sexta-feira, 19 de junho de 2009

A real Cleópatra, muito acima da lenda

A última grande figura do Egito antigo sonhou um destino excepcional para seu país. Seu caráter era apaixonado, e ela exerceu o poder com notável gênio político.
por Marcel Brion

Fragmento de um relevo que se acredita ser um retrato de Cleopatra. A imagem provavelmente esta inacabada ou era usada por escultores como modelo

Após o assassinato de sua filha Berenice, restavam a Ptolomeu Aulete quatro filhos legítimos: dois meninos, ambos chamados Ptolomeu, e duas meninas, Arsinoé e Cleópatra. Quando o faraó morreu, os meninos eram bem pequenos e Arsinoé tinha 14 anos. Quem assumiu o poder, no ano 51 a. C., foi a mais velha, Cleópatra. Aos 17 anos, ela já era admirada por suas qualidades de estadista, inteligência, energia, sentido de grandes projetos e, também, paciência e tenacidade.

Crescera em meio ao tumulto e à angústia da guerra, da invasão. Conheceu a humilhação da ocupação estrangeira, a arrogância e a brutalidade dos romanos, os caprichos rústicos e ruidosos daquela população mestiçada que habitava Alexandria, a docilidade e a resignação dos camponeses curvados pelo peso de milênios de submissão. Por mais que tivesse orgulho de sua ascendência real e de sua herança macedônica, sentia uma profunda simpatia pelo povo egípcio, com suas virtudes ancestrais, seu amor pela paz, sua harmonia com os elementos e as estações do ano.

Ela não era egípcia; seu sangue se constituía de heranças gregas, macedônicas e persas. Pertencia ao Egito pela inteligência e coração. De natureza generosa, orgulhosa e ousada, ela se indignou quando o jugo de Roma pesou sobre aquele país cuja civilização era tão mais antiga e refinada. Acalentou o sonho e a a ambição de livrar seu povo da tirania estrangeira. Todos os atos de seu governo e seu comportamento pessoal indicam que Cleópatra desde sempre acalentou a possibilidade de reinar sobre um vasto domínio, além- fronteiras. É imperioso abandonar o clichê da Cleópatra voluptuosa, ocupada apenas com paixões e prazeres. Ou, ao menos, é preciso reconhecer que, se essa Cleópatra realmente existiu, ela não era sua única face. Seu caráter e seu temperamento afastam qualquer tentativa de delimitação. A obstinação de definir de modo tão apequenado uma personalidade de prodigiosa complexidade não resiste diante das afirmações dos melhores historiadores da dinastia ptolomaica, que reconhecem todos nessa mulher as qualidades e as ambições de um grande rei.

Tinha vícios, mas somava a eles o raro talento de quem tem o verdadeiro gênio político de conseguir que eles concorram para a realização de seus projetos. Sua destreza em compartilhar as derrotas de César e de Marco Antônio não passava de recurso para garantir o domínio sobre os senhores de Roma e, por meio deles, realizar seus desejos e sonhos ambiciosos. Sabia ser uma grande rainha, uma amante que dominava a arte mais refinada das prostitutas e uma menina que se divertia com jogos pueris.

O modo como ela - para conseguir chegar a César - fez com que fosse levada a seu palácio, enrolada num tapete carregado sobre os ombros de seu escravo Apolodoro de Sicília, comprova mais uma de suas adoráveis e originais qualidades e, ao mesmo tempo, mostra sua engenhosidade em inventar estratagemas e astúcias de batalha.

Ao mesmo tempo, era mais sábia e mais culta do que qualquer mulher da época. Falava fluentemente egípcio, árabe, persa, aramaico, etíope e somali, além de suas línguas maternas.

Plutarco afirmou que ela não era bonita. Ela devia o domínio que exercia sobre os homens que se aproximaram dela, exceção feita ao glacial Otávio, à inteligência brilhante, sedutora, feita de mil facetas, viva, fulgurante, capaz de cegar. Cleópatra VII, a mais notável das rainhas do Egito, encontrava-se em situação perigosa no momento de sua ascensão. Ela havia se casado com - e alçado ao poder - o mais velho de seus irmãos, Ptolomeu XII, então com cerca de 10 anos de idade. Esse marido não podia ajudá-la em nada, e além disso ela conservava o título de rei, como fizera anteriormente Hatshepsut, que aparece usando a barbicha postiça ritual, nas efígies. Essa tradição perdera-se com o passar do tempo, mas nos registros fala-se dela como de um rei, e não como de uma rainha, e as moedas a tratam de basileus, não de basilissa.

