauguin para ir com ele. No mesmo ano, passou a sofrer de epilepsia, o que o deixou extremamente nervoso e sujeito a surtos psicóticos. Durante uma crise, discutiu com Gauguin e, no extremo de sua condição, cortou um pedaço da própria orelha.

Em 1889, foi internado no hospital de Saint-Remy para doentes mentais. Lá pintou paisagens, internos, pátios e médicos. Seus últimos quadros mostram fortes deformações da realidade. Seus trigais estão inquietos, os ciprestes trêmulos, as oliveiras retorcidas. Em 27 de julho de 1890, depois de pintar 70 quadros em poucas semanas, Van Gogh saiu para o campo que havia pintado dias antes com um revólver na mão. Deu um tiro no próprio estômago e, dois dias depois, aos 37 anos de idade, morreu.

Amedeo e Frida

A vida nunca foi fácil para o mais novo dos quatro filhos de Flaminio e Eugenia. A família lutava com muitas dificuldades em Livorno, Itália, e o pequeno Amedeo já ajudava no orçamento dando aulas particulares e fazendo traduções. Apesar da pobreza, seguiam uma tradição de interesses literários e filosóficos. Aos 14 anos, o caçula contraiu febre tifóide e teve que abandonar a escola, passando a dedicar-se ao estudo da arte. Dois anos depois caiu novamente doente, dessa vez com tuberculose.

Mas manteve-se firme no propósito de estudar arte. Foi para Florença e depois Veneza, onde tomou contato com artistas impressionistas e as esculturas de Rodin. Foi em Veneza também que Amedeo Modigliani rendeu-se ao hábito do haxixe. Em 1906, chegou a Paris e aderiu, apesar da saúde débil, à vida sensual e dissoluta dos artistas de Montmartre. Sob efeito da pobreza, consolado pelo vinho e pelas drogas, Modigliani passou a pintar retratos. Pintava pescoços alongados e rostos e olhos mortiços, inteiramente azuis ou cinza.

Em 1919, a tuberculose o atacou de forma aguda e Modigliani pintou seu único auto-retrato, em que aparece vestindo sobretudo e cachecol. As mãos finas e frágeis acompanham o rosto magro de olhos vazados. Poucos meses depois, em 24 de janeiro de 1920, morreu aos 35 anos de idade.

Modigliani talvez pudesse ter cuidado melhor da saúde. Muitos não têm essa chance. A mexicana Frida Khalo teve poliomielite aos 6 anos. Com o pé direito ligeiramente deformado, ela seguiu uma vida normal e ingressou na Escola Nacional Preparatória em 1922. Atraída para as artes pelo maior pintor mexicano, Diego Rivera, conseguiu emprego como aprendiz, em 1925. No mesmo ano, sofreu uma grave lesão na coluna em um acidente de trânsito.

No mês em que ficou no hospital, apesar de amparada em talas de gesso e com os movimentos limitados, fez as primeiras tentativas na pintura. Quando foi para casa, sua mãe providenciou para que a cama fosse adaptada para permitir a ela pintasse.

Em 1930, já casada com Rivera, sofreu um aborto. E outro, em 1932. Em 1934 teve nova gravidez interrompida e os dedos do pé doente amputados.

Apesar das limitações físicas, Frida Khalo continuou participando de exposições e lecionando. Em 1944, pintou A Coluna Partida. Três anos depois teve a coluna vertebral operada e permaneceu meses imobilizada. Em 1950 passou por mais sete cirurgias: mais nove meses no hospital. Em 1953, quando foi organizada sua primeira exposição individual, ela compareceu instalada numa cama, ao lado de suas telas. No mesmo ano teve a perna direita amputada até o joelho.

Ainda em 1953, Frida Khalo tentou o suicídio. No ano seguinte, desafiou os conselhos médicos e, apesar de uma infecção pulmonar, participou das manifestações contrárias à intervenção americana na Guatemala. Morreu logo depois, em julho, aos 47 anos.



