Bahia de todas as cores
Quase 50 anos depois do descobrimento, os portugueses voltam à Bahia e se encantam com o que ela podia lhes dar. Dessa vez, eles viriam para ficar
por Eduardo Bueno
Na radiosa manhã de 29 de março de 1549 – uma sexta-feira, como no dia da partida de Lisboa –, após exatas oito semanas de viagem, a frota do primeiro governador-geral do Brasil, Tomé de Sousa, avistou terra. Eram os áridos baixios de Tatuapara (hoje praia do Forte), que se prolongavam até a insinuante ponta de Itapuã, resplandecente em verdor tropical. Deixando para trás os pontiagudos recifes do rio Vermelho – a temível barreira de corais onde, 30 anos antes, Caramuru naufragara –, os navios do governador contornaram a ponta do Padrão (hoje farol da Barra) e penetraram, um a um, na baía de Todos os Santos.
Aquela era e continua sendo uma porção extraordinariamente bela do litoral brasileiro. Mesmo que, para os navegantes portugueses do século 16, vantagens estratégicas com certeza sobrepujassem encantos paisagísticos, a baía, ainda assim, distinguia-se como um acidente geográfico notável – imponente sob qualquer ponto de vista.
Com cerca de 200 quilômetros de perímetro e mais de mil quilômetros quadrados de superfície, aquele vasto mar interior, formado ao longo dos milênios por uma seqüência de atribulações geológicas, rompia a linha retilínea da costa, constituindo um pequeno mediterrâneo –resguardado, seguro e amplo o suficiente para abrigar “não só todos os navios de Vossa Majestade, como as armadas dos monarcas da Europa”.
Suas águas de um azul translúcido estavam repletas de ilhas verdejantes – quase 100 delas. As margens, vestidas de matas e mangues, eram pontilhadas por um colar de praias e enseadas de areias faiscantes. Rios de águas escuras, transportando ricos sedimentos, desenhavam meandros indecisos ao redor de pequenos tabuleiros de arenito antes de mergulhar vagarosamente no mar por entre os bancos de corais. Soprando de sudeste, bons ventos asseguravam chuvas regulares e constantes. Quando o Sol tornava a luzir em céu límpido, a terra exalava aromas adocicados.
A baía não era apenas um espetáculo para os olhos: sua natureza se revelava extraordinariamente generosa. Naquele mundo dominado pelas águas, o impenetrável emaranhado dos mangues costeiros garantia a reprodução de crustáceos – lagostas, siris, caranguejos, guaiamus, lagostins e uçás – em quantidade prodigiosa. Os blocos graníticos, caprichosamente intervalados entre zonas alagadiças e praias arenosas, constituíam um hábitat de tal modo privilegiado que a tonalidade rósea das pedras fora substituída pelo manto cinzento das ostras e mariscos, agrupados em colônias inumeráveis.
As águas do mar e dos rios eram tão piscosas que, durante muitos anos, em um paradoxo apenas aparente, pescadores profissionais mal podiam garantir seu sustento na baía: "O peixe é tanto que vai de graça...", escrevera, em 1536, o finado donatário da capitania da Bahia, Francisco Pereira, o Rusticão. Eram garoupas, meros, pargos, xaréus, bonitos, dourados e corvinas, além de dezenas de outras espécies.
Nos meses de maio, junho e julho, época da procriação, baleias afluíam às águas tépidas do Recôncavo em tal quantidade que mais pareciam “carpas num viveiro”, de acordo com a historiadora Miriam Ellys. Era freqüente vê-las encalhar nas praias e baixios. Então os moradores da orla dissecavam-lhes os corpos, removendo a manta de toicinho, que utilizavam para obter óleo. Os encalhes eram bem-vindos, já que os portugueses estavam incapacitados de arpoar baleias “por desconhecimento das técnicas apropriadas, em que eram inconstestáveis autoridades, na época, bascos franceses e espanhóis”.
Tamanho potencial e tais limitações não passariam despercebidas a Gabriel Soares de Sousa, o maior cronista das opulências da Bahia, que, em 1587, relatou: “Se à Bahia forem biscainhos ou outros homens que saibam armar às baleias, em nenhuma parte entram tantas como nela, onde residem seis meses do ano e mais, de que se fará tanta graxa que não haja embarcações que a possam trazer à Espanha”.