O exército romano acampava muito próximo de Alexandria. No palácio, o poder era dividido entre três personagens influentes: Aquilas, um egípcio chefe do exército real, Teódoto, um grego de Quios que era preceptor dos reais infantes, e o eunuco e tutor Potino, também grego. Esse trio se orgulhava de governar a mulher e o rei-infante. Já o exército romano lembrava ininterruptamente aos egípcios que sua independência já não mais existia e que os súditos eram da República Romana, não de Cleópatra. Mas a qual fração, ou facção, da república os guerreiros pertenciam: a César ou a Pompeu? A guerra havia sido declarada, entre esses dois aspirantes a ditador. Cada um deles tinha levado suas tropas, e era evidente que só a força das armas decidiria o conflito que ameaçava pôr a ferro e fogo os mundos oriental e ocidental.

Covardia e traição
O Oriente era simpático a Pompeu. O Egito, em particular, lhe fornecia trigo e soldados. O exército acampado em Alexandria tinha devoção pelo vencido de Farsália. Após aquela derrota, Pompeu fora buscar asilo no Egito, onde tinha certeza de encontrar adeptos. Na época, Cleópatra deixara Alexandria. A coalizão formada por Potino, Aquilas e Teódoto havia instigado o povo contra ela. Cleópatra tivera a imprudência de querer se livrar de seus incômodos ministros, e agora eles a obrigavam a fugir para salvar a própria vida. A facção de Potino tinha conspirado de tal maneira que Ptolomeu, inteiramente dominado por eles, aparentava ser o verdadeiro rei, enquanto a sucessora de Aulete era vista como intrusa e usurpadora. Cleópatra partiu rumo ao deserto para reunir algumas tribos nômades que aliciara, contra a promessa de ricas recompensas.

A idéia de invadir o Egito seduzia esses senhores das areias, maravilhados com relatos sobre as suntuosidades alexandrinas. Cleópatra não teve dificuldade de reunir um exército à frente do qual, então com 20 anos de idade, guerreou contra o Aquilas.

Este estava pouco inclinado a aceitar tal conflito; os olhares voltavam-se para Farsália, onde o poderio de Pompeu havia desmoronado. Todos se perguntavam quem seria o novo senhor. Os três ministros, que controlavam como uma marionete o jovem Ptolomeu, único rei do Egito desde a fuga de Cleópatra, tremeram quando Pompeu, derrotado e em fuga, pediu a hospitalidade do Egito.

Cleópatra tinha toda simpatia por Pompeu; quando ainda era rainha, ela havia acolhido seus pedidos de ajuda. Seu jovem irmão e seus ministros só levavam em consideração os perigos que poderiam advir de oferecer asilo político ao fugitivo. Todavia, não ousaram recusar o pedido, pois a tradição mandava que se respeitasse o direito de asilo, até como dever sagrado. Plutarco relata os termos em que o Conselho de ministros debateu essa delicada questão: "Receber Pompeu, disse Potino, é escolher César como inimigo e Pompeu como senhor; recusá-lo, é fazer com que Pompeu nos acuse de tê-lo expulso, e César de o termos obrigado a persegui-lo. O melhor, portanto, é mandar buscá-lo e matá-lo. Assim, submeteremos um, sem precisar temer o outro. Um morto não precisa ser temido".

Cleópatra não tomaria uma decisão dessas caso ainda fosse a senhora do reino. Mas como estava ausente, a covardia prevaleceu. Pompeu foi avisado de que o Egito lhe oferecia hospitalidade e Aquilas foi lhe dar as boas-vindas. Existem poucos episódios tão trágicos na história quanto este, de pérfida recepção, enquanto se tramava assassiná-lo. Enquanto o exército se aglomerava à margem, tendo à frente um jovem Ptolomeu vestido de púrpura, e a frota egípcia se preparava para controlar o mar, Aquilas e os carrascos partiram numa simples barca, para buscar Pompeu. O general tinha consigo o centurião Salvius e o tribuno Septimius.

