Mafiosos judeus em Nova York: assassinos S.A.
Como criminosos judeus montaram a mais eficiente máquina de matar da máfia de Nova York, nos anos 30
por Sérgio Gwercman
Em caso de necessidade, a ligação era feita para uma doceira na esquina das ruas Saratoga e Livonia, no Brooklin. Rose Gold, a simpática dona da loja que tinha um dos poucos telefones das redondezas, atendia o chamado e encaminhava o recado: Abe Reles e seus comparsas tinham serviço. Era ali que funcionava o “escritório” da Murders Inc. Foram tantos telefonemas que, em meados da década de 30, a “companhia” já era a mais eficiente tropa de assassinatos por encomenda na história da máfia nos Estados Unidos. Para fazer parte do grupo exigia-se pouco do candidato: ele apenas precisava ser durão e, de preferência, judeu.
Em Tough Jews (“Judeus Durões”, sem versão em português) o jornalista Rich Cohen utiliza a Murders Inc. como ponto de partida para narrar o envolvimento de judeus com o crime organizado na América durante a Depressão. Neto do dono de um dos restaurantes preferidos pelo bando, Cohen mostra o papel que os matadores de aluguel tiveram na profissionalização do submundo. A máfia havia conseguido montar uma estrutura bem organizada, com inspirações empresariais e decisões tomadas em grupo. Sentenças de morte, por exemplo, dependiam da votação dos chefes. Era aí que entrava a Murders Inc.
O comando da tropa estava a cargo de Louis Buchalter, o “Lepke” – o apelido é um diminutivo de Lepkeleh, algo como “Luizinho” em ídiche, a língua falada pelos judeus da Europa. Quando saía uma ordem de execução, era ele quem acionava o esquema que terminava com o telefonema para a lojinha da dona Rose. Filho de judeus imigrantes da Rússia, Lepke conquistou poder e dinheiro controlando sindicatos e extorquindo comerciantes e industriais. Para desconhecidos, gostava de se apresentar como alguém do ramo de padarias –enquanto alguns forneciam farinha, panelas e fornos, ele e seu parceiro Jacob “Gurrah” Shapiro cuidavam da segurança. O negócio valia mais de 1 milhão de dólares ao ano para a dupla, uma fortuna nos valores da época. Calcula-se que durante a Depressão norte-americana cerca de 10% de tudo que era consumido em Nova York ia parar nos bolsos dos gângsteres, numa espécie de imposto da máfia.
Lepke trabalhava em sintonia com outros líderes do crime, quase todos também judeus. Arthur “Dutch Schultz” Flegenheimer dominava o Harlem, onde controlava uma loteria ilegal – a versão norte-americana do “bicheiro”. Com ele não havia modernidade administrativa. Schultz sabia que sua principal força estava no uso da violência. Outros chefes eram “Bugsy” Siegel, que em 1946 abriria o primeiro cassino de Las Vegas, e Meyer Lansky, considerado o maior “cérebro” da história da máfia. Sua especialidade era descobrir novas possibilidades para o submundo ganhar dinheiro. Lansky também era amigo do siciliano Charles “Lucky” Luciano e foi um dos principais responsáveis pela união dos criminosos judeus e italianos na década de 30 – uma relação que existia desde o início do século, quando se juntavam para resistir aos gângsteres irlandeses, então grande força criminosa da cidade.
Em comum, todos tinham a mesma origem. O mentor intelectual do grupo atendia pelo nome Arnold Rothstein e pode ser considerado o inventor do mafioso moderno. Filho de uma família rica, Rothstein se apaixonou por uma cristã e, num episódio tipicamente judaico, acabou deserdado pelo pai. Com boas conexões (e por boas conexões entenda políticos e policiais), ele rapidamente conseguiu montar cassinos que recebiam alguns dos nomes mais importantes de Nova York. Quando a Lei Seca foi aprovada, foi o primeiro a ver ali uma oportunidade multimilionária de negócios. Rothstein investiu na montagem de um esquema sofisticado. A bebida vinha da Inglaterra em navios que ancoravam em águas internacionais.
