por Jacques Brosse
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Festa na corte do imperador Kublai Khan, que foi visitado por Marco Polo; na página ao lado, o porto de Veneza, início de sua viagem
Quando Marco Polo voltou a Veneza em 1295, seus compatriotas não o reconheceram – o que não foi uma surpresa, já que ele os havia deixado 24 anos antes, quando tinha apenas 17. Foi isso, sem dúvida, que inspirou o relato exagerado, quase lendário, narrado por Giovanni Battista Ramusio (1485-1557), autor que escreveu sobre os Polo, três séculos depois. Marco, Niccolo, seu pai, e Matteo, seu tio, teriam chegado em casa como peregrinos, vestidos com trajes miseráveis.
Tiveram, dificuldade em se fazer reconhecer pelos parentes, que, ocupavam a casa, pensando que estavam mortos. Os três viajantes convidaram, então, todos os seus aparentados para um banquete, no qual surgiram vestidos com hábitos de cetim violeta, logo trocados por outros de seda estampada, ainda mais preciosos, antes de retomarem seus hábitos à moda veneziana. Em seguida, Marco Polo trouxe os trapos com que estavam vestidos quando de sua chegada a Veneza; descosturou-lhes a barra, fazendo tombar “uma grande quantidade de jóias de um valor inestimável, rubis, safiras, granadas, diamantes e esmeraldas”. Imediatamente, sua família “lhes devotou sinais de estima e de respeito”.
Apesar de se tratar apenas de um apólogo, essa cena reflete a emoção que tomou conta dos venezianos ao rever esses três homens, que há tempos se pensava que estavam mortos, e contemplar as riquezas trazidas de países tão longínqüos, dos quais nunca tinham ouvido falar.
Muitos curiosos dirigiam-se à casa dos Polo, em uma pequena praça perto da ponte do Rialto. Com bastante complacência, Marco relatava suas extraordinárias aventuras e descrevia os países que tinha percorrido. Como bom homem de negócios veneziano, avaliava suas enormes riquezas em milhões de moedas de ouro.
IMAGENS: BIBLIOTECA NACIONAL, PARIS
O papa Gregório X entrega documentos aos Polo, destinados ao imperador Kublai Khan; à direita, viajantes venezianos negociam no porto de Ormuz
No início do século XIII, o império veneziano tinha crescido de forma prodigiosa, tirando proveito da Quarta Cruzada, e o doge Enrico Dandolo (1105-1205) havia se autoproclamado “senhor de um quarto e meio do Império Romano”. Até mesmo o Extremo Oriente não era desconhecido pelos venezianos, pois suas galeras traziam de Alexandria carregamentos de especiarias vindos de Cantão, transportados por navios árabes até as costas do mar Vermelho. Entretanto, o ceticismo dos venezianos provinha dos relatos de Marco, dessas riquezas incríveis que, segundo ele, dispunha o soberano de Catai (era assim que ele chamava a China). Era inadmissível que esse estado bárbaro, cuja existência acabara de ser revelada, possuísse uma civilização bem mais evoluída que a européia. Enfim, havia suspeitas sobre as altas funções que Marco Polo assegurara ter exercido nesse império no fim do mundo.
Os Polo tinham regressado bastante ricos. Desde 1296, Marco Polo não hesitou em equipar uma galera de combate da qual se tornou comandante. Participou inclusive da batalha naval na qual, perto da ilha de Curzola, no Adriático, se enfrentaram as frotas veneziana e genovesa; os venezianos foram vencidos, e Marco Polo foi levado para o cativeiro em Gênova, onde ficaria por três anos.
