I. INTRODUÇÃO
Assistimos, após o "11 de setembro", a uma renovação do interesse dos cientistas sociais pelo fenômeno do terrorismo. No entanto, a recente profusão de artigos e estudos sobre o tema não parece ter resultado numa maior facilidade de diálogo – científico e político –, "intra" ou interdisciplinar, sobre esse fenômeno, possivelmente porque os cientistas sociais pouco têm refletido sobre o caráter político e ideológico dos seus próprios conceitos e estudos. É esse o ponto de partida deste artigo para explorar as diversas concepções sociais do terrorismo e os dilemas políticos dos cientistas que o estudam.
Interessante, desde logo, é a perspectiva de alguns investigadores, que renunciam a apresentar a sua definição de terrorismo, alegadamente porque identificam-no como um fenômeno histórico, contextualmente situado, que se transforma ao longo dos tempos. Laqueur, por exemplo, considera que, por o terrorismo ser um fenômeno histórico, do qual existem inúmeras formas e definições, apenas pode-se dizer dele que é: "[…] o uso da violência por parte de um grupo para fins políticos, normalmente dirigido contra um governo, mas por vezes contra outro grupo étnico, classe, raça, religião ou movimento político. Qualquer tentativa de ser mais específico está votada ao fracasso, pela simples razão de que não há um, mas muitos terrorismos diferentes" (LAQUEUR, 1999, p. 46)1.
No entanto, afirmar a multiplicidade de formas do terrorismo, como faz Laqueur, é simultaneamente afirmar uma determinada concepção, que considera, de igual modo, uma diversidade de perpetradores e de vítimas, de contextos sociais e políticos, de formas e meios utilizados para o exercício da violência e de legitimação da mesma. É, também, encontrar nessa multiplicidade de formas históricas do terrorismo, traços comuns que o distinguem de outros tipos de violência, como a guerra ou a guerrilha.
A perspectiva de Laqueur liga-se à tentativa de encontrar uma concepção universalmente válida e neutra, para além dos interesses políticos2. É a posição assumida também por Vasconcelos, no seu trabalho sobre o terrorismo em Portugal no tempo do Estado Novo: "a falta de uma definição universal de terrorismo não é tanto resultado de uma conceituação teórica insuficiente como uma conseqüência de compreensões, interesses e crenças políticas contraditórias" (LAQUEUR, 2003, p. 1-2). A autora procura, assim, uma definição operacionalmente válida, acabando por encontrá-la numa definição, do tipo comportamental, do que chama "terrorismo no sentido estrito", ou terrorismo politicamente motivado: "O terrorismo político é o processo de projetar violência através de alvos multiplicadores de ansiedade, em audiências percebidas como legitimas geradoras de mudança no comportamento político" (idem, p. 29). Tal definição teria, segundo a autora, a vantagem de poder ser operacionalizada a qualquer contexto, independentemente da identidade do perpetrador, da vítima, ou da causa, evitando assim o viés político e moral. Mas será de fato assim?
Por um lado, a definição proposta por Vasconcelos supõe uma definição consensual de violência que também não é fácil de se conseguir. Por outro lado, pode o investigador que estuda o terrorismo não se identificar com a vítima, com o perpetrador ou com a causa? E se, como afirma Wardlaw, "[...] um ato será visto como terrorista se as pessoas se identificarem com a vítima do ato [...] se a identificação é com o perpetrador, o ato é visto em termos (ou na pior das hipóteses, neutro ou ambivalente)" (Wardlaw apud VASCONCELOS, 2003, p. 25), podemos negligenciar esses processos de identificação, no estudo do terrorismo e na teorização sobre esse fenômeno? Se a investigação científica pode servir a fins de regulação ou de emancipação social, não devemos nós, como cientistas, assumirmos explicitamente as nossas premissas de valor? E principalmente quando trata-se de estudar fenômenos que estão próximos de nós, quanto ao nível identitário? Ao contrário do que afirma Luísa Vasconcelos, o problema não está em chegar a uma definição universal sobre terrorismo, mas em teorizar e tentar compreender esse fenômeno, o que só é possível se o analisarmos, no seu caráter político e na sua diversidade discursiva, como fenômeno socialmente situado. O perigo está exatamente em, à força de procurar uma definição universal, naturalizar essa mesma definição sem compreender o seu caráter político.
Este artigo visa a explorar esse mesmo caráter político e de construção social do terrorismo, na diversidade das suas concepções, procurando entender as lógicas de regulação e/ou emancipação social que orientam estas conceituações nas diferentes áreas disciplinares. Não partindo duma posição de neutralidade valorativa – pelo contrário –, esta análise é guiada pela idéia de que um discurso progressista sobre o terrorismo deve fomentar a teorização e o debate acadêmico e público sobre esse fenômeno, e não procurar uma definição universal e comportamental do mesmo. Como refere Santos, um discurso crítico sobre o terrorismo tem de olhá-lo tanto internamente quanto externamente, o que só é possível por meio do "aprofundamento democrático e do multiculturalismo progressista" (SANTOS, 2005).
Este artigo encontra-se estruturado por determinadas questões ou núcleos temáticos que se consideram pertinentes para o objetivo acima referido. Um primeiro núcleo temático prende-se com as concepções políticas clássicas do terrorismo e com a análise do ponto de vista dos líderes revolucionários marxistas sobre esse fenômeno. Em seguida, exploram-se as diversas concepções dos cientistas sociais e políticos sobre o novo terrorismo transnacional. Por último, analisa-se a relação entre a democracia e o Direito na luta contra o terrorismo e apresenta-se a concepção deste como construção social. Da análise destes núcleos temáticos pretende-se levantar as principais questões que informam sobre as lógicas de regulação versus emancipação social, nas conceituações do terrorismo.
II. TERROR E TERRORISMO: CONCEPÇÕES POLÍTICAS CLÁSSICAS
No Dicionário de Política, organizado por Bobbio, Matteucci e Pasquino, Bonanate apresenta o terror e o terrorismo como dois fenômenos diferentes, associados a diferentes atores sociais. Por terror, entender-se-ia "o instrumento de emergência a que um governo recorre para manter-se no poder" (BONANATE, 1986, p. 1 242). O exemplo mais marcante de terror seria o período da ditadura do Comitê de Saúde Pública, liderado por Robespierre e Saint-Just, durante a Revolução Francesa (1793-1794). O terrorismo político seria, ao contrário, "o instrumento ao qual recorrem determinados grupos para derrubar um governo acusado de manter-se por meio de terror" (ibidem). O atentado político seria, nessa perspectiva, uma expressão do terrorismo político, um momento catalisador do mesmo, enquanto este último seria, nessa acepção clássica, uma resposta ao terror do Estado, por parte de grupos organizados e ideologicamente homogêneos que desenvolvem a sua luta clandestinamente, tentando despertar a consciência popular para a necessidade de se envolverem ativamente nesse "atalho no processo de crescimento revolucionário".
Essa forma clássica de terrorismo político, teria três características fundamentais: primeiramente, tratar-se-ia de um movimento organizado, com ideologia e estratégias bem definidas; em segundo lugar, visaria persuadir o povo a envolver-se em "ações demonstrativas que têm, em primeiro lugar, o papel de "vingar" as vítimas do terror exercido pela autoridade e, em segundo lugar, de "aterrorizar" esta última, mostrando como a capacidade de atingir o centro do poder é o resultado de uma organização sólida" (ibidem); e, por último, iria alargando a sua escala de ação por meio de um aumento progressivo de atentados que "simboliza o crescimento qualitativo e também quantitativo do movimento revolucionário" (ibidem).
Veja-se o caráter populista e revolucionário dessa acepção de terrorismo político, muito associado ao comunismo. As ações terroristas são, nesse caso, legitimadas pelos seus motivos de luta contra o terror do Estado e pela sua agenda política e ideológica alternativa, que se apresenta com e a favor do povo. Veja-se também o eufemismo das "ações demonstrativas", que se assumem simultaneamente como meio de introdução de alguma justiça no sistema, por meio da vingança pelas vítimas do terror do Estado, e como uso do próprio terror para intimidar o Estado.
