segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

Quênia: crise política, rivalidades étnicas e o problema do Estado-Nação



por Márcio Santos de Santana

O continente africano sempre foi palco de preocupantes experiências históricas, uma vez que a violência tem sido elemento constantemente usado nos processos políticos. O cenário revela uma tendência crescente de anomia social, salvo alguns países específicos. Senão vejamos. Os governos eleitos têm se mostrados incapazes de controlar problemas como a pobreza, a corrupção, as epidemias e, sobretudo, as rivalidades étnicas. Além disso, a falta de cultura democrática agrava o já caótico quadro. As diferentes nações africanas enfrentam esses problemas em diferentes níveis de gravidade. A crise política e humanitária que abala a República do Quênia é o mais recente capítulo de uma história conturbada e complexa.
Alvo da colonização predatória de potências européias desde o século XVI, teve sua divisão oficializada pela Conferência de Berlim (1885), que transformou a região em protetorado britânico, após um período de dominação lusitana - ocorrida entre o final do século XVI e o ano de 1729, esta basicamente restrita ao controle do litoral - e de anexação aos domínios dos sultões de Omã.
O processo de independência do país, bem como das demais nações africanas, está diretamente relacionado com o fenômeno histórico conhecido por Descolonização - iniciado pela Conferência de Brazzaville (1944) -, categoria contestada por alguns analistas como sendo excessivamente eurocêntrica. Foi no período entreguerras que ocorreu a virada na conjuntura internacional que possibilitou as lutas de libertação nacional. Nesse período Reino Unido, França, Holanda, Itália, Bélgica, Espanha e Portugal ainda mantinham possessões no continente africano. Basicamente três fatores conduziram ao processo de independência: (a) impossibilidade econômica e militar das metrópoles manterem o domínio sobre seus protetorados, efeito residual da Primeira Guerra Mundial e da Crise de 1929; (b) o capitalismo, em sua configuração financeira, não demandava mais a posse de impérios coloniais e, finalmente, (c) as relações internacionais eram dinamizadas pelo princípio da autodeterminação dos povos, tal como ratificado pela Conferência de Bandung (1955).
No caso queniano o processo de independência seguiu rumos conturbados. Membros do grupo étnico kikuyu (majoritário), revoltados com a perda de suas terras, lideraram a rebelião dos Mau Mau (1952-56), sociedade secreta que lutava contra a dominação estrangeira. Malgrado a repressão violenta, os britânicos consentiram na formação de um legislativo local em 1957, sendo este evento um passo importante na conquista da independência, esta alcançada somente em 1963.
Jomo Kenyatta, o mais importante líder da etnia Kikuyu, foi eleito o primeiro presidente do Quênia. A trajetória política deste líder fora construída na luta pela libertação nacional. Acusado de envolvimento com os Mau Mau enfrentara dois anos de prisão. Sua militância, no entanto, era mais antiga, pois na década de 1940 havia participado da fundação da Federação Pan-Africana, juntamente com Hastings Banda e Kwame Nkrumah, posteriormente também eleitos presidentes do Malawi e de Gana respectivamente. Kenyatta governou até 1978, quando de seu falecimento, sendo substituído pelo vice-presidente Daniel Arap Moi, eleito presidente dois meses depois numa eleição de candidato único.
A gestão de Arap Moi foi caótica, fruto das práticas políticas antidemocráticas adotadas pelo novo presidente. As reeleições conquistadas pelo titular da presidência - em 1983, 1988, 1993 e 1997 - foram alvos de críticas e suspeitas de fraudes. A atuação política da oposição foi sistematicamente sufocada e o governo nem mesmo se preocupava em disfarçar a ditadura. No entanto, a oposição não primava pela lisura democrática. Em 1982, por exemplo, opositores do presidente promoveram um violento e fracassado golpe de Estado, culminando na prisão de várias lideranças.
As respostas do Executivo não tardaram. O golpe deu o álibi necessário para a aprovação de medidas de força que beneficiariam o presidente Arap Moi, agraciado pela Assembléia Nacional com a instituição do monopartidarismo. A conjuntura que se seguiu foi marcada pela censura e perseguição aos opositores do regime. Reeleito em 1983, implementou uma reforma constitucional em 1986 forneceu os mecanismos que o ditador precisava: controle pessoal do presidente sobre o funcionalismo público e a prerrogativa de demissão de juízes, cerceando a liberdade de ação desse poder da república. Sem divisão de poderes não há democracia, como bem sabemos desde Montesquieu.
A escalada autocrática teve prosseguimento com a reeleição de 1988. Contudo, em 1990, um grupo de intelectuais, advogados e membros do clero uniram forças numa pressão por redemocratização do Quênia. Os opositores exigiam a legalização do pluripartidarismo. Prisões e assassinatos foram os reparos feitos pelo regime. No entanto, a conjuntura internacional era outra. O Muro de Berlim fora derrubado, a Alemanha estava em processo de reunificação, o fim da História havia sido proclamado por Fukuyama. As pressões ocidentais, inclusive com cortes de ajuda financeira, surtiram efeito e as reformas de caráter democrático foram realizadas, retornando o pluripartidarismo.