Sem desconfiar, Pompeu se despediu da mulher Cornélia e subiu na barca. "A distância era longa, da galera até a margem", conta Plutarco: "Como durante o trajeto ninguém lhe dirigisse uma única palavra amável, ele se voltou para Septimius. \\'Se não estou enganado, nós já não guerreamos juntos?\\'. Septimius assentiu com a cabeça, sem proferir nenhuma palavra, sem denotar interesse. Fez-se novamente um profundo silêncio. Pompeu tomou de um pequeno caderno, no qual havia redigido um discurso em grego, que pretendia dirigir a Ptolomeu, e pôs-se a ler. Quando já se aproximavam da terra firme, Cornélia olhava do alto da galera, junto de seus amigos.

Ela começava a se tranqüilizar, vendo os homens do rei aproximar-se em massa do desembarque, como que para recebê-lo com honras. Naquele momento, Pompeu tomou da mão de seu escravo liberto, Felipe, para se erguer mais facilmente. Septimius desferiu o primeiro golpe de espada por trás, trespassando seu corpo; depois dele, Salvius e em seguida Aquilas sacaram seus punhais. Segurando a toga com as duas mãos, Pompeu cobriu com ela o rosto, e sem nada dizer ou fazer que fosse indigno dele, emitindo simplesmente um suspiro, abandonou seu corpo aos golpes".

Laços de intimidade
Alguns dias mais tarde, as galeras de César surgiram diante de Alexandria. Teódoto apressou-se em lhe levar a cabeça de Pompeu, como garantia da devoção do Egito. Talvez temendo uma armadilha, César desembarcou com um exército de cerca de 4 mil soldados e um milhar de cavaleiros, que acamparam na cidade.

O objetivo de César era mediar a questão entre Cleópatra e seu irmão, em benefício de Roma. Queria, sobretudo, que ambos se dessem conta de que estavam à mercê de Roma, e que não havia sentido em brigarem por uma coroa despida para eles de qualquer realeza. Era pouco provável, no entanto, que César pretendesse suprimir com uma penada a autoridade deles para substituí-los por um simples governador romano. Certamente pretendia nomear um dos dois irmãos, ao qual deixaria o título de rei, mas que não passaria de um funcionário de Roma. Assim, Cleópatra e Ptolomeu, ela na fronteira do deserto e ele em Pelusa, receberam o convite de César para se apresentar diante dele a fim de acolher suas instruções. Ptolomeu hesitava em obedecer. Dizia-se que César manifestara grande tristeza e enorme cólera diante da visão de seu inimigo morto. Havia se indignado com o fato de os egípcios, auxiliados por romanos traidores, terem cometido um crime, que agora ameaçava se voltar contra eles. O jovem rei, aconselhado por Potino e Aquilas, permaneceu na expectativa e tergiversava.

Cleópatra, ao contrário, compreendeu que era preciso rapidamente ir a César. Ela dispensou seu exército e abriu mão de qualquer cerimônia: pôs-se em marcha com seu escravo, Apolodoro, um siciliano habilidoso. Ele enrolou a rainha num tapete, que colocou sobre o ombro, e entrou no palácio à procura de César, a quem dizia querer entregar o presente. Foi assim que aconteceu o primeiro encontro entre o general romano e a herdeira dos faraós, numa atmosfera de comédia bufa, que estabeleceu de imediato entre eles ligações de intimidade com as quais Cleópatra contava para assentar seu império sobre o coração e o espírito de César.

Aquela mulher não demorou a conquistar o conquistador. Juntos, eles enfrentaram os ataques do exército de Aquilas e da população rebelada, que não aceitava nem César nem Cleópatra, e pretendia devolver o trono ao jovem Ptolomeu. Os perigos comuns fortificaram a ligação, mas a situação era crítica. Sitiados na parte alta da cidade, não podiam ir de encontro à frota romana. A frota egípcia tinha sido incendiada por ordem de César. Os adeptos do jovem Ptolomeu receberam reforços providenciados pela princesa Arsinoé, que não tinha mais do que 15 anos de idade, mas que exibia bravura e ambição. Ela levava consigo sua corte, seu preceptor, Ganimedes, e seus empregados. O jovem Ptolomeu permitira-se cair na armadilha da reconciliação e havia voltado para Alexandria, onde César o mantinha sob controle.