A concepção de terror que Bonanate opõe ao terrorismo político, e que surge identificada com um governo que pretende ilegitimamente manter-se no poder, parece bastante vaga, uma vez que o "instrumento de emergência" pouco explicita acerca da situação e das estratégias utilizadas, parecendo apenas indicar um último recurso possível por parte de um governo que já não tem o apoio do povo. Mas o que ressalta dessa concepção de terror é que a sua única justificação é a de manter-se no poder, que já não é visto como legítimo. Assim, nessa concepção clássica que opõe o terror do Estado a terrorismo político contra aquele, só este último parece moralmente aceitável, sendo que apenas as estratégias violentas utilizadas pelos grupos terroristas, com o apoio do povo, mesmo que semelhantes (quanto ao modus operandi) às do terror do Estado, encontram-se legitimadas pelos motivos que as orientam. E por isso mesmo, quando consideram-se as práticas terroristas perpetradas pelo Estado, essas nunca aparecem associadas às democracias liberais ocidentais (Stohl apud VASCONCELOS, 2003, p. 12).
Scruton, no seu Dicionário de pensamento político apresenta-nos a definição de terrorismo da UK Prevention of Terrorist Act, de 1976: "o uso da violência para fins políticos [incluindo] qualquer uso da violência com o intuito de gerar medo no público ou numa secção do público" (Scruton, 1996, p. 546). Segundo Scruton, apesar dessa definição combinar duas idéias, a do uso da violência para fins políticos e a do uso da violência para gerar medo na população, é a segunda a mais importante, principalmente se nos referirmos a uma violência indiscriminada e arbitrária. O autor defende que é comum, atualmente, aceitar a idéia de que o terrorismo pode vir do Estado, como no caso da violência perpetrada por Stalin sobre a população russa. Mais importante, Scruton chama a atenção para os problemas na definição e explicação do terrorismo, nomeadamente a definição de violência e o conseqüencialismo. Se o terrorismo refere-se ao uso da violência, falta definir a mesma. A idéia de que o "terrorismo se limita a opor-se à violência, usando a violência e em nome da libertação da violência" implica que o tipo de violência a que o terrorismo opõe-se é uma violência estrutural da qual só podemos ser libertos pelo uso de ações de violência direta e revolucionária. O conseqüencialismo diz respeito à crença de que todos os atos podem, em princípio, ser justificados pelas suas conseqüências e, nesse caso, também o terrorismo o pode ser.
O que essas concepções políticas clássicas parecem salientar é um conceito de terrorismo como violência revolucionária exclusivamente exercida pelos populares – ou por elites apoiadas pelas massas – contra o terror do Estado. Exclui-se assim o terrorismo de Estado, cuja violência ilegítima passa a denominar-se "terror". Se aceita-se a hipótese de que o Estado comete atos "terroristas" (de terror), excluem-se da mesma os governos democráticos ocidentais. No entanto, os Estados têm patrocinado grande número de violências sobre grupos étnicos e políticos, tendo, desde 1945, causado mais mortes e sofrimento do que outros tipos de conflitos – tais como as guerras entre nações ou guerras civis e coloniais – e contribuído para a extinção de culturas, linguagens e modos de vida (NAGENGAST, 1994, p.126).
E mesmo nas democracias ocidentais, a violência ilegítima continua a fazer-se sentir sobre os cidadãos, principalmente porque uns parecem ser menos cidadãos do que outros, constituindo-se, em alternativa, no "outro interno" (MIGNOLO & TLOSTANOVA, 2006, p. 211) ou em formas de "vida nua"3, expostas à morte, às quais não assiste nenhum direito (AGAMBEN, 1997, p. 79-126). Atualmente, é o caso do imigrante ilegal, do refugiado ou do suspeito de atividades terroristas. Boaventura de Sousa Santos propõe, em sua análise do pensamento hegemônico ocidental (o que chama de pensamento abissal4), que essas três figuras representam o "regresso do colonial" ou "[...] a resposta abissal ao que é percebido como intrusão ameaçadora do colonial nas sociedades metropolitanas" (SANTOS, 2007). O colonial é uma metáfora da rebelião daqueles que enxergam as suas experiências como relegadas ao estatuto de sub-humanidade, e esta "intrusão ameaçadora" provoca, como resposta, uma re-demarcação e reafirmação da linha abissal, de modo a garantir a segurança da metrópole. Mas a distinção entre os dois lados torna-se pouco clara e as lógicas de violência/apropriação vão ganhando terreno na metrópole, nomeadamente através do fluxo transnacional do crime organizado e do terrorismo. A lógica da regulação/emancipação, do "lado de cá da linha", vai-se contaminando progressivamente pela lógica de violência/apropriação do "lado de lá", contribuindo para que encontremos, como referem Hardt e Negri, o "Terceiro Mundo" no "Primeiro" e vice-versa (2000, p. XIII). Os autores interpretam esse alastramento das lógicas da violência como um "estado geral e global de guerra", que não mais pode ser conceitualizado por meio da noção de terrorismo (HARDT & NEGRI, 2004, p. 1-5).
A idéia de que assistimos atualmente ao esbater das distinções entre "primeiro mundo" e "terceiro mundo" – e das respectivas lógicas de violência e caos versus democracia que lhes são atribuídas – é também reforçada por Agamben (1995, p. 132), ao sugerir que a política moderna caracteriza-se pelo fato do elemento político da vida (bios) tornar-se indiferenciado do elemento vivente da mesma (zõe), e de que essa indiferenciação moderna entre espaço de vida nua e espaço político implica uma aproximação das democracias com os regimes totalitários. Essas perspectivas contrapõem-se às concepções políticas clássicas, já que põem em causa as dicotomias modernas nas quais essas assentam (tais como "Primeiro Mundo" versus "Terceiro Mundo"; democracia versus violência; metrópole versus colônia; desenvolvidos versus subdesenvolvidos), abrindo assim a possibilidade de conceituarmos o terrorismo na sua complexidade e ambigüidade próprias.
Um discurso crítico sobre o terrorismo pode, desse modo, contribuir para ultrapassar o pensamento dicotômico da modernidade ocidental. Por outro lado, as concepções políticas clássicas levantam questões, ainda hoje (e no quadro do terrorismo global atual), sociologicamente importantes, ao ligarem o conceito de terrorismo à questão dos diversos tipos de violência e da legitimidade da mesma e ao aspecto psicológico do terrorismo como uso da violência para gerar medo na população.
Relativamente à questão da legitimação da violência – e, como refere Nagengast, essa é sempre uma questão central, já que apenas a violência percebida como ilegítima é considerada como tal –, são vários os fins a justificar o uso da tortura, do terrorismo e de outras formas de violência, desde a "necessidade das sociedades se modernizarem rapidamente e a qualquer custo, de coordenar informações com os sistemas de controle social ou de legitimar o poder estatal" (NAGENGAST, 1994, p. 203). Sanín revela que, ao longo da história, três tipos de justificações têm sido apresentadas para a prática de atos terroristas (quer pelo Estado, quer por grupos revolucionários): salvar vidas, derrotar o inimigo e disciplinar a população (SANÍN, 2006, p. 148).
Como Nagengast afirma, esta perspectiva "instrumental" é advogada tanto pelos Estados como pelos movimentos de oposição política, que apresentam, desse modo, as suas ações de violência e de terrorismo como "[...] simultaneamente inevitáveis e necessárias para prevenir o que de outro modo seriam ações fatais e inevitáveis dos seus alvos" (NAGENGAST, 1994, p. 203). O autor considera também que o terrorismo será sempre um instrumento inevitável – pelo menos a curto prazo – de legitimação dos Estados-nação emergentes, no jogo da gestão das diferenças, num mundo progressivamente multicultural. Pensamos, todavia, que nos cabe atualmente o papel de construir o futuro, e o importante é que possamos contribuir para um discurso crítico sobre o terrorismo, que nos abra caminhos para um multiculturalismo progressista não-violento.
O terrorismo político ou revolucionário deve ser analisado também do ponto de vista dos movimentos e de como estes concebem o uso da violência para atingirem os seus fins. Consideremos, então, a perspectiva dos líderes revolucionários ligados ao marxismo e ao comunismo.
II.1. Terrorismo e revolução: a teoria marxista
Se Marx defende o "terror revolucionário" como único meio de "abreviar, simplificar e concentrar a agonia da sociedade burguesa", Lênin recusa o terrorismo, que associa ao anarquismo e identifica com estratégias de elites intelectuais, separadas das massas (BONANATE, 1986). Ao terrorismo, Lênin contrapõe a guerrilha, essa, sim, organizada pelo proletariado e implicando a formação de líderes para a revolução. Vemos, desse modo, que enquanto Marx defende o terrorismo apenas como único recurso para evitar o prolongamento de um sofrimento maior, causado pelo capitalismo, Lênin recusa o terrorismo não pelas suas estratégias, mas pela associação deste a determinados atores sociais – as elites intelectuais. Mas se entendermos o terrorismo como o uso sistemático da violência contra as pessoas ou as coisas, provocando o terror (concepção corrente de terrorismo, segundo Bonanate), temos que poder separar o terrorismo da guerrilha nesse aspecto, o que não é explorado por Lênin. Parece, assim, que não é o uso da violência ou o efeito de provocar terror que preocupa Lênin, mas a participação popular nas estratégias de luta. Sendo associado às elites, o terrorismo adquire um sentido negativo, enquanto que a guerrilha, como forma de resistência e formação do proletariado, adquire um sentido positivo. São os aspectos ideológicos ligados à legitimidade dos perpetradores que marcam claramente essa concepção e recusa do terrorismo.