O ano de 1992 foi pautado por manifestações, distúrbios de rua e greves. Apesar da existência de concorrentes nas eleições, Arap Moi foi reeleito para seu quarto mandato em 1993, numa eleição marcada por denúncias de fraude nos resultados. A reação presidencial foi fechar o Parlamento num ato de recrudescimento da autocracia. A oposição permaneceu cerceada em suas atividades política por todo aquele ano, acusando o governo de incitar a violência étnica e creditar sua ocorrência ao regime partidário plural, de modo que este parecesse incapaz de garantir a ordem. Mesmo com todas as atribulações o presidente ainda seria reeleito em 1997 para seu último mandato, um ponto de inflexão na questão do acirramento étnico. O presidente realizou uma gestão considerada corrupta e antidemocrática. Contudo, o que acirrou as tensões foi o fato de que pessoas do grupo étnico Kalenjin (12% da população) receberam a imensa maioria dos cargos no Governo e nas Empresas Estatais, situação que desagradou os Kikuyu (22%) e os Luhya (14%). As rivalidades políticas e as disputas pelo poder haviam recebido um aporte de revanchismo étnico que somente agravava a situação.
Nas eleições de 2003 o governo não foi capaz de fazer seu sucessor. Com mais de 60% dos votos válidos, o opositor e ex-Vice-Presidente Mwai Kibaki sagrou-se o novo titular do Poder Executivo do Quênia. Aparentemente o país entrava em tempos de renovação, pois o KANU deixava o poder após quatro décadas de dominação plena. Além disso, a tranqüilidade com que foi realizado o processo eleitoral foi alvo de elogios por parte da opinião pública internacional. A euforia do período levou alguns analistas e jornalistas a qualificarem o evento como “revolução de veludo”, para ressaltar a imensidão das transformações conquistas por meios pacíficos.
O novo governo apresentou projetos de combate à corrupção logo no início do mandato, mas, dois anos depois, em fevereiro de 2005, a equipe de gestão sofreu uma reforma por conta de suspeitas de corrupção em casos de concorrências suspeitas, tornadas públicas pelo Alto Comissário britânico. Ironia da história.
A situação política e social do Quênia é condicionada pelo não surgimento de uma Identidade Nacional com penetração entre os habitantes do país, bem como pelo fato de que suas forças políticas não conseguiram encontrar um denominador comum, uma base comum de ideais capazes de cristalizar um projeto político nacional. O essencial para a coesão de um Estado-nação é que seus membros tenham convicção de que fazem parte de um destino comum. Tal quadro político e institucional não é exclusividade do Quênia, pois a História recente do continente pode ser escrita com base nessas premissas.
As Nações são artefatos culturais como bem demonstra a Ciência Social contemporânea. Trata-se de uma comunidade política imaginada, limitada e soberana. Imaginada porque um integrante da nação não conhece todos os demais membros e, nem mesmo numa comunidade pequena, jamais chegará a conhecer. Limitada, pois todas as nações têm fronteiras definidas, ainda que elásticas, além do que nenhuma comunidade identifica-se com a humanidade como um todo. Soberana, na medida em que define autonomamente o próprio destino político.
Basicamente dois princípios são essenciais para compreensão do nacionalismo - entendido aqui numa chave positiva, ou seja, a força cultural que vincula pessoas, grupos e classes sociais e etnias numa sociedade de maneira relativamente harmônica -. O primeiro é que as fronteiras étnicas não se sobreponham às fronteiras da legitimidade política democrática e, principalmente, que essas fronteiras étnicas não isolem os detentores do poder do restante da população. Para realização dessas premissas, o nacionalismo faz uso de maneira seletiva de culturas pré-existentes, muitas vezes alterando-as radicalmente.
A sociedade queniana precisa demonstrar capacidade de reação e romper com essa cultura política tradicional, fundamentada no personalismo, no patrimonialismo e na manipulação político-partidária de rivalidades tribais, pois tal imperativo é vital para que a Nação seja plenamente arquitetada, bem como para que o Estado não seja desmantelado, haja vista a incapacidade - quiçá momentânea - de garantia da ordem social e preservação da paz social. A formação do Estado-nação tem como premissa básica e idéia de que todos estarão sujeitos a um governo, cultura política e jurisdição comum, independentemente de diferenças quanto à religião, classe social, raça, etnia ou qualquer outro critério particularista. O Estado-nação prima pelo universalismo. Na sua configuração democrática, tais características devem ser definidas por meio de disputas políticas entre partidos representativos das forças sociais, sob regras claras de funcionamento e de maneira pacífica. Todos esses ingredientes estiveram ausentes da crise que abala o Quênia desde o último dia 27 de dezembro, quando foram realizadas eleições presidenciais.
Diante do quadro exposto os acontecimentos ora em curso no Quênia não devem soar como exceção, pelo contrário. Toda a tragédia teve início com um processo eleitoral fraudado, no qual disputavam o presidente do Quênia, Mwai Kibaki (Partido da Unidade Nacional) e Raila Odinga (Movimento Democrático Laranja), conforme atestam os observadores internacionais. A instabilidade faz os quenianos perderem muito, pois, nos últimos anos, o país conquistava credibilidade junto a investidores internacionais, além de ostentar um excelente setor de turismo (faturamento de US$ 1 bilhão em 2006). O Banco Mundial já demonstrou preocupação com a possibilidade de uma crise regional, pois ¼ do PIB de Uganda e Ruanda e 1/3 do de Burundi tem no Quênia rota obrigatória.
Os desafios à sociedade queniana são imensos. Essa conjuntura de crise demanda muita negociação, planejamento e estratégia, além de pressão da comunidade internacional. O dilema do Quênia será o de encontrar uma solução pacífica para essa crise e, posteriormente, repensar o seu sistema político e, sobretudo, a sua cultura e prática política, pois as rivalidades étnicas foram acirradas por maquinação política. Se tal transformação não ocorrer, de fato, o livro de Mia Couto será profético e cada homem realmente será uma raça.

Márcio Santos de Santana é doutorando em História pela Universidade de São Paulo - USP (marcio-sant@hotmail.com).

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