Os recursos alimentares oferecidos pela zona do Recôncavo baiano não se restringiam às águas. A floresta, que revestia a terra para além da estreita faixa de areias alvas, também fervilhava de vida, abrigando, no solo e nos ares, “toda a casta de animálias”: antas, cotias, pacas, veados, perdizes, mutuns, galinhas do mato e pombos silvestres voavam em bandos afoitos ou se agrupavam em desprevenidas manadas. Havia uma infinidade de plantas frutíferas, repletas de cajus, pacovas, abacaxis, umbus, mamões, pitangas, sapotis, maracujás, cupuaçus, guabirobas.
Por fim, os “bons ares” que ali sopravam eram “reconhecidamente vitais”, a ponto de a região ter sido definida como “um quase segundo paraíso, em perpétua primavera, donde raramente andam desterradas as pestes e ramos delas, as doenças contagiosas”, como anotou, sem os exageros habituais, um antigo cronista franciscano.
Fora justamente a barreira das febres palustres das águas estagnadas e dos calores malsãos que bloqueara o avanço da colonização portuguesa em determinados trechos da costa e em algumas ilhas do litoral da África. Assim, por mais amortecida que a “sensibilidade para o exótico” pudesse se encontrar entre os lusitanos, como teorizou Sérgio Buarque de Holanda, eles não deixariam de reconhecer de imediato a “bondade” de uma baía como a de Todos os Santos. E assim fora desde o dia de sua descoberta, 1º de novembro de 1501.
Embora cedo tenha se destacado como uma das jóias mais vistosas no vasto colar de conquistas ultramarinas dos portugueses, meio século já se havia passado desde a incorporação da Bahia ao curso da história da expansão européia sem que suas águas transparentes refletissem uma cena imponente como a que se desenrolou naquela manhã de 29 de março de 1549, quando lá ancoraram as seis embarcações da armada do governador, com bandeiras desfraldadas e uma multitude de homens reclinados nas amuradas.
Nunca se saberá com certeza qual a primeira impressão que Tomé de Sousa – ele próprio um veterano das praias e costas da África e da Índia –teve da Bahia naqueles dias inaugurais: das várias cartas que o governador terá enviado para o rei, apenas duas foram preservadas, e ambas tratam basicamente de assuntos administrativos. Mas o padre Manoel da Nóbrega, que jamais havia deixado a península Ibérica, ficou fascinado com o que viu. Em carta a seu mestre, Aspicuelta Navarro, escrita em 10 de agosto de 1549, ele disse:
“A terra é muito fresca, (...) tem muitas frutas e de diversas maneiras e muito boas, e que têm pouca inveja às de Portugal. Os montes parecem formosos jardins e hortas, e eu nunca vi tapeçaria de Flandres assim tão bela. Nos ditos montes há animais de muitas diversas feituras, dos quais Plínio nem escreveu nem soube. Tem muitas ervas de diversos aromas e muito diferentes das de Espanha, e certamente bem resplandece a grandeza, formosura e saber do Criador em tantas, tão diversas e formosas criaturas.”
Apesar da inegável beleza, aquela era também uma terra de danação para muitos dos homens a bordo – e não apenas os degredados. É difícil conjecturar até que ponto uma primeira impressão eventualmente favorável terá perdurado entre os tripulantes. Afinal, ninguém se encontrava ali por vontade própria, e é preciso não esquecer que, além de repleta de cobras e mosquitos (que causariam sérios problemas aos primeiros colonizadores), a Bahia era ocupada por indígenas de humores inconstantes e seria povoada quase que exclusivamente por portugueses “de baixa condição”. Vinho, pão de trigo, talheres, camas, mulheres européias, um mínino de requinte – nada disso seria desfrutado nos trópicos. Além do mais, os burocratas escalados para dar ao novo território um resquício de ordem jurídica e fiscal não desconheciam o quão árduo seria fazer carreira longe dos favores reais.
É possível que inúmeros expedicionários já estivessem odiando a terra antes mesmo de tomar contato nela.
O desembarque de Tomé de Sousa e seus comandados permanece envolto em uma aura fantasiosa que não encontra base no registro documental.
Com os pés no chão
Escrevendo em 1758 (mais de 200 anos depois dos acontecimentos), o frei franciscano Antônio Jaboatão arriscou-se a descrever a cena com extraodinário luxo de detalhes.