Ernesto "Che" Guevara, por sua vez, recusa também o terrorismo, considerando que este é "uma arma negativa que não produz em nenhum caso os efeitos desejados, podendo até induzir o povo a uma atitude contrária a um determinado movimento revolucionário, levando a uma perda de vidas entre os seus executores muito superior àquilo que rende como vantagem" (Guevara apud BONANATE, 1986). Essa afirmação de Guevara revela que a recusa do terrorismo é feita por motivos meramente estratégicos do movimento e não por alguma preocupação com a violência e os seus efeitos.
Bonanate distingue dois tipos de terrorismo: o terrorismo revolucionário e o terrorismo contra-revolucionário ou fascista. Enquanto o primeiro utiliza o atentado político, mas recusa o ato terrorista que pode atingir tanto o inimigo como o aliado, o segundo necessita do caráter indiscriminado do ato terrorista para criar uma situação de medo e incerteza generalizada que propicie um golpe de Estado. Para Bonanate, o terrorismo revolucionário está com as massas enquanto que o terrorismo contra-revolucionário está contra as massas. Mais uma vez, tal como em Lênin, encontramos a idéia da legitimação popular do terrorismo como base da sua conceituação, supondo, nesse caso, a idéia de um bom e de um mau terrorismos.
Essa diversidade de perspectivas dos líderes revolucionários marxistas sobre o terrorismo pode ser analisada a partir da oposição entre motivos ideológicos e motivos estratégicos do movimento. Se Marx considerava ideologicamente legítimo o terrorismo, como último recurso para evitar um sofrimento maior, e Lênin aceitava-o desde que este tivesse a participação do povo, i. e., os seus perpetradores estivessem ideologicamente legitimados (a posição, também, de Bonanate, ao distinguir o "bom" do "mau" terrorismos), Guevara parece preocupar-se sobretudo com questões estratégicas do movimento.
Por outro lado, essas perspectivas levantam outras questões como a das diferenças entre o terrorismo e outras formas de violência (como a guerrilha ou a guerra) e a da relação do terrorismo com a mudança social e política. Que pertinência têm essas questões na definição do terrorismo global do século XXI ?
III. O NOVO TERRORISMO TRANSNACIONAL
Num mundo globalizado, o terrorismo adquire novos contornos, desterritorializando-se, desvinculando-se até de qualquer identidade reconhecida e alargando o leque das vítimas potenciais a uma escala global. Nye Jr. refere-se ao terrorismo transnacional como um novo tipo de terrorismo: "O que é novo atualmente é o fato da tecnologia estar a colocar nas mãos de indivíduos e grupos desviantes poderes destrutivos que antes estavam reservados aos Estados" (NYE JR., 2005, p. 229). Nesse sentido, o novo terrorismo é por vezes identificado com a privatização da guerra e da tecnologia da mesma: ele é o terrorismo transnacional que usa a internet como meio de comunicação e gestão das suas redes, assim como arma de combate (cf. DAMPHOUSSE & SMITH, 1998).
Essa perspectiva tende a identificar os perpetradores como indivíduos ou grupos desviantes, deslegitimando-os, enquanto que simultaneamente exclui o terrorismo de Estado, criando a leitura de que a ameaça atual não vem do Estado, mas de grupos não estatais desviantes. À idéia de desvio, vem provavelmente associada uma série de traços como a irracionalidade, a imprevisibilidade, a patologização e a demonização. Essa psicologização do terrorismo tem sido criticada por alguns autores, nomeadamente dentro da própria ciência psicológica. Kruglanski e Fishman (2006), por exemplo, consideram que duas perspectivas diferentes têm orientado os estudos sobre os fatores determinantes do terrorismo: a perspectiva que parte da idéia de que o terrorismo é uma "síndrome", i.e., de que os indivíduos terroristas apresentam quadros psicopatológicos, e a perspectiva de que o terrorismo representa uma "estratégia" racional dos movimentos sociais e políticos. Da revisão que fazem da literatura, estes autores concluem que a perspectiva da síndrome tem obtido pouco suporte empírico (cf. POST, 2005).
Mas se Kruglanski e Fishman contribuem para enfraquecer a hipótese da síndrome terrorista que psicopatologiza o fenômeno, esses autores falham por não salientarem as ausências de determinado tipo de questões nos estudos sobre terrorismo, nomeadamente a de uma perspectiva do terrorismo que não seja centrada exclusivamente no indivíduo (quer nos seus aspectos psicopatológicos, quer nos seus aspectos racionais ou estratégicos) e que analise esse fenômeno no seu contexto geopolítico global.
Na sociologia, Wieviorka critica a perspectiva da síndrome, afirmando em tom irônico: "No limite, os especialistas do anti-terrorismo apresentam por vezes um perfil psicológico mais especial do que os próprios terroristas e é um erro acreditar que existe uma personalidade terrorista, ou algo comparável" (WIEVIORKA, 2006, p. 476). Esse autor identifica também duas tendências da investigação sobre o terrorismo: uma perspectiva que considera os terroristas como atores racionais e uma que os considera como imbuídos de sentido (de subjetividade, de sentido ideológico e emocional). Wieviorka critica a limitação de cada uma dessas perspectivas, ao defender que os terroristas são simultaneamente atores racionais e imbuídos de sentido: "Os terroristas são, então, simultaneamente atores racionais, ou susceptíveis de o serem, e portadores de sentido. Nos dois casos, ou para essas duas dimensões, aqueles que os confrontam devem ser capazes de, por um lado, entrar nos seus cálculos e, por outro lado, entrar na sua subjetividade. Devem fazê-lo separando duas idéias, a que quer fazer do terrorista um ser irracional, e, por outro lado, a que afirma que o terrorista age sem saber porquê: os terroristas são racionais e conferem um sentido à sua ação (ibidem).
Para além da perspectiva que tenta deslegitimar o terrorismo, psicologizando-o e associando-o a grupos e indivíduos desviantes, uma outra orientação da teorização sobre esse fenômeno procura a deslegitimação moral dos terroristas do século XXI, através da associação do terrorismo ao fundamentalismo religioso e ao Islã. Nye Jr. (2005, p. 230) estabelece uma distinção entre o terrorismo dos anos 1970 e 1980 e o terrorismo que emerge a partir dos anos 1990: se o primeiro era motivado por ideologias e nacionalismos, o terrorismo atual surge fundamentalmente associado a grupos religiosos extremistas. As referências à Al-Caida e à política antiterrorista dos Estados Unidos, surgem no texto para pautar uma definição unilinear de terrorismo, como se o mundo se restringisse a uma luta entre o fundamentalismo islâmico e as suas vítimas norte-americanas. Para validar a associação linear do terrorismo com o mal que vem do Islã, o autor afirma que, se no passado os terroristas ainda tinham alguns escrúpulos em matar indiscriminadamente vítimas inocentes, hoje o terrorismo não tem limites morais.
Nye Jr. também chama a atenção para o fato do ataque à sede do FBI, em Oklahoma City, nos Estados Unidos, ter sido perpetrado por norte-americanos, concluindo que "os grupos radicais dispostos a usar o terror podem ser seculares, cultos ou associados a franjas de diversas religiões" (NYE JR., 2005, p. 230). Os cultos e as franjas de diversas religiões surgem, porém, nessa afirmação, como o fator claramente predominante, o que mais uma vez associa o terrorismo a fundamentalismos de ordem religiosa, que são tidos como mais característicos de sociedades islâmicas do que de sociedades ocidentais, e que quando manifestam-se no ocidente, surgem a título excepcional, ligados a grupos desviantes e minoritários.
Essa visão do terrorismo atual como predominantemente motivado por questões de alcance geopolítico global – principalmente ligadas ao fundamentalismo religioso – parece ser bastante consensual entre as ciências sociais e políticas (cf. TURK, 2004), o que contribui para mascarar outros tipos de terrorismo, tal como o terrorismo de Estado e o terrorismo associado a motivos nacionalistas. Essa perspectiva tem, também, como conseqüências, um quadro interpretativo que enxerga nas ações terroristas de organizações racistas e xenófobas uma agregação de indivíduos que partilham uma mesma visão extremista do mundo – um exemplo da aplicação desse quadro é o caso dos responsáveis pelo bombardeamento de Oklahoma City, em 1995. E, por sua vez, essa etiqueta pode levar a que esses grupos reajam ao estigma apoiando as atividades de grupos terroristas, mesmo que não se envolvam diretamente nas mesmas (idem).
