segunda-feira, 8 de dezembro de 2008
A democracia e suas idades
REVISTA CH 252 :: SETEMBRO DE 2008 :: SOBRE HUMANOS
Entender a evolução histórica desse conceito ajuda a trazer respostas aos desafios da sociedade
A antiguidade da palavra ‘democracia’ é em muitos sentidos enganosa. Sua longa existência pode induzir-nos a supor que os valores e as instituições hoje associadas a esse conceito estão presentes na história desde a Antiguidade clássica. Com freqüência, adotamos termos sem perceber que sua carga semântica sofre, com o tempo, mudanças significativas. A palavra democracia não ficou imune a tal processo.
A democracia, como é conhecida hoje, é um fenômeno que se generalizou após a Segunda Guerra Mundial. Tem, portanto, apenas 50 anos, ainda que em alguns países sua construção tenha começado antes desse prazo. Essa novidade, típica do século 20, pode ser compreendida como uma convergência de três tradições distintas: a democrática clássica, a liberal e a socialista. Tais modelos foram formulados, em contextos históricos particulares, como respostas a desafios diferenciados, e estão combinados na forma construída no século 20. A novidade consiste nessa combinação, por vezes um tanto confusa.
Situada a 1 km da Acrópole, a colina de Pnyx era o local em que os cidadãos se reuniam na antiga Atenas para o exercício da democracia. Discursos eram feitos na plataforma que se vê em primeiro plano na imagem (foto: Adam Carr).
O primeiro componente é representado pelo velho modelo da democracia clássica praticada na Atenas do século 5 a.C., fundada na idéia de que o governo é o próprio povo (demos), sem qualquer intermediação. Esse modelo tinha como premissa o princípio da ‘isonomia’, segundo o qual os cidadãos tinham peso político idêntico, independentemente de suas posições sociais.
Ainda que o modelo ateniense contivesse um critério de exclusão – mulheres, estrangeiros e escravos não podiam participar –, o princípio da isonomia tem aspectos revolucionários, já que distingue a dimensão da política dos outros aspectos da vida social e confere a ela primazia.
O segundo componente é a tradição liberal, ou seja, aquela inaugurada com a modernidade, a partir do século 16, que teve nos filósofos políticos John Locke (inglês, 1632-1704) e Charles-Louis de Secondat, o barão de Montesquieu (francês, 1689-1755), seus principais formuladores. A preocupação básica do liberalismo, desde seu nascimento, foi a de estabelecer limites legais ao exercício do poder político. Daí sua preocupação com a proteção de direitos individuais diante da ameaça de exercício tirânico dos governos.
O processo de democratização política, iniciado no século 19 por meio da extensão progressiva do direito de voto, marcou-se por uma combinação entre as linguagens da democracia clássica e do liberalismo moderno. Democracia, nesse quadro, significa não mais autogoverno do demos, mas extensão do direito individual de escolha de representantes. Em diversos países europeus, tal extensão viria a incluir, no início do século seguinte, o operariado.
Socialismo e ampliação de direitos individuais
O terceiro componente do experimento democrático do século 20, o socialismo, está diretamente associado à ampliação desse direito. Tal extensão inclui a ação de inúmeros movimentos sociais de cunho igualitário e a presença eleitoral – legislativa e governativa – dos partidos de esquerda, com papel relevante na maioria dos países democráticos. O conjunto foi decisivo para, por meio de pressão por legislação e reforma social, estabelecer restrições ao mercado e definir critérios de justiça social. A pressão igualitária inscreveu na experiência democrática uma pauta de direitos sociais, que excede e complementa as liberdades individuais instituídas pela tradição liberal.
A descrição da democracia como uma decantação dessas três vertentes tem, ao menos, duas utilidades. A primeira consiste em pensar o fenômeno democrático como processo, e não como algo estático, já que sempre se pode imaginar o aperfeiçoamento de seus três componentes: a participação e soberania populares, os direitos civis e os mecanismos de proteção e inclusão sociais.
A segunda é a fixação de algo como um ‘piso’, um limite mínimo. Assim como disse Hémon de Tebas, na peça teatral Antígona, diante das pretensões despóticas de seu pai, Creonte – “Não há polis onde um só manda.” –, pode-se dizer que será menos-que-democrática a sociedade que fizer regredir os três aspectos mencionados.
revsta ciencia hoje
Renato Lessa
Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro,
da Universidade Candido Mendes,
e Universidade Federal Fluminense
rlessa@iuperj.br
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