Só dói quando eu escrevo
Para alguns escritores, odeclínio da saúde pode ter despertadouma nova sensibilidade
Leandro Sarmatz
“O mais prático dos sóis, / o sol de um comprimido de aspirina.” Quem escreveu esses versos não foi um publicitário a soldo da indústria farmacêutica, mas o poeta pernambucano João Cabral de Melo Neto (1920-1999). Vítima de enxaqueca por décadas, João Cabral tomava o comprimidinho branco como quem chupa dropes de hortelã.

Nem todos tiveram o sangue-frio e a ironia do autor de Morte e Vida Severina. Para grandes nomes da literatura, experimentar a dor e a degradação física significou penetrar em um mundo diferente. Em alguns casos, a provação foi demais. Noutros, a doença os fez descobrir um outro tipo de sensibilidade e talvez tenha até influenciado suas obras. Há estudiosos capazes de jurar que o estilo frondoso de Marcel Proust (1871-1922) nas quase 3 mil páginas de Em Busca do Tempo Perdido seja conseqüên-cia direta da asma. Encerrado num quarto forrado com cortiça durante vários anos, Proust fez o retrato da fina flor parisiense entre crises que o obrigavam a passar longos períodos afastado do mundo. Os críticos dizem que, se não fosse a doença, Proust teria sido apenas mais um esnobe da aristocracia da Cidade Luz.

Pulmões, aliás, parecem ser o calcanhar-de-aquiles de vários autores. Entre a metade do século 19 e o início do 20, a tuberculose ceifou dezenas de poetas e ficcionistas. O bacilo de Koch assombrou a existência de vários autores românticos, inspirando poemas melancólicos, liris-mo saudosista e elegias a granel. A cons-ciência da brevidade da vida forçava escritores mal saídos da adolescência a uma espécie de maturidade forçada. Por volta de 1870, o impacto da doença entre poetas europeus e latino-americanos era devastador. Como os britânicos lorde Byron e John Keats e os brasileiros Castro Alves e Álvares de Azevedo – todos invariavelmente boa-pinta, talentosos e com muito ainda a oferecer para as letras –, que feneceram como flores do jardim das musas.

Mas a ciranda fatal de tosse, fraqueza e catarro escarlate não foi exclusividade da geração “mal do século”. Ainda no século 20, o checo Franz Kafka (1883-1924), autor de A Metamorfose, teve a doença diagnosticada no período mais produtivo de sua carreira. Durante os sete anos entre a descoberta da tuberculose e a morte num sanatório austríaco, Kafka deixou alguns de seus melhores contos e textos biográficos que, por sua lucidez quase sobre-humana, só poderiam ter sido escritos por alguém que estivesse com um pezinho no outro mundo (qualquer que seja!).

Contemporâneo de Kafka, o irlandês James Joyce (1882-1941) presenciou o gradativo ocaso de sua acuidade visual. Vítima de glaucoma (pressão ocular), o autor de Ulysses já não enxergava quando completou Finnegans Wake, talvez o romance mais enigmático da história. Já se aventou a possibilidade de a atmosfera sombria do livro ter estreita relação com a doença de Joyce. Para um escritor, perder a visão pode parecer o mesmo que o Ronaldinho ter a perna amputada. Mas para o argentino Jorge Luis Borges (1899-1986) a cegueira não significou o ocaso da carreira. Dono de uma memória proverbial, Borges compunha textos de cabeça e depois pedia para transcrevê-los no papel. Mas essa forma de “escrever” teve pelo menos uma conseqüência danosa: seus contos tornaram-se simples e até esquemáticos – ao contrário da sofisticação da época em que o autor de O Aleph enxergava.