Por outro lado, a ligação do terrorismo ao fundamentalismo religioso implica, nas representações do Ocidente, uma ligação do terrorismo ao Islã. Contrapondo-se a essa visão, parece particularmente interessante o estudo realizado por Juergensmeyer (apud TURK, 2004), cuja análise do cristianismo, judaísmo, islamismo, sikhismo e budismo revela que todas essas religiões permitem e até requerem a utilização da violência na defesa da fé. Desse modo, como as concepções políticas clássicas, a definição do terrorismo global leva-nos ao problema da definição e legitimação da violência, mas centrando-se agora na relação desta com a religião, a qual a modernidade ocidental tem relegado para o domínio privado.
Mas o fundamentalismo religioso não é o único determinante do terrorismo global. Venn considera que existem vários tipos de terrorismo (cristão, islâmico, hindu, sionista, estalinista e neoliberal) e analisa as motivações para as afiliações em relação a eles, no mundo globalizado atual. A globalização trouxe uma maior visibilidade para as desigualdades sociais e representou, para as vítimas dessas, a humilhação de assistirem à valorização de um estilo de vida para elas inalcançável. O fundamentalismo religioso traz, para as vítimas do capitalismo neoliberal, a promessa de esperança e de recuperação de um "sentido de segurança ontológica" e dum "sentimento de valor" (VENN, 2005, p. 12). Mas Venn considera que existe uma "simetria ideológica" entre o fundamentalismo religioso e o capitalismo neoliberal e que estes representam duas formas pós-modernas e incipientes de totalitarismo. O totalitarismo do capitalismo neoliberal evidencia-se pela correlação entre a modernidade, o capitalismo e o colonialismo. O autor defende a idéia de que a violência simbólica do "11 de setembro" tem um potencial de emancipação social, já que promove uma crítica do presente contra todas as formas de opressão e hegemonia. Nesse sentido, Venn aproxima-se da posição de Jean Baudrillard sobre o "espírito do terrorismo".
Para Baudrillard, o "11 de setembro", como ficou conhecido o ataque às torres gêmeas, em Nova Iorque, em 11 de setembro de 2001, marca um evento altamente simbólico e disruptivo das relações de poder no mundo globalizado atual. A queda das torres gêmeas significa, segundo esse autor, o ato suicida de uma superpotência hegemônica (os Estados Unidos), já que a violência gerada por essa superpotência virou-se contra ela própria. À medida em que todos sonhamos com esse evento, no seu caráter simbólico de queda da globalização hegemônica, o espírito do terrorismo está presente e vivo em todos nós. E é isso – a presença desse espírito como "obscuro objeto de desejo", que está em toda a parte – que faz com que esse evento seja tão inaceitável para a consciência ocidental. Esse é um espírito universal que supõe uma aversão a qualquer poder absoluto e definitivo e, portanto, é partilhado tanto pelos grupos que mais são explorados e oprimidos por esse poder como por aqueles que dele tiram vantagens. O crescimento do poder hegemônico levaria logicamente a um aumento da vontade de destruí-lo: "Não há então necessidade de um impulso de morte ou de um instinto destrutivo, ou mesmo de efeitos perversos inesperados. De maneira muito lógica – e inexorável – o aumento de poder do poder potencia a vontade de o destruir. E este foi parte da sua própria destruição. Quando as duas torres desabaram, tinha-se a impressão de que estas estavam a responder ao suicídio dos aviões-suicidas com o seu próprio suicídio. Tem sido dito que 'Mesmo Deus não pode declarar guerra a si Próprio'. Bem, na verdade, Ele pode. O Ocidente, na posição de Deus (divina onipotência e legitimidade moral absoluta), tornou-se suicida e declarou guerra a si mesmo" (BAUDRILLARD, 2002, p. 7).
A metáfora religiosa de Baudrillard levanta a questão do terrorismo em termos morais e inverte as posições da "guerra justa" contra o terrorismo, defendida pelos Estados Unidos, mas para radicalizá-la até ao ponto em que Deus suicida-se, em que uma determinada leitura da história, das relações de poder entre Ocidente e Oriente e do terrorismo deixam de fazer sentido: "Isto é terror contra terror – já não há uma ideologia por detrás. Estamos agora muito para além da ideologia e da política. Nenhuma ideologia, nenhuma causa – nem mesmo a causa islâmica – pode explicar a energia que faz avançar o terror. O objetivo já não é nem mesmo o de transformar o mundo, mas (como os hereges fizeram no seu tempo) o de radicalizar o mundo através do sacrifício. Enquanto que o sistema o procura atingir pela força" (idem, p. 9-10).
Baudrillard ilustra, desse modo, como a violência simbólica do "11 de setembro" provoca uma desconstrução das categorias dicotômicas da modernidade ocidental, que nos fazem dividir a humanidade entre Ocidente versus Oriente ou Bem versus Mal. Essa perspectiva liga-se à idéia de que a atual vaga de terrorismo indicaria o fim da hegemonia dos Estados Unidos e o início de um novo sistema mundial (Bergerson e Lizardo apud TURK, 2004). Mas Baudrillard indica também o potencial emancipatório de uma nova subjetividade, representada por esse espírito universal que nos leva a lutar contra toda e qualquer forma de opressão. No entanto, não teremos ainda que descolonizar o nosso pensamento e as nossas categorias antes de estarmos preparados para esse novo espírito?
Num sentido análogo à idéia do "espírito universal", de que nos fala Baudrillard, Hollander sugere que o "11 de setembro" desenvolveu uma nova consciência: a de que não podemos lutar contra o terrorismo sem lutarmos também contra a violência sistêmica que o contextualiza. E essa consciência é o gérmen de uma solidariedade transnacional entre cidadãos de todo o mundo que contestam as fontes econômicas e culturais da opressão do capitalismo neoliberal e que podem representar uma força progressista: "À medida que mais cidadãos neste país desprendem-se do seu sentido de excepcionalismo americano, tornam-se capazes de adotar uma política de solidariedade dedicada à prevenção dos "11 de setembro" por todo o mundo. Esta mudança representaria uma alteração fundamental da consciência e do comportamento, por meio da qual deixaríamos de ser uma população de espectadores que sanciona a cultura de guerra do nosso governo, para passarmos a ser uma força para a mudança social progressista" (HOLLANDER, 2006, p. 166).
Também para Göle, o terrorismo pode ser interpretado com um sinal de um processo de desestabilização das relações hegemônicas entre o Ocidente e o mundo muçulmano. Segundo Göle, o "11 de setembro" ilustra o processo de redução de distâncias e de aproximação das culturas da globalização, o que, por sua vez, pode implicar um agravamento dos conflitos, à medida em que eles são mais fortemente vividos. Esse autor critica a tese do choque de civilizações de Samuel Huntington, defendendo que esta contribui para a promoção da lógica da globalização neoliberal, situando a política norte-americana no centro da história e entendendo-a, simultaneamente, como causa e remédio do conflito.
Outra tese, esta crítica da globalização neoliberal, e que salienta o impacto que essas políticas têm tido no aumento das desigualdades sociais, considera estas desigualdades e injustiças sociais como sendo as causas do terrorismo, entendido assim como uma revolta das vítimas. Mas Göle chama a atenção para a duplicidade dessa visão "ocidentalista": se, por um lado, ela é crítica e assume as responsabilidades do Ocidente relativamente ao fenômeno do terrorismo, por outro, ela implica também uma arrogante atribuição de poder ao Ocidente, encarado "como o único mestre do agir histórico" (GÖLE, 2003, p. 264). No entanto, como o próprio Göle salienta, o "11 de setembro" significou também a tentativa de inverter as posições e transformar os americanos em vítimas. Mas quem são então as vítimas? Como sustenta Baudrillard, há agora apenas "terror contra terror", e as categorias dicotômicas da modernidade são desse modo abaladas.