De acordo com o padre, “uma bem composta e devota procissão, diante da qual iam os padres jesuítas, levando arvorada uma grande e formosa cruz”, deixou os navios e marchou com toda solenidade em direção à Vila do Pereira, que fora a primeira sede da capitania e havia sido destruída pelos nativos. Apesar de bastante improvável, a cena – “tambores soando, couraças cintilantes ao sol, o estandarte real no alto, o governador e seus homens procissionalmente desfilando entre alas de gente nua, esparramada pelas várzeas” – tem sido repetida ao longo dos séculos por vários historiadores, entre os quais Pedro Calmon, autor do trecho acima.
A verdade é que simples considerações de estratégia militar devem ter impedido tal despropósito. Além das notícias sobre a nova terra estarem defasadas de muitos meses, Tomé de Sousa fora alertado pelas prudentes recomendações do Regimento Régio sobre um possível estado de guerra (ou, quando menos, de conflito latente) entre os portugueses e os tupinambás do Recôncavo. O governador vinha precavido contra qualquer surpresa e estava instruído para agir “o mais a vosso salvo e sem perigo da gente que puder ser”.
Em vez de impor respeito e temor aos indígenas, a procissão imaginada por Jaboatão e repetida por outros pesquisadores iria apenas expor toda a tripulação da armada a um ataque caso a Bahia não estivesse em paz. “Não terá sido com tais imprudências”, observa o historiador baiano Edison Carneiro, “que Tomé de Sousa mereceu as esporas de cavaleiro”.
A inexistência de um cais na antiga Vila do Pereira é outro dos detalhes apontado por Carneiro que contribui para desfazer decisivamente o mito de um desembarque em massa. O mais provável é que o governador – cujo tino e siso todos os cronistas contemporâneos concordam em louvar – tenha transformado o episódio não em uma procissão religiosa, de todo inapropriada para as circunstâncias, mas em uma cautelosa e sensata operação militar, levada a cabo “com todos os cuidados e precauções de uma manobra de guerra”.
A primeira medida de Tomé de Sousa deve ter sido o envio de emissários à terra em busca de Caramuru e de seu genro, Paulo Dias, a quem o próprio rei D. João III escrevera alguns meses antes. Só depois de ter se certificado de que a terra estava pacificada, o governador teria autorizado o desembarque – e, ainda assim, parcialmente, uma vez que a “gente do mar”, auxiliada por alguns artilheiros, certamente deve ter permanecido a bordo para defender os navios, enquanto em terra a “gente d’armas” vigiava a praia.
Além de ser o único ponto de apoio dos recém-chegados, os navios eram preciosos como meio de transporte e defesa ou mesmo de fuga e pela inestimável carga que traziam. É preciso considerar também que, dada a precariedade da Vila do Pereira, com reduzidíssimo número de habitações aproveitáveis, boa parte dos homens deve ter pernoitado a bordo ao longo de várias semanas. Por fim, quase todo o material e as guarnições que estavam nos porões e no convés não seriam levados de imediato para terra, simplesmente porque a nova cidade não seria construída no local onde se erguia a “povoação que antes era”.
O desembarque, ainda assim, há de ter adquirido certa solenidade, já que, em carta ao seu superior, Simão Rodrigues, redigida em maio de 1549, o padre Nóbrega, testemunha ocular da história e sempre atento a qualquer vantagem tática, não deixaria de registrar o impacto que a operação provocou entre os nativos: “Estão espantados de ver a majestade com que entramos e estamos”, disse. “E temendo-nos muito, o que também ajuda.”
A mesma carta revela que Caramuru cumprira à risca as ordens do rei, não apenas armazendo mantimentos como apaziguando os indígenas: “Este homem, com um seu genro (Paulo Dias), é o que mais confirma as pazes com esta gente, por serem eles seus amigos antigos”. Mas o melhor é que a Bahia não estava apenas em paz: “A terra cá”, afirma Nóbrega, “achamo-la boa e sã. Todos estamos de saúde, Deus seja louvado, mais sãos do que quando partimos”.
Independentemente de como tenham se desenrolado, aquele dia e os seguintes estavam destinados a adquirir enorme importância não apenas simbólica como factual para o curso da história do Brasil. Afinal, passados 48 anos, dez meses e 29 dias do desembarque de Cabral, os portugueses estavam outra vez colocando os pés em uma praia da Bahia, mas só a partir de então iriam de fato deflagar o processo que resultou na colonização do vasto território que lhes pertencia na costa ocidental do Atlântico.