Ali, conheceu Rustichello da Pisa, que não apenas se interessou apaixonadamente por suas histórias, mas se propôs a escrevê-las. Rustichello era um homem de letras. Escrevia em langue d’oil, ou seja, em francês provençal, que era a língua mais falada por aqueles que não empregavam o latim. Era um escritor conhecido, com vários livros, entre os quais uma grande compilação de romances da Távola Redonda. Apesar disso, contentou-se em colocar no papel o que dizia o narrador, afirmando: “Ele [Marco Polo] tinha escrito muito pouco das coisas de que se lembra hoje em dia [...] Agora, escreveu todas essas coisas por meio do senhor Rustichello, cidadão de Pisa, que esteve com ele na mesma torre fortificada de Gênova, em 1298 [...]” Entretanto, Rustichello era um “romancista”, autor de belas histórias lendárias, e essa circunstância bastava para criar em seus leitores uma dúvida sobre a veracidade de seus relatos. Sabe-se que ele cumpriu sua função e que o próprio Marco Polo revisara e completara seu texto, consultando a documentação que havia deixado em Veneza – para onde voltou em 1299 –, já que estavam mencionados acontecimentos aos quais ele só poderia ter tido acesso depois de sua libertação.
O que se sabe é que O livro das maravilhas, também conhecido como A descrição do mundo, foi em seu tempo um best-seller, fato testemunhado pela quantidade considerável de manuscritos que se conservaram até nossos dias. Todas as grandes bibliotecas européias possuem pelo menos um exemplar, ou mesmo dois, do século XIV ou do século XV. Entre as primeiras obras impressas, no final do século XV, existem várias edições do livro de Marco Polo. Mas foi justamente esse sucesso que prejudicou sua credibilidade – as aventuras maravilhosas atraíram um número muito grande de leitores que o viam como ficção. Se o livro inspirou contistas e poetas, jamais foi utilizado por sábios.
MUSEU NAVAL, GÊNOVA
Cristóvão Colombo: leitor de Marco Polo
Antes da primeira viagem de Niccolo e Matteo Polo (1260-1269), dois franciscanos tinham sido enviados à terra de Gêngis Khan (leia mais em História Viva, ed. 21) – frei Jean du Plan Carpin, em 1245, pelo papa Inocêncio IV, e Guillaume de Rusbrouck, pelo rei francês Luís IX, em 1253. Lá chegando, foram bem recebidos, mas o imperador não estava disposto a se converter ao cristianismo. Ao contrário, ele esperava que o papa e o rei da França se reconhecessem como seus vassalos. Sabemos que Kublai Khan, neto de Gêngis Khan, que reinava na China, preocupado em conhecer todas as religiões existentes, entregara uma carta aos irmãos Polo, em 1266, pedindo ao papa que lhe enviasse “cerca de 100 homens sábios para ensinar a doutrina cristã” – ele esperaria em vão.
Entretanto, em 1285, quando Marco, seu pai e seu tio se encontravam na China, Argun, sobrinho de Kublai, que governava a Pérsia, endereçara ao papa Honório IV uma carta propondo-lhe que atacassem em conjunto a Síria muçulmana e a dividissem entre si. Dois anos mais tarde, Argun enviaria ao Ocidente um monge cristão, nascido em Pequim, a fim de estabelecer uma aliança. Rabban Sauma visitaria Roma, Paris e Bordéus, mas sua missão acabaria se tornando inútil, pois as últimas bases fortes mantidas na Síria pelos cruzados acabavam de ser rendidas pelos sarracenos.
O relacionamento entre Roma e a China mongol não terminaria, entretanto. Em 1293, quando os Polo faziam o caminho de volta, um terceiro franciscano, Jean de Montecorvino (1246-1328), chegaria a Pequim. Bem recebido por Kublai, pôde até mesmo fundar uma igreja. Esta, contudo, não sobreviveu após a morte do religioso, em 1328. Marco Polo morreria quatro anos antes, em 8 ou 9 de janeiro de 1324, com 69 anos. Em sua agonia, segundo a crônica de Jacopo d’Aqui, Marco teria afirmado que todos os detalhes de seu livro eram exatos e que não tinha contado nem a metade do que havia visto.