Segundo Göle, o terrorismo mimetiza os processos da globalização hegemônica. Num mundo globalizado, a noção de "conflito" transforma-se para dar lugar a uma lógica de "confronto" que aumenta a escala dos conflitos e naturaliza-os, dissimulando as relações de poder, dominação e exclusão que lhe são inerentes. O "terrorismo sem rosto", desterritorializado e sem identidade, mimetiza assim a lógica do capitalismo neoliberal. À medida em que a política implica a gestão da diferença, "o terrorismo é sintomático da ausência de espaço político em escala global [...]. Talvez o problema não seja como compreender a diferença, reconhecê-la, contê-la (é o debate sobre o multiculturalismo), mas, sobretudo, como manter as fronteiras da diferença, definir uma subjetividade, construir uma alteridade" (idem, p. 267).
O processo de redução das distâncias e aproximação das culturas inerente à globalização leva-nos a perspectivar a relação entre o Islã e a modernidade ocidental em termos de proximidade e não de distância ou choque de civilizações. É essa proximidade que cria novas tensões e conflitos e também uma tentativa de criar novas diferenças e fronteiras para fazer face a esse "medo da semelhança". Embora o islamismo caracterize-se por uma heterogeneidade de formas consoante às micro-práticas e políticas do cotidiano, heterogeneidade essa que coloca mesmo em causa a própria designação de "islamismo", um novo imaginário coletivo islâmico surge agora e globaliza-se. Esse imaginário coletivo recupera formas lexicais islâmicas esquecidas, simplificando-as e reativando-as num contexto global e numa relação antagonista com a modernidade ocidental, contribuindo assim para criar diferenças e constituindo-se numa referência simbólica global.
Partindo da perspectiva de Göle, pode-se dizer que tentamos resistir a essa proximidade entre culturas que desestabiliza as relações hegemônicas entre o Ocidente e o mundo muçulmano e provoca um abalo nas categorias dicotômicas da modernidade, criando diferenças. Esse novo imaginário coletivo islâmico representa justamente uma tentativa de criar essas diferenças; resta saber se ele irá tornar-se hegemônico no quadro interpretativo das questões do terrorismo.
A idéia de que as atuais concepções ocidentais de terrorismo contribuem para a criação de um novo imaginário do "islamismo", altamente simplificado e essencializado, é também salientada por Amartya Sen, que revela o perigo da aceitação implícita de um único critério de categorização social: nesse caso, a afiliação religiosa: "O reconhecimento da existência de múltiplas identidades e de um mundo para além das afiliações religiosas, mesmo para pessoas muito crentes, pode fazer alguma diferença no mundo perturbado em que vivemos" (SEN, 2006, p. 115). E, como Sen sustenta, o reconhecimento das nossas múltiplas identidades permite também dar voz às iniciativas não religiosas, anti-terroristas e pacifistas da sociedade civil.
IV. DEMOCRACIA, DIREITO E LUTA CONTRA O TERRORISMO
Em relação ao nível jurídico-político, o debate internacional sobre o terrorismo, embora tenha levantado questões importantes, parece, especialmente depois do "11 de setembro", muito pressionado, pelas políticas de combate ao terrorismo, para chegar a um consenso sobre a conceituação desse fenômeno. Se, por um lado, as pressões do contra-terrorismo levam a uma ampliação da concepção de terrorismo (para incluir nas ofensas criminais, por exemplo, a ameaça de terrorismo e o financiamento do mesmo), por outro, o debate tende a centrar-se agora no acordo sobre definições operacionais (de "atos terroristas", e não de "terrorismo") necessárias para a harmonização das políticas entre os Estados. O dissenso ainda subsiste, mas fica um pouco limitado pela ênfase na necessidade de uma conjugação de políticas e esforços no combate ao terrorismo. Mas será que essa conjugação está sendo feita de modo crítico ou, pelo contrário, a pressão de superpotências como os Estados Unidos leva à imposição de um determinado quadro interpretativo sobre o terrorismo? Segundo a lei norte-americana, o terrorismo é "a violência premeditada e politicamente motivada contra alvos civis por parte de grupos subnacionais" (NYE JR., 2005, p. 230). Se os Estados matarem deliberadamente civis com o fim de aterrorizar a população, não é terrorismo o que fazem, mas crime de guerra. Assim, o fenômeno do terrorismo é legislado a partir de uma perspectiva que nega o terrorismo de Estado.
Efetivamente, o estudo do terrorismo de Estado e dos "esquadrões de morte" tem estado associado a contextos da América Latina, Irlanda do Norte ou Índia. Mas a existência de esquadrões de morte em regimes políticos democráticos como a Irlanda do Norte leva-nos a repensar a relação entre democracia, Direito e terrorismo, nomeadamente no que diz respeito ao terrorismo interno e ao terrorismo de Estado. Como indica Rolston, relativamente aos esquadrões de morte na Irlanda do Norte, e também na Espanha e na Índia, para além de coexistirem com a democracia, as atividades terroristas podem mesmo ser encorajadas pela própria natureza do sistema democrático: "Claramente, tal como na Índia e em Espanha, os esquadrões de morte coexistem com a democracia. De fato [...] o paradoxo é o de que o sistema democrático e o primado do direito ajudaram a encorajar ações clandestinas e extrajudiciais" (ROLSTON, 2005, p. 19). Mas esse paradoxo não tem sido aprofundado pela investigação, sobretudo porque, como Rolston salienta, na seqüência do "11 de setembro", o terrorismo tem sido definido exclusivamente como atividade contra o Estado.
A aceitação acrítica de um determinado quadro interpretativo do terrorismo leva também a que o combate a ele esteja colocando em causa as liberdades fundamentais e os direitos humanos dos cidadãos. Para prevenir essa situação, na sessão 59 da Comissão da Organização das Nações Unidas para os Direitos Humanos, que ocorreu de 17 de março a 25 de abril de 2003, foi adotada uma resolução sobre a "Proteção dos direitos humanos e liberdades fundamentais no processo de contraterrorismo". Essa resolução afirma que "[...] os Estados devem garantir que qualquer medida tomada para combater o terrorismo está de acordo com as suas obrigações segundo a lei internacional, particularmente no que respeita aos direitos humanos internacionais, aos refugiados e à lei humanitária". Para além disso, a mesma resolução, "[…] encoraja os Estados, nas suas ações contra o terrorismo, a terem em conta as resoluções e decisões relevantes da Organização das Nações Unidas sobre os direitos humanos e o combate ao terrorismo, e a considerarem as recomendações e os procedimentos especiais e mecanismos da Comissão sobre Direitos Humanos, assim como os comentários e perspectivas relevantes dos tratados sobre direitos humanos da Organização das Nações Unidas" (UN, 2003).
Mas que impacto terá de fato essa resolução quando a Organização das Nações Unidas não ousa aplicar sanções às superpotências que não as respeitam? Turk, citando Marx e Staples, afirma a esse respeito: "É muito improvável que os cidadãos das sociedades democráticas recuperem as liberdades de que antigamente usufruíam, relativamente à vigilância governamental" (TURK, 2004, p. 282). Após o "11 de setembro", os Estados Unidos implementaram um "estado de exceção" que restringiu direitos fundamentais dos cidadãos em nome da segurança nacional. Segundo Venn (2005), esse "estado de exceção" permitiu reafirmar a soberania desse Estado face aos outros Estados, sendo que "exceção" significa, nesse contexto, simultaneamente a idéia de que se vivem tempos excepcionais que justificam essa suspensão da lei e de que os Estados Unidos representam também um Estado excepcional – sua hegemonia foi desse modo reafirmada e de pouco valeram as resoluções programáticas e tardias da Organização das Nações Unidas (ONU).
Mais recentemente, em 14 de outubro de 2006, o Presidente George W. Bush promulgou uma nova lei antiterrorista, o Military Commissions Acts, que autoriza o recurso a "métodos agressivos" nos interrogatórios a suspeitos de terrorismo e permite o seu julgamento por tribunais militares. Martin Scheinin, especialista jurídico finlandês e perito da Organização das Nações Unidas sobre proteção dos direitos humanos no combate ao terrorismo, considera que esta lei viola vários tratados internacionais e "contém um conjunto de provisões que são incompatíveis com as obrigações internacionais dos Estados Unidos ao abrigo da lei dos direitos humanos e da lei humanitária" (SHEININ, 2006). Ainda segundo Scheinin, "um dos aspectos mais sérios desta legislação é o poder do Presidente dos Estados Unidos para declarar qualquer pessoa, incluindo cidadãos americanos, sem acusação, 'inimigo combatente ilegal' – um termo desconhecido na lei humanitária internacional" (idem). Agora que Bush perdeu as eleições no Senado, a política de combate ao terrorismo será diferente? E qual o papel da ONU nesse processo?