Cândido
Um dos maiores artistas brasileiros morreu intoxicado pelo amarelo
A dor enfrentada pelo artista pode estar presente em sua obra. Mas, às vezes, é a própria arte o motivo da dor. Um dos mais importantes artistas brasileiros, o filho de imigrantes italianos Cândido Portinari, expressava através da pintura as dores sociais do país e do mundo à sua volta. Desde Despejados, de 1934, ele soube mostrar a força expressiva dos tipos humildes, coti-dianos e verdadeiros. Seu trabalho marcou uma produção nacional independente e rapidamente alcançou reconhecimento internacional. Portinari era apaixonado pela pintura e pela cor.

Em 1954, no entanto, essa dedicação seria colocada à prova. Enquanto realizava os painéis Guerra e Paz – encomenda do governo brasileiro que hoje ocupa a sede da ONU, em Nova York –, Portinari começou a ter crises respiratórias e foi internado para testes e exames. Os médicos detectaram uma intoxicação causada pelo elevado índice de chumbo contido nas tintas que usava, particularmente num tipo de amarelo, e recomendaram que o artista passasse um tempo sem pintar. A biografia do artista publicada pelo Projeto Portinari conta que o artista reclamou à amiga e escritora Dinah Silveira de Queiroz: “Imagine! Não posso mais pintar. Estou proibido de viver!”

Por um tempo, Portinari dedicou-se ao desenho, compôs a série Dom Quixote em 1956, e passou a escrever memórias e poemas. Mas, mesmo em menor escala, continuou a pintar.

Em 1961, o artista sofreu diversas crises e alternou períodos de repouso com outros de trabalho entusiasmado. No ano seguinte, enquanto preparava uma exposição em Milão, descuidou-se da saúde e das recomendações médicas e voltou a usar os amarelos proibidos. O escritor português José Cardoso Pires escreveu sobre esse momento, no livro E Agora, José?: “O veneno das tintas lhe tinha corrompido o sangue, e ele sabia-o. O óxido das cores circulava nele como uma silicose de artesão, era o seu secreto respirar. E indo assim, em irmandade com a morte”. O estado de saúde do artista se agravou na madrugada de 6 de fevereiro de 1962. Portinari morreu no mesmo dia, às 23h40, no Rio de Janeiro.


Saiba mais
Livros

Cartas a Théo, Vincent van Gogh, L&PM, 2002 - Revela a percepção que o artista tinha sobre sua arte, o mundo e sua doença

Ceifar: Semear – A Correspondência de Van Gogh, Luciana Bertini Godoy, Annablume, 2002 - Propõe um método inovador para analisar a relação entre psicologia e arte

Frida Kahlo, Rauda Jamis, Martins Fontes, 1987 - Biografia romanceada traz trechos de seu diário

Jackson Pollock, Frank O’Hara, Itatiaia, 1960 - As várias fases da vida, da arte e da doença do mais inovador artista americano do século 20

Revista Aventuras na Historia

quinta-feira, 25 de junho de 2009

As cruzadas das crianças


As cruzadas das crianças
Liderados por meninos pobres, milhares de camponeses, mendigos e doentes cruzaram a Europa, em 1212, em procissões que queriam chegar a Jerusalém
por Isabelle Somma e Kako
Estêvão tinha apenas 12 anos. Era analfabeto e ajudava a família cuidando de cabras em Cloyes, no norte da França. Em maio de 1212, foi até Saint Denis, onde o rei Felipe Augusto havia se instalado, para entregar-lhe uma carta. O menino dizia que Jesus em pessoa lhe pedira para liderar uma nova cruzada contra os muçulmanos. Mas, diferentemente das quatro incursões anteriores à Terra Santa, o exército cristão deveria ser formado por crianças. Segundo Estêvão, com o coração e a alma livres de pecados, elas receberiam a ajuda de Deus, venceriam os infiéis e retomariam Jerusalém.