Saiba mais
Livros
A Cidade do Salvador, de Edson Carneiro, Civilização Brasileira, Trata-se de uma reconstituição histórica da fundação da cidade do Salvador e a expedição de Tomé de Sousa. Foi lançado em 1954 e reeditado em 1980. É o melhor entre os vários livros que abordam o tema da fundação da capital baiana.
História da Fundação da Cidade do Salvador, Teodoro Sampaio, Tipografia Beneditina, 1949, Um dos primeiros levantamentos exaustivos sobre o tema. Serviu de referência para os demais estudos da história da cidade, entre eles, o livro do historiador baiano Edson Carneiro.
História da Fundação da Bahia, de Pedro Calmon, Publicações do Museu do Estado, Secretaria de Educação da Bahia, Obra lançada pelo governo baiano em 1949, durante a comemoração do quarto centenário da cidade de Salvador.
A Cidade de Tomé de Sousa – Aspectos Quinhentistas, Alberto Silva, Irmãos Pongetti Editores, Também lançada em 1949, esta obra insere a criação da cidade no contexto do século 16.
Baú de histórias
Anotações direto da mesa de trabalho de Eduardo Bueno para você
VOCÊ JÁ FOI À BAHIA? ENTÃO VÁ
Três anos e meio após a publicação de Capitães do Brasil, terceiro volume da coleção Terra Brasilis, o quarto título da série que vendeu mais de meio milhão de exemplares enfim está a ponto de chegar às livrarias. Trata-se de A Coroa, a Cruz e a Espada abordando o período que vai de dezembro de 1548, quando o rei D. João III decidiu estabelecer um governo-geral no Brasil, a julho de 1556, quando o bispo Pero Sardinha foi morto (e provavelmente comido) pelos caetés. Foram anos-chave na história do Brasil. Pela primeira vez Portugal investia dinheiro do tesourona colonização de seu vasto território sul-americano. Com o governador-geral Tomé de Sousa vieram não apenas os jesuítas, liderados por Manoel da Nóbrega, mas os primeiros funcionários públicos: escrivães, fiscais, meirinhos, ouvidorese oficiais de justiça, em número muito superior ao necessário. Na mesma época, foram fundadas Salvador, primeira capital do Brasil, e São Paulo.
AVENTURA EM SÃO PAULO
Depois de produzir 50 edições de Um Pé de Quê? - a série de documentários sobre árvores nativas do Brasil exibida pelo Canal Futura – Regina Casé e equipe vão contar, à sua particularíssima maneira, a história da fundação de São Paulo. Aproveitando a comemoração do aniversário de 450 anos da cidade, Regina vai coordenar uma espécie de gincana durante a qual os concorrentes terão que navegar pelas águas do rio Pinheiros, escalar o pico do Jaraguá e subir a antiga Trilha dos Tupiniquins (que ligava a Baixada Santista ao planalto paulista).
COM ELE, ONDE ELE ESTIVER
Tudo é História era o nome de uma ótima coleção publicada na década de 1980 pela editora Brasiliense. Pois a Coleção Camisa 13, lançada agora pela editora DBA, revela que a trajetória, os gols e as vitórias dos 13 maiores times de futebol do Brasil fazem parte não apenas da vida emocional de milhões de pessoas mas da própria história do país. Escritores apaixonados por seus clubes foram convidados para escrever sobre eles. Seis volumes já foram lançados: Flamengo, por Ruy Castro; Corinthians, por Washington Olivetto e Nirlando Beirão; Palmeiras por Mário Prata; Santos, por José Roberto Torero; Bahia, por Bob Fernandes e Atlético Mineiro, por Ricardo Galuppo. Um brilhante humorista gaúcho vai escrever sobre um time do Rio Grande do Sul que é uma piada, enquanto eu acabo de terminar o livro sobre o glorioso Grêmio, cujo título – um cântico à modéstia (e à veracidade dos fatos) – é: Nada Pode Ser Maior. Dado o (passageiro) mau momento do glorioso tricolor gaúcho, Nada Pode Ser Maior será lançado só em 2004 e não em 2003, o interminável e tortuoso ano do centenário do clube. A coleção Camisa 13 é uma ótima idéia, mas a indústria editorial brasileira ainda deve ao país uma boa “história geral” do nosso futebol.
Revista Aventuras na Historia
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