Se, por um lado, as superpotências conseguem impor as suas políticas de combate ao terrorismo (que supõem uma determinada leitura do mesmo), o dissenso entre os Estados persiste em relação à definição desse fenômeno. É disso prova a dificuldade da Assembléia Geral da ONU em chegar a um acordo sobre uma definição de terrorismo. Os governos árabes liderados pelo Egito e a Síria vetam qualquer documento que não isente a resistência palestina de ser considerada terrorista. A resistência palestina à ocupação israelense do West Bank é considerada por esses governos como uma resistência nacional legítima. De novo, a questão da identificação com a causa política leva à legitimação da violência exercida. E o rótulo de "terrorismo" surge exclusivamente associado a uma violência ilegítima.
No entanto, em 8 de setembro de 2006, a ONU adotou a chamada "United Nations Global Counter-Terrorism Strategy", sendo essa a primeira vez que todos os Estados-membros chegaram a um consenso sobre uma estratégia comum para combater o terrorismo. Essa estratégia – na forma de uma resolução e de um plano de ação anexo – envia claramente a mensagem de que o terrorismo é inaceitável, quaisquer que sejam as suas formas, e que deve ser combatido por meio de um esforço global de articulação das ações nacionais, regionais e internacionais. Essa estratégia inclui um vasto leque de medidas que englobam tanto o aumento do poder estatal nas medidas de contraterrorismo como uma melhor coordenação das atividades pela ONU.
Da resolução, saliento alguns pontos relevantes para a questão da conceituação do terrorismo, nomeadamente uma definição dos "atos, métodos e práticas de terrorismo", e a reafirmação de que este não pode nem deve ser associado com nenhuma religião, nacionalidade ou grupo étnico: "Reafirmar que os atos, métodos e práticas de terrorismo, em todas as suas formas e manifestações, têm por objetivo a destruição dos direitos humanos, das fundamentais liberdades e da democracia, ameaçando a integridade territorial, a segurança dos Estados e desestabilizando governos legitimamente constituídos, e que a comunidade internacional deve tomar as medidas necessárias para promover a cooperação de modo a prevenir e combater o terrorismo. Reafirmar também que o terrorismo não pode e não deve ser associado a nenhuma religião, nacionalidade, civilização ou grupo étnico" (UN, 2006).
Se, por um lado, é de grande importância, no contexto geopolítico global atual, a reafirmação, por parte da Organização das Nações Unidas, de que as atividades terroristas definem-se, primeiramente (o termo é meu, mas essa é uma leitura provável, pelo fato desses factores aparecerem em primeiro lugar na afirmação), por destruirem os direitos humanos e as liberdades fundamentais da democracia, por outro, a ênfase subsequente dada à integridade territorial, à segurança dos Estados e aos governos legitimamente estabelecidos parece orientar para uma concepção que esquece a existência de um terrorismo de Estado exercido sobre os próprios cidadãos. Nesse sentido, também à reafirmação de que o terrorismo não pode ser associado a nenhuma religião, nacionalidade, civilização ou grupo étnico, poder-se-ia e dever-se-ia acrescentar o termo Estado. Estar-se-ia, desse modo, contribuindo para a tomada de consciência de que os Estados democráticos ocidentais também cometem atos terroristas.
A referência a "atos, métodos e práticas de terrorisno", em vez da utilização da categoria "terrorismo", embora importante para combater a essencialização e o estigma associados ao pendor negativo do rótulo e conseguir assim chegar a um consenso, não resolve a questão da definição legal do mesmo, como a reafirmação abaixo apresentada indica: "Reafirmar adicionalmente a determinação dos Estados-membros em fazerem todos os esforços possíveis para chegarem a um acordo e concluirem uma convenção polivalente sobre terrorismo internacional, nomeadamente através da resolução de questões cruciais relacionadas com a definição legal e o alcance dos atos abrangidos pela convenção, de modo a que esta possa servir como instrumento eficaz do combate ao terrorismo" (idem).
Efetivamente, tanto na União Européia como internacionalmente, não há consenso sobre a definição jurídica de terrorismo, nem sobre se ele deve ser considerado um crime contra a humanidade, embora o possa ser, em algumas circunstâncias (cf. SCHABAS & OLIVIER, 2003). No entanto, a idéia de que o terrorismo importa à comunidade internacional está presente no Ato Final da Conferência de Roma (cf. UN, 1998). Por outro lado, a questão de entender o terrorismo como um crime internacional não tem uma resposta fácil e o crime de terrorismo não está incluído na jurisdição do Tribunal Criminal Internacional. Esse dissenso pode transparecer um sinal positivo de resistência à imposição, por parte das superpotências, de uma visão unilinear do terrorismo. Importante seria que o debate jurídico tornasse-se público e dialogasse com as outras áreas disciplinares e com as próprias vítimas do terrorismo. Se ele importa à comunidade internacional, pode a Organização das Nações Unidas representar essa comunidade sem um debate público internacional?
IV.1. O terrorismo como uma construção social
Uma das mais importantes contribuições da sociologia para o estudo do terrorismo foi a de entender o mesmo como uma construção social, ou seja, não como um dado objetivo, mas como uma interpretação de determinados eventos e das suas causas, interpretação que é sempre socialmente situada e politicamente motivada: "Quando pessoas e eventos passam a ser regularmente descritos em público como terroristas e terrorismo, alguma entidade governamental ou de outro tipo está a vencer uma guerra de palavras em que o oponente promove designações alternativas tais como 'mártir' e 'luta pela libertação'" (TURK, 2004, p. 272).
O terrorismo é, assim, um fenômeno socialmente negociado, numa disputa de palavras, entre as entidades envolvidas. Nessa disputa, algumas entidades têm mais poder do que outras e por isso mais oportunidades de fazerem valer a designação dos seus oponentes como terroristas. Essas designações não são apenas motivadas por ameaças objetivas, mas também por implicações políticas, econômicas e militares. Num mundo globalizado, as superpotências lideram as representações do terrorismo e as decisões (por exemplo, jurídicas) sobre quem são os terroristas que devemos combater. Nos discursos oficiais é mais fácil encontrarmos a associação do terrorismo a organizações estrangeiras como a Al-Caida, do que a grupos nacionais cuja violência das ações podê-lo-ia justificar (TURK, 2004). Mais difícil ainda é, como vimos, encontrarmos referências ao terrorismo perpetrado por superpotências, como os Estados Unidos.
A centralidade dos discursos políticos hegemônicos sobre o terrorismo na incomensurabilidade das identidades religiosas contribui para a bipolarização muçulmano-cristão e Oriente-Ocidente, mas também para a invisibilização de outras representações do terrorismo, nomeadamente de iniciativas da sociedade civil, como é o caso das milhares de pessoas que, em todo o mundo, saíram para as ruas a fim de protestar contra a guerra no Afeganistão e no Iraque. Também no campo da arte e da cultura popular prevalecem representações alternativas do terrorismo e críticas à política oficial dos Estados Unidos. Num estudo em que analisa o modo como os temas do terrorismo e do contra-terrorismo são tratados na cultura popular televisiva e cinematográfica anterior e posterior ao "11 de setembro", Erickson revela como cada uma das séries ou filmes analisados, em vez de representar uma validação do discurso simplista e hipernacionalista do contra-terrorismo, expressa, pelo contrário, uma complexa dialética entre "subversão" e "legitimação do aparato securitário", salientando, por exemplo, o perigo aos direitos humanos que representam ambos os lados – o terrorismo e a luta contra ele: "No final, apesar dos efeitos catastróficos do 11 de setembro, alguns segmentos da cultura dos EUA não estão aprisionados, mas refletem as sombrias complexidades e ambigüidades de ambos os contextos da segurança doméstica e internacional, e a promessa do perigo da ciência e da tecnologia, que definem este início do século XXI" (ERICKSON, 2007, p. 210). Os resultados desse estudo apontam, desse modo, para a cultura popular como importante lócus de análise crítica do fenômeno do terrorismo do século XXI, na sua complexidade e ambigüidade.
No campo científico, muitas investigações sociais seguem a orientação das representações hegemônicas do terrorismo. Um exemplo desse tipo de investigação é o artigo publicado, em 2003, na Annual Review of Political Science, intitulado "Terrorist Decision Making" e escrito por Gordon Mccornimick, do Departamento de Análise de Defesa da Naval Postgraduate School, em Monterey, Califórnia. Efetivamente, as questões a que o investigador pretende responder, "como os terroristas e os grupos terroristas tomam decisões?" e "qual a influência dos estilos decisionais dos terroristas no curso de uma campanha terrorista?", denotam a importância desse estudo para uma definição das estratégias de defesa e combate ao terrorismo. Por outro lado, esses tipos de questões tendem a despolitizar o fenômeno, retirando-o do seu contexto geopolítico e reduzindo-o a uma questão de cognição individual ou social. Os quadros teóricos dos quais o autor parte evidenciam claramente essa posição, uma vez que englobam três tipos de teorias sobre a violência: estratégicas, organizacionais e psicológicas, sendo os aspectos políticos e sociais globais excluídos da conceituação (cf. MCCORNICK, 2003).