Arsinoé foi a agente da guerra contra César e Cleópatra. No entanto, seus generais brigavam entre si, e Ganimedes mandou assassinar Aquilas, para dominar sozinho o exército. Essas discórdias enfraqueceram os sitiantes, mas os sitiados também viam sua situação piorar. Tinham sido privados de água; César perdera muitos dos seus ao tentar uma saída. Quase caiu nas mãos do inimigo. Como os reforços pelos quais esperava não chegavam, ele quis ganhar tempo e negociou com os rebeldes: eles exigiam a devolução do jovem Ptolomeu. César concordou e assim perdeu o refém que lhe permitia manter os alexandrinos em xeque.

Certo dia, foi informado de que vinha, do Oriente, um exército em seu socorro, comandado por Mitrídates de Pérgamo. Imediatamente, César e Cleópatra, que cavalgavam juntos à frente de um pequeno grupo de guerreiros, deixaram a cidade, para se juntar a Mitrídates e com ele se precipitar sobre os alexandrinos. Em poucas horas o exército de Ptolomeu e Arsinoé foi dizimado e expulso. Ptolomeu desapareceu; nem seu cadáver foi encontrado.


A resistência alexandrina havia sido rompida. A população daquela cidade, tão pouco egípcia por sua raça e costumes, não mais oprimiria o verdadeiro Egito. Ela não mais se oporia aos projetos de Cleópatra, que, senhora dos sentidos e da vontade de César, poderia realizar seus projetos.

Ela identificara nele uma extraordinária vontade de poder. Era digno de ser associado a seu próprio destino, e capaz de ajudá-la a cumpri-lo. Mal informada acerca das particularidades da civilização romana, Cleópatra quis fazer de César um grande rei. Encarnava a tentadora que lhe propunha a mesma tentação com que seu orgulho e ambição sonhavam.

Para ela, o futuro de César não deveria se limitar ao mundo romano, mas estender-se. Queria que ele aspirasse ao Império do mundo, como Alexandre. Este, porém, não enfrentara barreiras como as erguidas pelas instituições romanas e, sobretudo, os interesses pessoais e muitas vezes mercantis que motivavam senadores e cavaleiros. César era cativo de uma rede de formalidades, obrigações e deveres.

Sabia que se os democratas desconfiassem dessa tendência à realeza não hesitariam em assassiná-lo. Cleópatra tinha sonhado fazer dele seu parceiro, a rainha do império do qual ela continuaria sendo o rei. Mas ele mesmo não se conformava com esse papel.

Contentou-se em passear pelo Egito em companhia dela, descendo o Nilo, mas quando a primavera voltou - momento em que Roma já manifestava sua impaciência -, ele deixou Cleópatra e partiu para o Ponto, a fim de esmagar a revolta de Farnaces. Ao mesmo tempo que os veteranos das legiões guerreavam, Cleópatra dava à luz um filho de César, a quem ela chamou Cesarião. A audácia chocou os egípcios.

O clero dificultou ainda mais as coisas, ao afirmar, segundo a tradição, que a criança era filho de Rá, que havia assumido a aparência de César. Salvava, assim, a legitimidade e o caráter sagrado da realeza. Quando entrou em Roma coroado de louros, César reconheceu o filho e dedicou à Vênus Genitrix uma estátua de ouro que representava Cleópatra.

Ele, entretanto, nunca mais voltou ao Egito. Cleópatra foi para Roma, o que causou escândalo, em especial aos puritanos, pois César era casado com Calpúrnia. Tamanha imprudência promoveu a união dos democratas e puritanos, uns recriminando a César o fato de ele querer tornar-se rei, os outros temendo que ele repudiasse a esposa para se casar com a egípcia, o que criaria dificuldades incontornáveis e poria em perigo a República. Se ela tivesse podido levar César para Alexandria, o centro de ação mundial teria sido deslocado. Abrindo mão de ser somente um homem de política romano, César teria se tornado rei do Egito primeiro, e em seguida imperador do mundo oriental. Por maior que fosse o fascínio de Cleópatra e seu poder sobre o homem que amava, César não compartilhava inteiramente suas esperanças quiméricas. Morreu, aos pés da estátua de Pompeu, assassinado por "republicanos" hostis à ditadura e inimigos da "realeza".