Lá eram encontrados por lanchas, que desembarcavam o carregamento em praias desertas onde caminhões esperavam para transportar o contrabando para depósitos em Manhattan. Como os policiais estavam todos subornados, o único risco para o negócio eram os gângsteres rivais de olho na mercadoria – não pense que o roubo de cargas foi inventado na Via Dutra. Para proteger seus investimentos, Rothstein contratou soldados para escoltar a bebida. Entre eles Lansky, Shapiro, Lepke, Schultz, Luciano... uma turminha da pesada. “Arnold Rothstein foi o Moisés do submundo: ele encaminhou a geração seguinte para a terra prometida, mas não pôde entrar nela”, escreve Cohen, numa referência ao assassinato do mafioso, morto com um tiro no estômago em 1928. “Até hoje, todo gângster americano, de maneira que ele mesmo desconhece, imita Rothstein.”
Ninguém ficou chorando a morte de Moisés por muito tempo. Em primeiro lugar, porque mafioso que é mafioso não chora. Em segundo, porque era hora de fazer bons negócios. Enquanto os gângsteres italianos se engalfinhavam nas batalhas que dariam origem às famílias mafiosas e à lendária comissão que as reunia, os judeus dominaram o submundo e se tornaram a grande “ameaça à segurança nacional”. Assim como hoje em dia todo vilão de Holywood tem bigode e fala árabe, naquele tempo era natural mostrar matadores que conversavam em ídi-che, comiam pastrame com pepino azedo e tinham sobrenomes tão complicados quanto o Gwercman que assina essa reportagem. Quando Lepke estava sendo procurado pela polícia, por exemplo, no final de 1937, J. Edgar Hoover, o chefão do FBI, classificou-o como inimigo público número 1e o mais perigoso homem vivo – isso a apenas dois anos de Hitler iniciar a Segunda Guerra Mundial.
Terra Nostra
A história do crime organizado se confunde com a história da imigração nos Estados Unidos. Não por acaso, seu principal foco de atuação era Nova York, o grande porto de entrada para estrangeiros em busca do sonho americano. Se no início do século 20 houve a máfia irlandesa, após a cidade sofrer forte crise econômica, a partir dos anos 40 o cenário passou a ser dominado por italianos do sul que fugiam da pobreza e perseguição fascista.
Os judeus envolvidos no crime eram em sua maioria oriundos do Leste Europeu, de onde saíram 2 milhões de pessoas de ascendência judaica nas duas últimas décadas do século 19. Vinham fugindo das perseguições e destruições dos pogroms, as violentas ações anti-semitas. Ao chegarem nos Estados Unidos se agruparam e, como qualquer grupo imigrante, mantiveram suas tradições. Até na hora de matar.
Red Levine, por exemplo, assassino de Salvatore Maranzano, primeiro e único “chefe de todos os chefes” da máfia nova-iorquina, era um ortodoxo que se recusava a executar vítimas no shabat, o dia do descanso judaico. Walter Sage dizia que roubava para financiar seus estudos do Talmude. Até o chefão Meyer Lansky tinha suas crises com o Senhor. Casado com uma mulher religiosa, ele foi acusado pela esposa de ter despertado a ira de Deus, que como punição teria feito o primeiro filho do casal nascer com paralisia nas pernas.
Manter as tradições judaicas era essencial, mesmo para aqueles que se afastavam da vida religiosa. A convivência com outras culturas existia, gangues muitas vezes eram compostas por judeus e católicos italianos, mas seguia-se uma certa ética que separava os negócios. Especialmente na hora dos assassinatos: com raras exceções, na hora de colocar o dedo no gatilho, judeu matava judeu e italiano matava italiano.