Não se sabe se Felipe recebeu o menino e é provável que ele sequer tenha lido a tal carta. Sabe-se porém que o monarca ficou intrigado com a pregação do pequeno pastor e, como não tinha certeza do que fazer com ele, mandou consultar os acadêmicos da Universidade de Paris. A resposta foi sábia: o rei deveria mandá-lo de volta para casa. E assim o fez. Até aqui, a história está documentada e consta dos textos dos principais cronistas da época, entre eles Vincent de Beauvais e Roger Bacon.

A partir daí, o que aconteceu a Estêvão virou um mito que foi recebendo enxertos aqui e ali, até se tornar um dos episódios mais emblemáticos da Idade Média, conhecido como a Cruzada das Crianças. Estêvão se tornaria uma lenda, mas não seria o único. Na Alemanha, no mesmo ano, movimentos muito semelhantes aconteceram. “Juntas, essas procissões teriam reunido cerca de 40 mil pessoas, segundo os textos medievais, mas a maioria dos especialistas acredita que é exagerado”, diz o historiador Malcolm Barber, da Universidade de Reading, Inglaterra.

Para entender essas manifestações populares é preciso voltar ao início do século 13. Na baixa Idade Média, as migrações eram comuns em toda a

Europa. A população crescera bastante e havia muitos camponeses sem terras, migrando de vila em vila, procurando trabalho ou algum tipo de assistência. Essa multidão que vivia em trânsito ou à beira das estradas era um público farto para os pregadores messiânicos, que dominavam a cena religiosa. “O cristianismo estava ameaçado por muçulmanos e bárbaros e os movimentos de 1212 são filhos dessa crise”, diz Christopher Tyerman, professor do Hertford College, em Oxford, Inglaterra.

Após o fracasso da Quarta Cruzada, entre 1202 e 1204, surgiu no norte da França e no vale do rio Reno (na atual Alemanha) a idéia de que uma dessas peregrinações deveria se transformar numa nova cruzada popular composta apenas por pessoas comuns e desarmada que iria retomar Jerusalém apenas com o auxílio divino. Assim, quando Estêvão apareceu em Saint Denis, parecia uma resposta às preces daquelas almas cristãs atormentadas que perguntavam: “Por que nós não conseguimos expulsar os muçulmanos de solo sagrado?” Na lógica medieval, Deus não parecia disposto a ajudar as tropas comandadas por nobres pecadores, usurpadores e impuros. Por isso, a idéia de realizar uma cruzada com crianças, imaculadas e livres de pecados, como o próprio Jesus, fazia sentido. Se do ponto de vista religioso essa pregação não representava novidade, do ponto de vista prático era um tremendo desafio.

De Saint Denis a Jerusalém seria uma viagem de 4 mil quilômetros que duraria meses ou até anos. Quem seguiria uma criança numa aventura como essas? Que pais deixariam seus filhos partirem assim?

A marcha dos incluídos

Para Tyerman, algumas características da época podem nos ajudar a responder. Primeiro, o próprio conceito de criança era muito diferente do que é hoje. Depois, a palavra latina pueri pode ter sido mal traduzida. “O termo significa ‘homens jovens’ tanto quanto ‘crianças’”, afirma. O professor Barber concorda. “A maioria dos peregrinos não eram crianças, mas jovens trabalhadores rurais, pastores e padres”, diz.

Segundo Barber, já havia um movimento popular em Saint Denis antes da entrada do menino na cidade. “Estêvão de Cloyes chegou à cidade e se juntou a religiosos e peregrinos que voltavam do Oriente pregando a realização de uma nova cruzada. Na cidade, o menino, que tinha fama de milagreiro, foi considerado líder, antes que o grupo fosse dispersado pelo rei”, diz.

No entanto, Christopher Tyerman acha que esse pode ser o ponto final da história. “Se nos basearmos apenas em provas documentais é impossível afirmar que o grupo tenha ido além de Saint Denis”, diz. Para ele, Estêvão e seus amigos nunca chegaram ao Mediterrâneo. “As crônicas francesas da época citam as andanças pelo interior, mas nenhuma afirma que eles estiveram nas proximidades do litoral.”