Ao assumirmos que o terrorismo é uma construção social, estamos salientando ao investigador um série de dilemas respeitantes à seleção do seu lugar teórico e ideológico de enunciação. Sluka mostra bem esse dilema do antropólogo: "O terrorismo de Estado e os esquadrões de morte […] podem ser vistos como aberrações (que emergem de regimes fascistas, totalitários e autoritários), como extremismo estatal temporário em resposta à oposição armada à autoridade do Estado ou como formas rotineiras de controle social que tomam um rumo inesperado. A decisão inicial entre esses enquadramentos analíticos canaliza as linhas subseqüentes de questionamento e explicação" (SLUKA, 2000, p. 226).
Esse dilema é maior quando os antropólogos passam a interessar-se não apenas pelas vítimas, mas também pelo estudo dos perpetradores de violência, correndo o risco da "sedução etnográfica" pelos mesmos (Robben apud GUSTERSON, 2007, p.162). Gusterson mostra como a etnografia posterior à Guerra Fria – e, sobretudo, ao "11 de setembro" – tem expressado esse dilema, uma vez que estimula, por um lado, o desenvolvimento de uma etnografia crítica do militarismo americano, e, por outro, uma etnografia a serviço dos interesses securitários nacionais. Olhando pelo lado positivo, ou seja, para essa etnografia crítica que emerge após a Guerra Fria e desenvolve-se depois do "11 de setembro" – com os seus estudos sobre militarização, guerra e violência – é preciso, todavia, reconhecer, como salienta Gusterson (ibidem), que, apesar de representarem uma importante ruptura epistemológica, esses estudos têm ainda que produzir quadros teóricos alternativos aos existentes. E esses novos quadros teóricos devem permitir a análise do militarismo na sua relação com o nacionalismo, com o capitalismo da modernidade tardia, com as culturas mediáticas e o Estado, nas suas múltiplas especificidades geográficas e sociais.
O dilema de qualquer investigador que estude o terrorismo é, portanto, um dilema político. No sentido de sugerir alternativas para a resolução desse dilema, Gurr defende que os estudos sobre terrorismo devem tratar os indivíduos e grupos terroristas como variáveis independentes e não como variáveis dependentes, de modo a centrarem-se sobre as causas do terrorismo e não sobre os traços e características dos terroristas (Gurr apud TURK, 2004). Tenta-se, desse modo, evitar a psicologização e patologização do fenômeno. Mas Gurr chama a atenção, ainda, para a necessidade de bases de dados relevantes e de que os investigadores protejam-se de qualquer envolvimento direto em operações diplomáticas e políticas relacionadas com o terrorismo, perspectiva esta que parece validar a tese positivista da separação entre fatos e valores e de neutralidade do investigador.
Mais importante é a análise de como a "tentativa de controle" é um ponto de partida essencial para teorizarmos acerca do fenômeno do terrorismo e analisarmos os terroristas como objetos e sujeitos dessa tentativa de controle (cf. GIBBS, 1989; BLACK, 2002). Nesse sentido – e debruçando-nos agora sobre os terroristas, pensados como objetos de controle –, a construção social de um "pânico moral" (COHEN, 1972, p. 9), associado ao terrorismo, constituiu uma forma de legitimar uma "sobre-regulação social", já que as representações exageradas e distorcidas dos terroristas e do terrorismo veiculadas pelos discursos políticos e midiáticos, contribuíram efetivamente para a criação de níveis de medo e de pânico na consciência pública, que legitimaram mudanças legislativas com conseqüências sociais graves.
Após o "11 de setembro", essa construção social de pânico moral associado ao terrorismo, ou "terrologia", não serviu apenas para legitimar fortes medidas de controle social, mas contribuiu também para concretizar e mascarar os objetivos imperialistas do governo dos Estados Unidos: "As respostas da administração não serviram apenas para fazer com que os responsáveis pelos ataques terroristas respondessem perante a justiça. Serviram também para expandir o poder e o imperialismo global dos Estados Unidos, em nome da justiça. Todavia, a retórica derramada sobre o povo americano contribuiu para mascarar essa realidade" (ROTHE & MUZZATTI, 2004, p. 347).
Como os autores sugerem, é urgente que essa perspectiva unilinear e dicotômica do terrorismo, geradora de pânico moral, seja substituída por uma análise cultural, histórica e geopoliticamente situada do mesmo, que o apresente como um fenômeno complexo e multifacetado e que permita o desenvolvimento de uma consciência crítica também a respeito das reações dos agentes de controle social. Por outro lado, para entendermos o terrorismo é necessário questionarmo-nos acerca do que é que os terroristas tentam controlar (GIBBS, 1989), contrariando a perspectiva de que se trata de ações irracionais sem sentido.
Em suma, perspectivar o "terrorismo" como uma construção social significa desenvolver análises situadas desse fenômeno, assumindo o nosso próprio posicionamento político como investigadores; significa continuar a colocar as questões introduzidas pelas concepções políticas clássicas, relacionando-as agora com os novos contextos geopolíticos do século XXI, e a também produzir questões como as sugeridas por Gibbs (1989), que partem da análise do terrorismo como uma "tentativa de controle"; significa a possibilidade de desenvolvermos um discurso crítico que resista a uma perspectiva unilinear do terrorismo e abra-nos caminhos emancipatórios, alternativos ao mesmo. Como afirma Waldron, "a procura de uma definição canônica de 'terrorismo' é provavelmente uma perda de tempo. Mas colocar questões que parecem questões de definição é por vezes uma maneira frutífera de centrarmos a nossa reflexão sobre o terrorismo e de organizarmos a nossa resposta" (WALDRON, 2004, p. 5).
V. CONCLUSÕES
Partindo da premissa de que o terrorismo é um fenômeno político e socialmente construído, este artigo procura entender as lógicas de regulação e emancipação social que orientam as conceituações do terrorismo nas diferentes áreas disciplinares. Dessa análise, surgiram várias questões, sendo que três delas parecem essenciais para uma ciência social crítica que vise criar e potencializar alternativas de emancipação social.
Uma primeira dessas questões diz respeito à impossibilidade da neutralidade científica e de uma definição consensual do terrorismo. Apresentei a perspectiva de alguns autores que tentam negar ou mascarar as suas premissas de valor procurando uma definição neutra e universal do terrorismo ou até recusando-se a apresentar uma concepção do mesmo, dada a impossibilidade de encontrar uma definição universal. Outros tentam deslegitimar o terrorismo, despolitizando-o, retirando-o do seu contexto geopolítico e reduzindo-o a uma questão de cognição ou a uma patologia individual ou social. Essas posições negam o caráter político e socialmente construído do terrorismo, o que uma análise histórica e contextual do mesmo evidencia. Efetivamente, se o terrorismo político ou revolucionário era representado, nas concepções políticas clássicas, como de algum modo legitimado por constituir uma revolta das vítimas do terror do Estado, atualmente, o rótulo de terrorismo é recusado mesmo pelos autores de atos terroristas, porque associado a uma violência ilegítima. O cientista social que estuda o fenômeno do terrorismo e, principalmente, do terrorismo deste século, deve preparar-se para fazer face ao dilema político que a sua investigação implica. Tal supõe simultaneamente a explicitação do seu lugar de enunciação teórico e ideológico e uma atitude constante de questionamento crítico, que é também um questionamento sobre o papel político do investigador.
Uma segunda questão é a da análise do terrorismo a partir das vozes das suas vítimas. Mas quem são as vítimas do terrorismo transnacional do século XXI? A resposta a essa questão não é simples e merece uma análise histórica e geopolítica global que tenha em consideração, mas não se restrinja, às relações hegemônicas entre Oriente e Ocidente – a que Santos (1999) denomina "eixo da exclusão" – mas inclua também o cruzamento com o que Santos chama de "eixo da desigualdade", o das relações Norte-Sul. Efetivamente, a centralidade da criação de diferenças ideológicas globais entre Ocidente e Oriente (patente, por exemplo, na teoria do choque de civilizações) mascara e contribui mesmo para aumentar o eixo da desigualdade, quer em uma escala global (fortalecendo a hegemonia das superpotências relativamente aos outros Estados), quer em uma escala nacional e local (à medida em que os direitos democráticos fundamentais são suspensos, o que acontece mais gravemente quando tratam-se de cidadãos com origem islâmica ou suspeitos de serem terroristas). Simultaneamente, em nome da segurança e da soberania nacional, cresce o poder atribuído internamente às forças armadas, assim como a legitimidade da violência das mesmas (cf. SANTOS, 1999).