Cleópatra pode ser considerada, de certo modo, responsável por sua morte, em função das instigações e apelos que fazia a seu orgulho, ambição e apetite de poder. Apressou-se em deixar Roma, com o pequeno Cesarião, para escapar à vingança daqueles que a acusavam de ter tido má influência sobre César. De volta a Alexandria, livrou-se do irmão que era uma ameaça e elevou ao poder Cesarião, então com 3 anos de idade. O exército romano tinha partido do Egito rumo à Ásia, para encontrar Dolabela, tenente de César que combatia as tropas senatoriais comandadas por Brutus e Cassius. Cleópatra recebeu de Dolabela o pedido de apoio das tropas egípcias, e de Cassius o de enviar sua frota aos "libertadores", mas manteve-se neutra nessa guerra civil que opunha "cesarianos" a "republicanos".

Ela esperou que o conflito que dividia Roma terminasse, para fazer o exame da situação e verificar qual proveito podia tirar dela. Uma vitória dos republicanos não era desejável, pois ela sabia que não tinha poder sobre libertários austeros como Cassius e Brutus. Ao contrário, o sucesso dos cesarianos lhe daria uma possibilidade de êxito, se fosse Marco Antônio o sucessor de César. Infelizmente, ele dividia o comando com Otávio, que tinha a fama de ser alguém consumido pela ambição, frio e calculista, que se furtaria a fazer o jogo da ambiciosa estrangeira. Somente Marco Antônio parecia útil para a realização de seus grandes projetos.

Após a vitória de Filipos, na segunda metade do ano 42, os chefes do exército cesariano dividiram o poder. Otávio retomou Roma, pois para ele era mais importante permanecer em contato com o Senado e suas facções, enquanto Marco Antônio, tentado pelo papel de rei oriental que era incentivado a desempenhar, de temperamento mais romanesco do que seu parceiro de poder, ficou no Oriente. De natureza generosa, ardente e acessível às ilusões românticas da glória e do amor, ele era uma vítima inteiramente desenhada para Cleópatra. Todavia, ela não tomou a iniciativa. Esperou que ele solicitasse a aproximação.

Marco Antônio estava na Sicília quando convidou Cleópatra a discutir a situação política da Ásia. Ela atendeu ao chamado. Fez-se acompanhar de um cortejo fantástico e teatral, cujos elementos, emprestados à mitologia grega, lembravam o séquito da própria Afrodite. Soube temperar, no entanto, a requintada elegância helênica com cores de desregramento romano, vulgar e violento o bastante para atordoar Marco Antônio. Ele caiu na armadilha. Conseguiu que Marco Antônio mandasse executar todos os seus inimigos pessoais, em especial sua irmã Arsinoé. Cleópatra o recompensou com delícias da "vida inimitável" que os historiadores não se cansam de descrever.

O triunfo de Marco Antônio
Durante dez anos, de 41 a 31 a.C., Marco Antônio não passou de um joguete relativamente dócil. Abandonou a mulher, que era irmã de Otávio, e dessa forma rompeu com aquele homem poderoso e influente, que se tornaria o senhor do mundo romano. Abreviou as estadias na Itália, limitadas a rápidas expedições militares, a fim voltar rapidamente para Alexandria. As conquistas às quais se dedicou foram as que podiam trazer alguma vantagem para o Egito, na Síria, na Cálcica, na Fenícia.

Houve várias tentativas de reconciliação entre Marco Antônio e Otávio, mas jamais um acordo durável e definitivo, pois assim que Marco Antônio reencontrava Cleópatra tudo voltava ao que era. Ela havia lhe dado três filhos: dois gêmeos, encarados como herdeiros divinos: Alexandre Hélio e Cleópatra Selena, e um terceiro, Ptolomeu Filadelfo. Para agradá-la, após a vitória sobre a Armênia, Marco Antônio comemorou seu triunfo em Alexandria, e não em Roma, onde ela e os filhos se apresentaram de maneira fulgurante, como deuses. Embriagada pelo sucesso, passou a usar vestimentas de Ísis nas cerimônias, o que a identificava com a deusa, sem dúvida para realçar ainda mais seu prestígio junto à população autóctone e para afirmar a natureza divina de sua realeza.