Porém, num clássico artigo publicado em 1917, na American Historical Review, o historiador Dana Munro, de Princeton, Estados Unidos, afirmou que a turma de Saint Denis seguiu em procissão até Marselha. Munro se baseou em textos escritos entre 30 e 150 anos depois dos fatos e, segundo eles, o cortejo prosseguiu e, por onde passava, recebeu adesões de homens e mulheres de vida irregular – em outras palavras, prostitutas, vagabundos e vigaristas. Clérigos, que desejavam conhecer Jerusalém, e velhos, que queriam morrer por lá, também se uniram à trupe.

O historiador britânico Steven Runciman reproduz em seu livro A História das Cruzadas: O Reino de Acre alguns desses textos antigos. Eles contam que Estêvão teria sido elevado ao posto de santo e quando chegou a Vendôme, no final de julho, uma multidão já o esperava. “Eram por certo vários milhares de jovens, oriundos de todas as partes do país, muitos deles trazidos pelos próprios pais”, escreve Runciman. Dali, partiram para o litoral, onde Estêvão havia prometido fazer com que o mar se abrisse. O menino ordenou ao Mediterrâneo que lhes desse passagem, mas as ondas, é claro, continuaram a bater na praia.

Decepcionados, alguns voltaram para casa, mas a maioria ainda esperava um milagre. E não é que aconteceu algo inusitado? Dois mercadores da cidade, Hugo “o Ferro” e Guilherme “o Porco”, se ofereceram para levar os pequenos cruzados de navio para a Terra Santa. Sem cobrar um tostão, tudo pela glória de Deus. “Em julho de 1212, cerca de 2 mil jovens embarcaram em sete navios”, escreveu Munro. Durante 18 anos, não se ouviria mais falar deles.

As cruzadas germânicas

Não muito longe dali, em Colônia (na região onde atualmente fica a Alemanha), ocorria um movimento popular muito semelhante. Para Steve Runciman, trata-se do mesmo fenômeno. “As histórias de Estêvão devem ter chegado à Renânia (no vale do rio Reno) e apenas algumas semanas depois de ele ter estado em Saint Denis, um jovem camponês de nome Nicolau pregava diante do santuário dos Três Reis Magos”, afirma Runciman. Ele também dizia que o mar se abriria para que as crianças chegassem a Jerusalém e que elas converteriam os muçulmanos. As semelhanças não param por aí: “Nicolau era um menino camponês de 10 anos, humilde e religioso. Ele chegou a reunir cerca de 7 mil pessoas, mas a média de idade era certamente maior que a dos cruzados franceses”, diz Tyerman.

A história dos cruzados germânicos foi mais bem documentada. O bispo de Cremona, Sicardus, relata em um texto da época que o objetivo do grupo de Colônia era ir para o porto de Gênova (na atual Itália) e de lá embarcar para Alexandria, no Egito, de onde seguiria para Jerusalém. Ele também afirma que a população dos vilarejos distribuía-lhes comida e apoiava a marcha, que chegou a ter 20 mil integrantes. Por onde passavam, missas eram celebradas e mais gente seguia com eles. Mas nem as preces nem as aleluias foram suficientes para proteger aqueles meninos durante a travessia dos Alpes. Segundo os Annales Stadenses, textos apócrifos do século 13, apenas um terço do grupo conseguiu vencer as montanhas. Alguns desistiram e voltaram para casa, outros morreram de fome ou de frio.