Mas, embora o terrorismo tenha-se alargado a uma escala global, e promova-se o discurso de que todos somos potenciais vítimas da "irracionalidade terrorista", determinados países continuam a ter mais probabilidades de sofrer atentados terroristas do que outros, e tal é determinado pela geopolítica global que se vai construindo. E se o terrorismo transnacional é um "terrorismo sem rosto", desterritorializado, permanecem ainda outras formas de terrorismo, como o terrorismo de Estado e o terrorismo interno. Importante é contribuirmos para que o enquadramento dessas questões não se faça em nome das vítimas, usando-as sem nunca as ouvir. Importante também é que o Ocidente não se vergue a uma leitura monolítica do terrorismo que reafirme o poder hegemônico e o caráter narcisista das superpotências que se auguram de uma posição central na geopolítica global e no próprio agir histórico. E que o mundo muçulmano veja para além de um "imaginário coletivo islâmico" que, pelo "medo da semelhança", tende a construir exclusões que legitimam uma categorização dicotômica em termos de "bem" versus "mal", "justo" versus "injusto".
O "11 de setembro" simbolizou uma tentativa de inversão das posições perpetrador-vítima entre o Ocidente e o Oriente que pode inclusive ter abalado a dicotomia perpetrador-vítima. Alguns autores consideram que a violência simbólica desse evento teve um potencial emancipatório, no sentido de iniciar uma crítica do presente, da geopolítica global atual e de todo e qualquer poder hegemônico. Outros são mais pessimistas e antecipam uma escalada de violência até ao uso das armas de destruição massiva. O inculcar do medo do uso de armas de destruição massiva na população (por si mesmo, um ato de terrorismo psicológico), tem servido para legitimar atos de violência hegemônica extremos que, todavia, não são denominados de terrorismo. Essa perspectiva unilinear do terrorismo é geradora de pânico moral e de medidas de sobre-regulação social que contribuem para legitimar e, simultaneamente, mascarar a expansão do imperialismo americano. No entanto, pensamos que existem, atualmente, alguns sinais positivos de crítica a essa perspectiva. Esses sinais são expressos nas manifestações de milhares de pessoas contra a guerra no Iraque, nas representações do terrorismo como fenômeno complexo e multifacetado nas diversas formas de cultura popular, e nas análises críticas dos cientistas sociais, cujo questionamento resiste à imposição de uma perspectiva redutora, unidimensional e perigosa, que tenta colocar a ciência ao serviço de interesses geopolíticos.
Uma terceira questão concerne à relação entre terrorismo, Direito e democracia. Como sustenta Turk: "Os esforços para compreender o terrorismo têm sido geralmente contingentes ou secundários aos esforços para controlá-lo" (TURK, 2004). No Direito, essa tendência representa uma ausência de questionamento crítico no debate sobre o terrorismo, que se submete à urgência das medidas de contra-terrorismo e a uma visão monolítica deste imposta pelas superpotências. Por outro lado, um fechamento desse debate ao escrutínio público e às vítimas impossibilita qualquer potencial emancipatório do mesmo. As novas zonas de exclusão no Norte, ou formas de "fascismo social" associadas à luta contra o terrorismo, põem em causa, como já foi referido, aquilo de que as democracias ocidentais mais orgulham-se – os direitos humanos dos cidadãos –, esbatendo a distinção entre o "Norte" e o "Sul" e evidenciando, como diz Santos, "[...] a contraposição entre o Sul do Sul e o Norte do Sul e entre o Sul do Norte e o Norte do Norte" (SANTOS, 2004).
Para Santos, trata-se de uma questão fundamental à perspectiva pós-colonial, já que esta "não se destina apenas a permitir a autodestruição do Sul, ou seja, a sua autodestruição enquanto Sul imperial, mas também a permitir identificar em que medida o colonialismo está presente como relação social nas sociedades colonizadoras do Norte, ainda que ideologicamente ocultado pela descrição que estas fazem de si próprias" (idem). O que está aqui em questão é o modo como o Direito está a serviço da regulação social, a ponto de pôr em causa os mais fundamentais princípios democráticos. Mas, mais uma vez, é possível que tais violências promovam uma crítica da democracia por parte dos cidadãos e que essa crítica assuma formas emancipatórias.
A questão da relação entre a democracia, o Direito e o terrorismo prende-se, ainda, com a análise do papel do Direito, nas democracias liberais ocidentais, no "encorajamento" de atividades clandestinas extrajudiciais e, inclusive, terroristas, o que nos leva a perguntarmo-nos sobre "como pode o Direito tornar-se emancipatório" (cf. SANTOS, 2003) nessas sociedades em que várias legalidades jurídicas coexistem. A resposta a essa questão tem de passar por uma análise de como o Direito (e as forças judiciais) pode subverter a lógica do capitalismo neoliberal e posicionar-se face aos vários setores da sociedade, nomeadamente face à nova classe capitalista transnacional. Wieviorka (2005) descreve um novo paradigma para pensar a violência, o qual supõe pensá-la não apenas do ponto de vista do Estado-nação e do seu "monopólio da violência legítima", mas a partir da subjetividade dos perpetradores e das vítimas, num mundo globalizado. Segundo esse autor, o Estado deve redefinir o seu monopólio da violência física legítima, de modo a que a use para proteger os cidadãos contra a burocracia e os abusos de poder, nomeadamente do próprio Estado, e promover os direitos humanos. À medida em que centra-se na subjetividade das vítimas, e desde que inclua as mesmas e a comunidade internacional no debate público, essa perspectiva pode contribuir para uma discussão multicultural da violência, do terrorismo e dos direitos humanos, assim como do papel do Direito e do Estado na construção de um multiculturalismo progressista.
Eunice Castro Seixas (euniceseixas@gmail.com) é Mestre em Psicologia Social pela Universidade do Porto e Doutoranda em Ciências Sociais pelo Centro de Estudos Sociais (CES) da Universidade de Coimbra.
1 Este, como outros trechos de obras citados ao longo do artigo, foram traduzidos pela autora.
2 Curiosamente, ao referir-se às causas do terrorismo e à falta de associação entre a gravidade da opressão sofrida e a reação terrorista, Laqueur afirma o caráter socialmente construído daquele, ao considerar que "[…] o terrorismo é, em grande parte, uma questão de percepção, de tradições históricas, sociais e culturais, e de cálculo político" (Laqueur, 1999, p. 36). Por conta de sua concepção positivista de uma ciência objetiva e neutra, no entanto, apresenta uma definição por ele considerada pouco específica, de modo a tentar abarcar, sem qualquer espírito crítico, a multiplicidade de formas e definições do terrorismo.
3 Em Homo sacer (1997), Agamben conta a história da "vida nua" e reflete sobre a importante função da mesma na política moderna. A vida nua é aquela que só é incluída na ordem jurídica na forma da sua exclusão. No Direito romano antigo, a vida nua corresponde à vida do homo sacer (homem sagrado), que podia ser morto impunemente, mas não sacrificado. Agamben argumenta que a dicotomia essencial da política ocidental moderna não é, como Carl Schmitt pretendia, a oposição amigo-inimigo, mas, sim, a oposição entre vida nua e existência política. A relação política originária é o ato de banir, criando um estado de exceção que é uma zona de indiferenciação entre inclusão e exclusão, e o ato fundamental do poder soberano é a produção da vida nua.
4 O pensamento abissal corresponde ao pensamento hegemônico ocidental, que divide a realidade social em duas esferas: a do "lado de cá" e a do "lado de lá" da linha, sendo que o "lado de lá" é produzido como não existente, no sentido de não relevante ou incompreensível, uma "sub-humanidade moderna", a qual permite a afirmação de uma humanidade que se apresenta como universal, do "lado de cá" da linha. Do "lado de lá" ou, se quisermos, nos territórios coloniais, aplica-se a lógica da apropriação/violência, enquanto do "lado de cá" aplica-se a lógica da regulação/emancipação. No entanto, segundo Santos, a lógica da violência/apropriação tem-se expandido de modo a contaminar a lógica da regulação/emancipação – o "regresso do colonial" corresponde a uma dessas formas de contaminação.
Revista de Sociologia e Política - Rev. Sociol. Polit. v.16 supl.0 Curitiba ago. 2008 - Scielo Brasil
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