Foi assim que a Murders Inc. prosperou. Abe “Kid Twist” Reles, Martin “Bugsy” Goldstein e Pep Strauss, três dos principais matadores, sumiam com qualquer um que falhasse com os chefões. Na máfia, o trabalho deles era imprescindível, talvez o mais importante de toda a operação liderada por Lepke, o que os colocava entre os criminosos mais influentes do país. Além do salário, eles podiam explorar as extorsões e jogos em Brownsville, um enclave judaico no Brooklin. Na metade dos anos 30, cada um já ganhava cerca de 100 mil dólares por ano com o negócio.
O sucesso também era conseqüência do trabalho bem feito. Quando a ordem de assassinato partia de cima, o serviço vinha com esmero. Investigava-se a rotina da vítima, depois um carro era roubado e clonado com placas de outro veículo, acertava-se a rota de fuga e só então a missão era conduzida. Os alvos variavam de moradores que ameaçavam delatar o esquema para a polícia a mafiosos que cometiam atos de traição ou então concorrentes que atrapalhavam a arrecadação da grana. No entanto, nada, mas nada mesmo era feito sem a ordem direta de Lepke, Meyer ou de algum capo. O grupo fez pelo menos 50 trabalhos durante a década de 30. A cada sucesso, aumentava a sensação de que o bando era inatingível. Um engano.
Quanto mais famosas ficavam as ações de Lepke, Schultz e companhia, maior era a ambição para desmantelar o grupo nos tribunais da cidade. Assim, bastou surgir um procurador jovem, com ambições políticas e obstinação pelo trabalho, para os poros do crime organizado começarem a se fechar.
O promotor Tom Dewey, que mais tarde perderia uma eleição presidencial para Franklin Roosevelt, assumiu o cargo de maior inimigo da máfia.
O primeiro alvo foi “Lucky” Luciano, preso e deportado para a Itália acusado de explorar a prostituição. Justiça 1 x 0 Máfia. Dewey então foi atrás de Dutch Schultz. Dessa vez, não teve o mesmo resultado. O criminoso levou o processo para a pequena cidade de Malone, mudou-se para lá alguns meses antes do julgamento, ficou amigo de todos, deu fortunas para caridade e converteu-se ao catolicismo. Acabou inocentado por um júri popular. 1 x 1 no placar. Schultz, porém, não duraria muito. Furioso com Dewey, pediu a morte do promotor para a cúpula mafiosa. Pedido negado, saiu jurando que faria justiça com as próprias mãos. Na mesma hora, os gângsteres assinaram sua sentença de morte, que foi levada a cabo pela Murders Inc. Mesmo convertido, Schultz ainda era problema dos judeus.
Chegou a vez de Lepke, que decidiu viver clandestino por conta da marcação cerrada de Dewey. Ficou escondido por três anos, num dos períodos mais sangrentos da máfia nova-iorquina. Com uma fúria stalinista, Lepke mandava a Murders Inc. eliminar qualquer opositor que pudesse dar informações para a Justiça. Sem conseguir suportar a clandestinidade, no entanto, o mafioso resolveu se entregar. Foi condenado à pena de morte e até hoje é o único grande chefe do crime organizado executado por ordem da Justiça.
Sem a proteção de Lepke, Reles, Strauss e seus matadores foram presas fáceis. Um a um, foram detidos e seduzidos por propostas de acordo com a promotoria: quem delatasse os companheiros estaria livre da condenação. Reles resolveu falar. Ao prestar depoimento, tornou-se o mais alto funcionário de uma organização mafiosa a colaborar com a polícia até então. Levou todo o grupo de amigos para a cadeira elétrica, mas morreu durante o julgamento dos companheiros ao cair por uma janela num episódio até hoje mal explicado. A Murders Inc. foi para o túmulo. E não deixou herdeiros.
Saiba mais
Tough Jews, de Richard Cohen, Vintage Books, Nova York, 1999, 304 páginas
Revista Aventuras na Historia
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