Os sobreviventes continuaram a jornada até o litoral e em 25 de agosto de 1212 a procissão finalmente chegou a Gênova. Apavorado com aquele bando de maltrapilhos vagando pela cidade, o governador local deu a eles duas alternativas: quem quisesse se instalar na cidade seria bem-vindo, quem tivesse outra intenção deveria deixar a cidade. Cansadas e famintas, algumas crianças conseguiram abrigo nas casas de generosos genoveses. Cada vez menor, a procissão continuou até Pisa, onde novamente se dividiu. Segundo Runciman, alguns embarcaram em dois navios que partiram para a Palestina e também sumiram dos registros históricos. Mas a maioria seguiu com Nicolau para Roma, onde foram recebidos pelo papa Inocêncio III, que ficou comovido pela sua fé, mas constrangido com sua insensatez, e pediu que todos voltassem para casa.

Os registros medievais, a maioria escrita por padres e religiosos, não se importaram em relatar a volta desses peregrinos para casa. Segundo os Annales Stadenses, no entanto, o grupo se dispersou pelas aldeias italianas e jamais se ouviu falar de Nicolau.

Trágicos destinos

Em 1230, chegou à França um padre vindo do Palestina, com uma incrível história para contar. Ele dizia ser um dos jovens sacerdotes que seguiu Estêvão a Marselha e embarcou com ele nos navios rumo ao norte da África. Seu relato foi contado por outro religioso, Albericus Trium Fontium, o único texto da época que cita o acontecido. Segundo ele, três dias depois da partida, na altura da costa da Sardenha, uma forte tempestade atingiu as embarcações. Duas delas foram arremessadas pelos ventos e ondas fortes contra uma pequena ilha rochosa e naufragaram. Todos os passageiros e a tripulação morreram afogados. Os cinco navios restantes seguiram até Alexandria, no Egito. No desembarque, os cerca de 700 sobreviventes foram presos. A generosa oferta dos mercadores era uma armadilha e os jovens integrantes da cruzada foram vendidos como escravos no mercado da cidade.

O jovem padre e alguns outros que sabiam ler e escrever teriam sido comprados pelo próprio governador do Egito, Malek Kamel, que se interessava pela cultura ocidental e empregava-os como intérpretes. Outros foram levados a Bagdá e, desses, nunca mais se ouvira falar.

O relato de Albericus, no entanto, está longe de ser uma unanimidade. “Ele está cheio de inconsistências, mas é provável que esteja baseado em relatos verdadeiros e que seja fiel à história”, afirma o historiador Barber. Já para o professor Tyerman, porém, o texto do religioso não passa de literatura. Seja como for, Albericus não explica qual foi o fim de Estêvão, o menino de 12 anos que liderava o grupo. Teria virado escravo? Morrido no naufrágio? Até hoje, não há pistas sobre seu destino.



Rumo à terra prometida
Mais de 4 mil quilômetrosseparavam as criançasde Jerusalém
Nicolau saiu da Germânia e se encontrou com o papa

1. Colônia

A cidade foi o ponto de partida da marcha, que contava no início com cerca de 7 mil componentes

2. Gênova

O mar não se abriu como Nicolau prometera. Decepcionadas, algumas das crianças acabaram ficando na cidade

3. Pisa

Alguns seguidores conseguiram carona em navios com destino à Palestina. O restante continuou adiante

4. Roma

Outros, incluindo Nicolau, prosseguiram a marcha até Roma, onde se encontraram com o papa Inocêncio III

Estêvão, um jovem pastor de ovelhas, liderou milhares

1. Cloyes

Vilarejo de onde o pequeno pastor teria partido, já como uma procissão com integrantes mirins

2. Saint Denis

Primeira e talvez última parada. Lá, o grupo tentou ser recebido pelo rei, que ordenou a volta de todos para casa

3. Marselha

Em outra versão, eles teriam obtido carona em sete embarcações depois que Estêvão não conseguiu abrir o mar

4. Alexandria

As embarcações atracaram no porto egípcio. Lá, as crianças foram acorrentadas e vendidas como escravas

5. Bagdá

Cerca de 700 crianças teriam sido compradas pelo sultão Malek Kamel e levadas para trabalhar no palácio real