IMAGENS: BIBLIOTECA NACIONAL, PARIS
A pesca de pérolas (à esq.) e homens com cabeça de animal: fragmentos de histórias que povoam o imaginário de Marco Polo
Com a queda, em 1368, da dinastia mongol dos Yuan, a China se fecharia, tornando impossível confirmar esses relatos até o século XVI, época em que os portugueses se instalaram em Macau e da viagem do jesuíta Matteo Ricci. Durante todo esse tempo, lia-se a obra de Marco Polo como entretenimento. Embora com esse enfoque, graças a ela se difundiu em toda a Europa a miragem das riquezas fabulosas do Extremo Oriente. Um dia, alguém quis vê-las. Curiosamente, foi um genovês o primeiro a utilizar A descrição do mundo para fins práticos. Existe ainda em Sevilha o exemplar de um resumo do livro de Marco Polo impresso em Antuérpia, em 1485, cujas margens estão recobertas de anotações feitas por Cristóvão Colombo; quase todas relacionadas a ouro, pedrarias, especiarias. Assim, quando ele parte de Palos em 3 de agosto de 1492, era Catai que desejava atingir pelo oeste, com o propósito de converter, enfim, o Grande Khan e persuadi-lo a marchar contra os turcos enquanto os exércitos cristãos, equipados graças ao ouro que seria trazido, iriam atacá-los pelo oeste. Mas a reputação de Colombo era, igualmente, falsa. Ele não foi um precursor, mas um retardatário, permanecendo assim até o fim. Quando soube que havia descoberto o Novo Mundo, não só se surpreendeu, mas se indignou. Ele nunca teve esse desejo. No ano de 1502, em sua última viagem, partiria mais uma vez à procura de um mar das Índias que até então não tinha atingido e, nas costas da América Central, acreditara ter descoberto Mangi (a China do sul), Ciamba (o Anam, atual Vietnam) e Lachac (a quase-ilha de Málaca, na Malásia), descritos por Marco Polo.
Apenas no século XIX, a obra de Marco Polo começaria a ser reconhecida por seu caráter científico, sendo alvo de edições críticas. Os estudiosos confrontaram-na com fontes chinesas e confirmaram o valor de suas informações. Restava reconstituir o itinerário seguido pelos Polo, o que foi feito por Paul Pelliot que, entre 1906 e 1908, exploraria a Ásia central e, particularmente, os oásis que marcavam as etapas da rota da seda. Então quase tudo que permanecia obscuro em A descrição do mundo tornou-se claro. Marco Polo, subitamente, passava de fantasista à pesquisador bem informado.
Moderno, efetivamente, por se tratar de um homem de negócios e administrador, ele era, todavia, um homem de seu século. Impregnado de sua ideologia, recolocava os dados empíricos a partir de uma concepção de mundo que, evidentemente, não é mais a nossa. Com isso, a reputação de modernista adquirida nos séculos XIX e XX tornou-se tão falsa quanto aquela que ele teve por muito tempo, a de um contador de histórias fantásticas. Mas não seria justamente esta ambigüidade que nos faz lê-lo hoje em dia com tamanho prazer?
Jacques Brosse é escritor, jornalista e pintor. Ganhador do Grande Prêmio de Literatura da Academia Francesa, escreveu, entre outros livros, L´homme dans lê bois (O homem na floresta, 1976).
Revista Historia Viva
3 comentários:
Eu aprendi um pouco dessa história na leitura do livro Cidades Invisíveis, de Italo Calvino, uma viagem muito intressante!
Lendo, vivendo e aprendendo.
Gostaria de ter lido um desses livros aí citados.
O comércio e a Igreja sempre de mãos dadas, impressionante.!
Bela postagem, Eduardo!
Forte abraço
Mirse
Falaaaaaaa Eduardo!
Aqui é o Saulo,professor do Curso Pontual.Tô vendo que seu blog será muito útil para meu aprendizado!
De agora eem diante serei presença cativa aqui!rs
Parabéns!
Forte abraço!
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