É significativo que após o triunfo de Marco Antônio seus filhos tivessem recebido títulos reais: Alexandre Hélio, o de grande rei da Armênia; a jovem Cleópatra, o de rainha da Cirenaica; Ptolomeu Filadelfo, o de rei da Síria e da Ásia Menor. O filho mais velho, Ptolomeu César, tornou-se rei dos reis, e a Cleópatra chamavam de rainha dos reis. Já não se tratava mais de dois reinos: o Egito fazia parte do império futuro, do qual era a província central, o núcleo. Habituados a ver seus soberanos deificados, os egípcios não se surpreenderam que Cleópatra ostentasse o título de deusa e de nova Ísis. Dois obstáculos ainda a separavam do império universal: os partas e Otávio. Várias vezes Marco Antônio havia feito a guerra contra os partas, sem contudo lograr um sucesso marcante. Os partas fechavam o caminho para o Extremo Oriente.

Por seu lado, Otávio era o senhor do mundo romano ocidental; sua política consistia em querer o Egito como província romana. Ele não aceitava a idéia de um império oriental-ocidental. A cada dia tornava-se mais evidente que Roma precisava escolher entre seus dois senhores, um que queria arrastá-la em suas aventuras perigosas, outro que seguia uma política menos brilhante a curto prazo, porém mais segura e vantajosa.

O fim de um Egito
O afastamento formal de Marco Antônio e Otávio consumou a ruptura. Prevendo que seu adversário, uma vez livre, se casaria com Cleópatra, Otávio começou por apresentá-la como inimiga de Roma, declarando guerra contra o Egito. Isso equivalia a colocar Marco Antônio diante da alternativa de renunciar à rainha para cumprir seu dever de romano, ou entrar em confronto aberto, no caso de permanecer fiel a ela. Sabemos qual foi a escolha de Marco Antônio. Em 2 de setembro de 31 a.C., as duas frotas se encontraram em Áccio, onde Marco Antônio foi vencido.

Cleópatra não se conformou com a derrota. Como os romanos eram os mestres do Mediterrâneo, ela concebeu o projeto fantástico de criar um império no Extremo Oriente, naquelas terras da Índia que Alexandre tinha conquistado. Decidiu, então, transportar o restante de sua frota de Alexandria para o mar Vermelho, seguindo o canal, ou mesmo através do deserto. Os cruzados fizeram mais tarde uma tentativa semelhante, com sucesso, mas Cleópatra fracassou. Teria sido mais sábio abandonar Alexandria, refugiar-se no Alto Egito, associar-se aos etíopes, lançando-se contra os romanos com uma tática de guerrilha, que teria podido ser longa e favorável a ela. Essa combinação era bastante razoável. Mas desagradava a Marco Antônio e a Cleópatra, que dilapidaram suas forças em tentativas estéreis, até o momento em que Otávio, que havia entrado sem dificuldade no Egito, chegou às portas de Alexandria. O suicídio de Marco Antônio e de Cleópatra pôs fim à guerra.

Por perfídia, Otávio assassinou o jovem rei Ptolomeu XIV, filho de César. A dinastia dos Ptolomeus, a última dos reis do Egito, se extinguiu, assim como o país enquanto Estado autônomo e independente. A partir daquele momento, seu destino se confundiu com o do Império Romano, e depois ele se tornou mais e mais dependente das nações estrangeiras que o ocuparam. Triste ocaso para uma civilização que teve em Cleópatra um marco indelével.

Cronologia
69 a. C.
Nasce Cleópatra, filha do faraó Ptolomeu Aulete, representante da dinastia grega dos Ptolomeus. Ele iniciou seu reinado em 80 a. C.

51 a. C.
Morre Ptolomeu Aulete e assume o poder
sua filha mais velha, que se torna faraó com o
nome de Cleópatra VII, sem ter ainda completado 18 anos

48 a. C.
A faraó, que deixara Alexandria, guerreia contra Aquilas, que, em coalizão com Potino e Teódoto, instigara o povo contra ela; apresenta-se a Júlio César, enrolada em um tapete, estratagema criado por seu escravo, Apolodoro, o Siciliano

44 a. C.
Júlio César morre assassinado; Cleópatra, que vivia em Roma e tinha um filho dele, volta para Alexandria

41 a. C.
Apresenta-se teatralmente a Marco Antônio, na Sicília, a convite dele

31 a. C.
Marco Antônio é vencido, em Áccio

30 a. C.
Marco Antônio e Cleópatra se suicidam, e o Egito é anexado a Roma

Marcel Brion pertenceu à Academia Francesa.

Revista Historia Viva

Um comentário:

PIZARR disse...

Gracias por tus palabras.

Es una lástima que no hable tu idioma, para poder recrearme con esta entrada de Egipto.

Un saludo