Quarta cruzada, grande furada
A Quarta Cruzada, iniciada em 1202, foi um dos maiores micos da história da Igreja Católica. Sob as bênçãos do papa Inocêncio III, os combatentes armados pelos ricos comerciantes de Veneza nem chegaram ao destino escolhido para o desembarque, Damieta, no Egito. Para pagar pelo transporte, o exército cruzado concordou em invadir o porto húngaro (e cristão) de Zara e entregá-lo aos venezianos. No ano seguinte, a tropa seguiu para Constantinopla, a fim de resolver uma disputa pelo controle do Império Bizantino. Um dos querelantes, Aleixo, era cunhado do imperador germânico, Felipe de Swabia.

O embate opôs cruzados contra bizantinos, ou seja, novamente cristãos contra cristãos. O resultado foi o saque e a completa destruição de Constantinopla. Satisfeitos com o butim, os cruzados esqueceram-se da luta conta os infiéis e voltaram para casa. Os cristãos ortodoxos não perdoariam o papa ou Roma pelo acontecido. Somente em 2001, em viagem à Grécia, o papa João Paulo II conseguiu pôr fim à pendenga, pedindo desculpas oficiais por aquela cruzada.


Os sem-infância
Assim como na Roma antiga, na Idade Média a infância era um período muito breve. Meninos e meninas eram considerados crianças somente até os 6 anos de idade. Dali em diante, eles já enfrentavam uma longa jornada de trabalho. As famílias de agricultores empregavam seus filhos no pesado trabalho da lavoura. De sol a sol elas participavam da plantação e da colheita. Os pais artesãos colocavam sua prole para trabalhar como aprendizes. Ao dominar o ofício, os pequenos já se viravam para ajudar no sustento da casa. As meninas não tinham sorte muito diferente. Desde muito jovens já ajudavam nos serviços domésticos. Naquela época, ao nascer, a criança também tinha um status diferente do atual. As crianças não tinham direitos. Elas eram propriedade dos pais e era dessa forma que eram tratadas. Essa situação está refletida nas expressões artísticas da época. Até o século 12, a arte medieval desconhecia ou ignorava as crianças.

Em esculturas e pinturas, elas eram retratadas como adultos em miniatura: o corpo era igual, somente a altura era menor. No dia-a-dia, as crianças trajavam roupas iguais às dos adultos e que em nada lembravam sua idade. Os casamentos eram realizados muito cedo. Meninas a partir dos 12 anos já eram sérias candidatas ao noivado. Portanto, os adolescentes da época eram jovens adultos que já trabalhavam, casavam e tinham filhos. Essa situação só começou a mudar na Renascença. Durante esse período, os artistas começaram a retratar as crianças de maneira mais realista, brincando ou sendo amamentadas. Mais tarde, durante o iluminismo, o filósofo inglês John Locke (1632-1704) defendeu que a mente infantil era uma “tábula rasa”, que era alimentada com conhecimentos passados pelo mundo exterior.

E, portanto, a qualidade das primeiras experiências seria vital para sua boa formação. Somente no século 18, o conceito medieval de que as crianças eram seres maus por natureza caiu por terra. Segundo o filósofo francês Jean-Jacques Rousseau (1712-1778), elas nasciam boas e deveriam ser preservadas das maldades do mundo exterior para que mantivessem esse espírito. A obra de Rousseau influenciaria escritores como Victor Hugo (1802-1885) e Charles Dickens (1812-1870), que expuseram a bárbara exploração da mão-de-obra infantil.


Saiba mais
Livros

A História das Cruzadas: O Reino de Acre e as Últimas Cruzadas, Steven Runciman, 2003

The Children´s Crusade, American Historical Review, volume 19, de Dana C. Munro, O livro de Runciman dedica apenas metade de um capítulo ao assunto, em que apresenta a versão de Albericus. O melhor texto sobre o que realmente teria ocorrido é o de autoria de Dana C. Munro

Revista Aventuras na Historia