terça-feira, 16 de dezembro de 2008

magem de mártir, perfil de herói

edição 39 - Janeiro 2007

Imagem de mártir, perfil de herói


por Adriana de Oliveira
Sua história é bem conhecida: um alferes e dentista mineiro condenado e executado pela Coroa portuguesa em 1792 por lesa-majestade. Seu crime: liderar um movimento pela Independência do Brasil. Sua punição: enforcamento, esquartejamento e exposição pública das partes de seu corpo.

A representação iconográfica mais original de Tiradentes - o imenso quadro pintado em apenas 12 dias por Pedro Américo de Figueiredo e Melo (1843-1905) em 1893, única obra que apresenta o inconfidente enforcado e aos pedaços - ficou "esquecida" por quase um século. Foi desprezada nos momentos em que a história lançou mão do mito de Tiradentes, como no início da República, no governo Vargas e na ditadura militar. A imagem "escolhida" para representar Joaquim José da Silva Xavier no panteão nacional foi a de um homem de cabelos longos e túnica branquíssima, pintada por Décio Villares (1851-1931) em 1890. Em sua tese em história da arte, Maraliz de Castro Vieira Christo analisa a produção, a circulação, a recepção e as releituras da tela Tiradentes esquartejado para compreender seu longo período de esquecimento e recente descoberta, a partir de dois momentos privilegiados de visibilidade - a XXIV Bienal de São Paulo (1998) e a Mostra Redescobrimento do Brasil + 500 anos (2000), ambas em São Paulo.
Apesar de ter sido realizada por um pintor oficial do Império - principalmente por Independência ou morte (1888), que, ao lado de Primeira missa no Brasil (1861), de Victor Meirelles (1832-1903), tornou-se um dos principais símbolos da pintura histórica nacional -, a tela Tiradentes esquartejado foi rejeitada pela crítica em sua primeira exposição no Rio de Janeiro, no ano de sua aparição (1893).

Nela, o artista dispôs o corpo do herói, representado praticamente em tamanho natural, desmembrado em quatro partes, adornado por grilhões, corda e crucifixo. Posicionado aos pés do mártir, o observador vê a alva que destaca o corpo do cadafalso, a túnica azul que o reintegra ao fundo celeste, ao mesmo tempo que o distancia da perna direita espetada em uma haste de madeira, em primeiríssimo plano. Para conferir maior dramaticidade à cena, Pedro Américo coloriu áreas precisas com sangue, que atraem o olhar tanto para a cabeça e a perna espetada quanto para as linhas delicadas do tronco e da perna sobreposta.

Desde 1893 até a década de 70, quando passou ser reproduzida em enciclopédias e livros didáticos, a tela foi considerada desrespeitosa, sendo por isso evitada. O silêncio sobre a obra foi quebrado em 1975 por Pietro Maria Bardi em História da arte brasileira: pintura, escultura, arquitetura e outras artes e apenas em 1990 ganhou uma análise mais detalhada pelo historiador José Murilo de Carvalho em A formação das almas: o imaginário da República no Brasil.

Além de percorrer a fortuna crítica e os usos políticos do quadro de Pedro Américo, Maraliz desenha o contexto em que ele foi concebido e compara o trabalho do artista ao do historiador em sua busca de equilíbrio entre a veracidade histórica e a liberdade de criação. Para pintar Tiradentes esquartejado, Pedro Américo pesquisou vários autores, fiando-se principalmente na obra do historiador Joaquim Norberto de Souza e Silva (1820-1891), História da Conjuração Mineira: estudos sobre as primeiras tentativas para a independência nacional, de 1873, indicação do diplomata José Maria da Silva Paranhos Júnior (1845-1912), o barão do Rio Branco, de quem o artista era amigo e com quem trocou extensa correspondência sobre pintura histórica.
O quadro não foi concebido por Pedro Américo como uma pintura isolada, mas como parte de uma narrativa sobre a precariedade da Conjuração Mineira. Inacabada, a série se constituiria de outras telas: Tomás Antônio Gonzaga representado como um anti-herói a bordar, e não como líder intelectual do movimento, pois na prisão o poeta teria negado seu envolvimento com a conjura, dizendo-se ocupado em bordar a fio de ouro o vestido nupcial de sua Marília; a mais importante das reuniões dos conjurados, onde estes, reticentes, ouvem Tiradentes; a cena da constatação da morte de Cláudio Manuel da Costa, em que o pintor não se decide pelo suicídio ou pelo assassinato do poeta, e evidencia a fragilidade do inconfidente morto por ter denunciado os amigos; a prisão de Tiradentes numa casa antiga à rua dos Latoeiros, preâmbulo à cena do esquartejamento; e, por fim, um Tiradentes supliciado.

A análise do quadro, que tanto pode fascinar quanto repugnar, abre um debate atual na historiografia da arte: a representação do corpo humano e do herói. Nas releituras da obra de Pedro Américo, vários artistas desprezaram a interpretação de Tiradentes como herói e sua tradicional sacralização como citação explícita da Pietà (1499) de Michelangelo (1475-1564), para enfatizar sua violência. Arlindo Daibert (1952-), na série de desenhos Açougue Brasil, de 1978, e Sandro Donatello Teixeira (1945-), em O massacre de Tiradentes, de 1976 e 1992, isolaram a perna espetada para transformá-la numa metáfora da tortura dos anos 70. Ao agigantar o cadafalso e a forca visando evidenciar a fragilidade do corpo de Tiradentes, em Mantenha a liberdade quae sera tamen, de 1979, Wesley Duke Lee (1931-) também alinha o conteúdo da tela do artista à cena da ditadura militar. Na instalação Reflexo de sonhos no sonho de outro espelho, de 1998, Adriana Varejão (1964-) satura o olhar com fragmentos do corpo do inconfidente, refeito em manequim e desfeito em reflexos, aludindo à despersonificação do homem.

O trabalho recebeu o prêmio de melhor tese em história de 2006, concedido pela Capes - Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior.
Adriana de Oliveira é jornalista
Revista História Viva

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